quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Caussade


Caussade tem seu nome originado em causse, que é como se denomina a planície de calcário do Sul da França. Situada na região do Tarn-Garone, está a uma distância de 38 quilômetros de Cahors, que se percorre numa estrada que oferece em todo o percurso uma bela paisagem dos campos cultivados com vinhedos, girassóis e ameixeiras.

A feira semanal de Caussade é famosa pelo enorme espaço que ocupa na cidade e porque sua tradição vem dos tempos medievais. Trufas, foie gras, melões e o alho rosa da região são os destaques, fora os vinhos de pequenos produtores expostos nos balcões das barracas.

O chapéu de palhinha, aquele celebrizado por Maurice Chevalier, é um dos símbolos da cidade, mas procurei comprar um deles e não encontrei. Saiu de moda e os artesãos de Caussade não foram capazes de inventar novos lançamentos.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Le Marché revisitado


No ano passado, o Le Marché, na Place Chapou, em frente à catedral de Saint Etienne, onde a feira semanal de Cahors faz a alegria dos gourmands, impressionou muito bem. Sua cozinha leve, sofisticada, cheia de sabores diferentes, mereceram elogios. A foto ao lado é de um folheto promocional do restaurante.

Mas nem sempre o ato de revisitar antigos e bons lugares trazem as mesmas experiências do passado.

O rim de vitela (rognon de veau) não estava à altura do que o restaurante pretende oferecer: duro e sem sabor. O frango com alho poró era mediocre. Valeu a entrada, o foie gras produzido na região que nunca decepciona.

Uma mesa ao lado, ocupada por uma grande família de 12 pessoas, poderia ter tornado o ambiente barulhento e desagradável, se fosse em outro lugar. Mas a boa educação européia dividiu e organizou as três gerações presentes por idade e interesses. Os adolescentes, em crise como todos os adolescentes do mundo, conversaram entre si e desenvolveram jogos mútuos de sedução. Talvez fossem primos. As crianças encantaram-se com as sobremesas e não correram se perseguindo entre as mesas.

Mas penso que não voltarei ao Le Marché.

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Montcuq


Montcuq é uma pequena cidade medieval entre Cahors e Lauzerte. Situava-se entre duas antigas muralhas de defesa que hoje estão desaparecidas. Possúi três praças à sombra de plátanos e alguns bistrôs. Do castelo que pertenceu aos condes de Toulouse, restou uma bela torrre de 24 metros de altura.

A grande atração da cidade é a feira dos domingos, quando os produtores da região vão oferecer seus produtos aos clientes que acorrem das cidades vizinhas em busca de trufas, ameixas, pães de especiarias, cerâmica marroquina, azeitonas e comida, muita comida.

O Quercy branco, nome da região onde está Montcuq, é uma terra de moinhos e capelas perdidas dentro dos bosques, legado dos antigos peregrinos que por ali passaram com destino a Santiago de Compostela.

O vinho quente com canela, bebida típica dos meses do inverno, está presente e oferecido pelos feirantes a seus clientes. Um chinês de Hong Kong vende capões assados e diz que trabalha para, um dia, visitar o carnaval do Rio.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

A velhinha das margens do Lot


Bem velhinha, ela está curvada de tal forma que o rosto volta-se para o chão, mas os olhos miram acima, emprestando um certo ar de desconfiança ao seu modo de encarar as pessoas. O nariz fino destaca-se das rugas muito profundas para acentuar um olhar inteligente e curioso sobre os outros, enquanto ela caminha pelas calçadas de Cahors.

Não se veste como se fosse velha, pois uma saia curta e meias longas e grossas lhe dão um certo ar juvenil. Passeia todos os dias nas margens do Lot e parece não se incomodar muito com o frio do inverno e com o vento que faz o frio mais frio, pois um cachecol e uma boina basca lhe são suficientes como agasalho.

Se usasse uma bengala, talvez caminhasse de forma mais ereta e segura. Mas talvez fizesse com que se sentisse velha, portanto é melhor seguir curvada, a cabeça baixa mas com o olhar voltado para cima, a desafiar a velhice.

sábado, 26 de dezembro de 2009

Na noite do Natal

Na noite do Natal, o Bar du Centre era o único lugar aberto porque as lojas, os restaurantes e todos os lugares públicos haviam fechado em Cahors. No meio da noite fria, destacavam-se as luzes do velho bar. À distância, dava para ver o dono do bar e dois clientes de pé, encostados no balcão.

À meia noite, os sinos da catedral de Saint Etienne começaram a tocar e os dois clientes sairam para a rua e ficaram escutando o badalar dos sinos. Quando os sinos pararam de tocar, retomaram seus lugares e voltaram a beber nas grandes canecas de cerveja que haviam deixado no balcão.

No mundo inteiro, a noite do Natal foi construida para ser festejada em família. É a noite em que a alegria da festa excita os adultos e principalmente as crianças na espera da surpresa dos presentes que irão receber. Mas há quem prefira passá-la sozinho, como os dois homens que sairam do bar em Cahors para escutar o toque dos sinos da catedral.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Le Lamparo


Cahors tem alguns bons restaurantes, não fosse a cidade uma das mais importantes do Sudoeste francês, região famosa por sua gastronomia. É a capital do departamento do Lot, apesar dos seus parcos 20 mil habitantes. Comparada com as capitais dos estados brasileiros, em número de habitantes perde até para os magros municípios do interior do nosso país.

Le Lamparo é um restaurante que não figura entre os grandes da alta cozinha francesa, nem mesmo entre os famosos do Sudoeste. Está localizado bem em frente ao Halles, o mercado municipal de Cahors. Não exibe um grande letreiro na fachada e quem passa em frente só vai percebê-lo se estiver atento à paisagem urbana da parte antiga da velha cidade. No entanto é capaz de se igualar e até mesmo vencer quando comparado com os melhores bistrôs de Paris.

Lola Lestrade, a patroa, construiu um patrimonio de Cahors e a prova são as filas que se formam na hora do almoço à espera de uma mesa, mesmo agora, na estação do inverno, quando os turistas desaparecem da região.

Ancorado num cardápio que exibe os grandes pratos da cozinha do Sudoeste e num serviço atento, rápido e cortês, cobrando preços muito honestos, Le Lamparo mereceria um bom número de estrelas nos guias gastronômicos da França.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Cassoulet de Toulouse


Toulouse disputa com Carcassone a primazia de ter criado o célèbre prato francês de feijão branco enriquecido com com carnes de pato, porco e embutidos. Em Carcassone costuma-se usar favas ao invés do feijão, mas aqui em Toulouse o cassoulet é feito da forma tradicional. E a Maison du Cassoulet guarda essa tradição e serve o cassoulet em panelas de barro diretamente do forno.

A cidade não chega a ser uma das mais charmosas da França mas a Praça do Capitole é um lugar aprazível. Esta época do ano está tomada de barracas com produtos de Natal e muita gente a comer churros, crepes, aligot, pão de mel e tudo quanto é comida típica do Sudoeste. E a beber vinho quente.

Faz frio, numa temperatura bem suportável. A cidade é alegre, de população muito jóvem, por conta da universidade local, uma das mais antigas da Europa. É apenas uma passagem. Um pernoite.

domingo, 20 de dezembro de 2009

Viagem


O vôo AF443 decola amanhã do Galeão às 18:40hs e o AF7782, no dia seguinte, às 10:20hs, do Charles De Gaulle para Toulouse. São 12 horas de viagem que me deixarão perto de Cahors, onde pretendo passar as próximas semanas. Parece que uma onda de frio atinge a Europa e algumas borrascas de neve têm se precipitado pelo Sudoeste da França.

As viagens de avião, atualmente, são bem desconfortáveis. O Galeão está pior do que a Estação Rodoviária, os aviões lotados, longas filas para a revista dos passageiros na busca de terroristas e está difícil beber a bordo.

O número do vôo em que vou embarcar e a rota que ele vai cumprir me fazem lembrar o trágico AF447, que mergulhou no Atlântico sem deixar sobreviventes, logo após o jantar, quando os passageiros se acomodavam para fazer a longa travessia.

Viver é um risco permanente.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

O efeito estufa


O vizinho entrou no elevador lendo o jornal que falava da conferência de Copenhagen. Na mesma página, mostra a notícia sobre a ciranda de fogos no reveillon de Copacabana. Relaciona os dois fatos e me pergunta se eu não achava que aquelas toneladas de fogos não seria capaz de provocar enorme poluição e colaborar com o propalado efeito estufa.

Em todo o mundo, no dia 31 de dezembro, centenas de toneladas de fogos de artififício explodem minuto a minuto, na medida em que a Terra gira e a meia-noite vai chegando a todos os países. A poluição que se provoca nessa data, em tão breve momento, deve ter mais potência poluidora do que os gases expelidos pelo ventre dos rebanhos mundiais.

Se for mesmo verdade que o planeta esteja ameaçado, o homem sacrifica a cada ano um pouco do seu futuro por um momento de beleza pois, como disse Keats, o poeta inglês, “a moment of beauty is a joy forever”.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Festas


A uma semana do Natal, o tráfego de automóveis está intenso mas as lojas continuam meio vazias. A clientela talvez esteja nos shopping centers, o comercio de rua reservado para as compras de última hora. O calor fez uma pausa mas outros dias muito quentes se aproximam. Copacabana já recebe seus turistas, cuja presença vai aumentar, como sempre, na semana do ano novo.

Alguns edifícios ostentam na fachada decoração com luzes e leds. A mais feérica de todas costuma ser a do prédio onde mora o presidente de honra da Beija Flor, mas outros apartamentos nas ruas de dentro, sem a nobreza daquele na Avenida Atlântica, já inauguraram sua iluminação de Natal.

Marquinhos, o maluco da vizinhança, com seu rádio que não toca nada, dizia ontem que ouvia músicas de Natal enquanto dava uma pausa no seu mau humor e no ódio que devota ao próximo. Não xingava nenhum dos passantes, apenas olhava para eles com seu olhar fixo e um certo ar de desconfiança.

O bairro se prepara para as festas de fim de ano.

domingo, 13 de dezembro de 2009

Cantinas


A moda afeta o comportamento, a maneira de vestir, o vocabulário e até o nosso modo de comer. Colocar uma roupa que saiu de moda, um paletó curto ou uma calça de cintura muito baixa, faz-nos parecer aos outros como seres estranhos, perdidos no tempo. Dizer uma expressão que esteve na moda antigamente – do tipo “é uma brasa, mora” – vai nos fazer cair em ridículo profundo.

O cardápio dos restaurantes também sofre a influência da moda. Desde o tempo em que comer fora significava bife com batatas fritas, outros pratos estiveram na órdem do dia, como foi o caso do estrogonofe, do picadinho, do paillard com fettuccine e do steak au poivre. E a moda da nova cozinha francesa ou italiana mudou radicalmente a maneira de comer em restaurantes.

Em tempos passados, estiveram na moda em Copacabana as cantinas italianas com suas toalhas quadriculadas e o cardápio de massas feitas do jeito antigo. Elas foram desaparecendo e poucas resistiram, como é o caso de La Trattoria, na Rua Fernando Mendes. Vale a pena ir lá e comer uma bem feita lasanha à bolonhesa, prato que já esteve na moda e que desapareceu do cardápio nos modernos restaurantes italianos.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Alcóolatras


Maldonado me contou sobre uma descoberta de João Antonio, quando ele morava na Praça Serzedelo Correa e frequentava os bares de Copacabana. Alguns homens e mulheres que eram alcóolatras faziam ponto nas proximidades do Pavão Azul, que fica na Hilário de Gouveia, em frente à Delegacia de Polícia. Com a colaboração dos bares e a pedido das famílias, estavam proibidos de beber. Os botequins recusavam-nos como clientes.

João Antonio morreu em outubro de 1996 e ontem fui conferir sua descoberta. Eles ainda estão lá. Se não são os mesmos, outros vieram substituir os que partiram e rondam os bares, bebem água, tomam café. Aproximam-se discretamente de um camelô que vende meias na esquina e os abastece de cachaça. Tomam goles sorrateiros num único copo que está sempre à espera do próximo freguês.

Encontraram uma forma de burlar a proibição da família e o boicote dos bares ao vício que os destrói e lhes dá alento. Formam uma confraria secreta cujo objetivo é saciar a sede que não são capazes de aplacar.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Flamengo


De manhã bem cedo um ciclista passou veloz empunhando uma bandeira e por volta do meio dia Copacabana já tinha enlouquecido. As ruas foram tomadas pelos torcedores e eles eram em tal quantidade que davam a impressão de que o bairro inteiro torce pelo Flamengo.

Todos pareciam usufruir antecipadamente a vitória e o campeonato, formando uma multidão do Leme ao Posto Seis, num só alarido, cortado apenas pelo espoucar dos foguetes e da buzina dos automóveis. Todos os bares estavam com a TV ligada desde a hora em que abriram e a venda de chope e cerveja batiam recordes.

A cor vermelha se destacava na paisagem das ruas e a expressão dos turistas, também vermelhos por conta dos dias de sol da semana passada, passava da surpresa para a incredulidade diante da estranha e animada festa.

Não torço pelo Flamengo, mas sempre me surpreende a festa nos dias em que ele joga, um espetáculo de enorme, incontida alegria que só se compara ao silêncio e a depressão que toma conta do bairro nas raras vezes em que o time perde.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Os bichos


Moram no bairro cerca de 150 mil pessoas, mais turistas e gente de outros lados da cidade que vem à praia. Deve haver uma população equivalente formada por cães e gatos de estimação, porque há também muita solidão nos apartamentos e a companhia de um bicho compensa o sentimento de abandono de quem vive só.

Muita gente mora sozinha em Copacabana porque assim preferiu organizar a vida ou porque assim se tornou pela morte de alguém com quem viveu. Uma população mais idosa constrói também a solidão dos remanescentes.

Os gatos são menos sociáveis e quase nunca saem às ruas, preferem passear pelos telhados, mas os cães são habituais nas calçadas e penso que entre eles os poodles são maioria. Estão sempre no colo de suas donas, que os tratam com o carinho que dedicariam talvez aos filhos e aos netos.

No forte calor que tem feito, vejo poodles peludos. impacientes, arfando nos braços das senhoras. Elas sentam nos bares de calçada para para lhes comprar água e abaná-los com leques e acariciá-los, conversando com eles, e não há dúvida de que um entende o que lhe diz o outro.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

A Fortaleza dos Vencidos


Um belo romance que trata do amor, da paixão, da política e de outros fortes sentimentos da vivência humana. E tudo com humor e agilidade, num estilo ao mesmo tempo leve e forte e de grande criatividade. É o novo romance de Nei Leandro de Castro, a história de Marionália e Esmeraldino, um desencontro existencial que segura com firmeza a atenção do leitor e o conduz no fio da narrativa até o final surpreendente, enquanto Nei aproveita para exorcizar alguns fantasmas pessoais.

Sua obra até agora compõe-se de 11 livros de poesia, um ensaio sobre Guimarães Rosa e quatro romances, com este último. É tão bom poeta quanto romancista, o que comprova mais uma vez com este A Fortaleza dos Vencidos, editado pela Saraiva, um texto extremamente bem escrito, cuja fonte encontra-se no universo do expressivo linguajar nordestino.

Marionália e Esmeraldino, Romeu e Julieta às avessas, passam a figurar na galeria dos grandes personagens da literatura brasileira, principalmente ela, Marionália. Sua loucura e sua obsessiva busca de vingança contra o homem que amou fazem dela um personagem que não se consegue esquecer. Nem nós nem Esmeraldino, cujo nome foi inspirado por O Caçador de Esmeraldas, de Olavo Bilac, poeta que o seu pai venerava.

domingo, 29 de novembro de 2009

A velhinha que alimenta os pombos


Diariamente ela vai à praça Cardeal Arcoverde, em frente ao metrô, alimentar os pombos. Já ouviu comentários de quem acha que pombos transmitem doenças e são verdadeiros ratos alados. Un homem lhe disse que são predadores e dizimam outras espécies de pássaros. Acabaram, por exemplo, com os pardais e as cambaxirras que viviam nas árvores de Copacabana.

Mas a velhinha não está convencida e acha que são aves bonitas, que se aproximam das pessoas e alegram as ruas. E diáriamente leva um saco de milho para os pombos da praça em frente ao metrô.

Um amigo observou que a bondade das velhinhas muitas vezes chega a resultados que elas mesmas não desejam. E exemplifica com a estrada entre Itaipava e Teresópolis, que era ladeada por hortensias e encantavam as velhinhas com a sua beleza. Aos poucos, fascinadas com as flores azuis, elas saltavam dos automóveis e as colhiam e, assim, as hortensias desapareceram da estrada.

A velhinha que ama os pombos conversa com eles e pouco se importa se são predadores ou transmitem infecções, pois são bonitos e a reconhecem quando se aproxima com o saco de milho, acercam-se dela e vêm comer na sua mão.

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Bar Urca


O Bar Urca na verdade é apenas um balcão que vende cerveja muito bem gelada e alguns acompanhamentos muito bem feitos, em que se destacam os pastéis e as empadas. Não possúi mesas, mas a vasta clientela, de copo numa mão e garrafa e tira-gostos na outra, dirige-se para a amurada em frente ao bar, diante da bela enseada da Urca, debaixo das amendoeiras.

Nos fins de semana, as vagas na amurada são disputadas pela pequena multidão mas nos dias de semana é um recanto tranquilo, bucólico e fresco nesses dias de verão antecipado e quente.

Em cima do bar, funciona o restaurante. Um bom restaurante de frutos do mar e cozinha variada, como sabem fazer os velhos portugueses como seu Armando Gomes. Aos 93 anos, ele ainda comanda a casa, desde 1972, quando fechou o antigo Café Esplendor, em Ipanema, e abriu o boteco da Urca. Diz que 79 dos seus 93 anos passou atrás do balcão.

Seu Armando instalou lixeiras na amurada e diáriamente manda fazer uma faxina. É um velho profissional, sabe os segredos do funcionamento de um botequim e de um restaurante que são distintos mas se completam.

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Noctâmbulos


Eles vagueiam pela noite nas ruas quase vazias, sempre sozinhos, e todos parecem ter uma maneira de andar meio curvada. Passeiam vagarosamente e sem olhar para os lados. De comum entre eles, a palidez dos noctâmbulos em contraste com a pele bronzeada dos frequentadores da praia, os jovens e os de meia idade que costumam ser vistos durante o dia ou no fim da tarde ainda afogueados do calor do sol.

Estão sempre na vizinhança das farmácias que abrem à noite e avançam as madrugadas nos bares noturnos onde entram apenas para tomar café. É muito raro vê-los conversando com alguém e uma das ruas preferidas por eles parece ser a Hilário de Gouveia, onde a delegacia de polícia permanece aberta durante toda a noite.

Não se confundem com os que exercem atividades noturnas – garçons, prostitutas, taxistas e marginais diversos – pois o que fazem é apenas andar, vagar pela noite.

Não sei quantos são, mas tenho certeza de que não são poucos esses estranhos personagens de Copacabana, habitantes da noite que devem se sentir melhor movendo-se nas sombras.

domingo, 22 de novembro de 2009

Turistas


O canto irritante das cigarras manda avisar que estamos na estação do calor, mesmo que tenha, ainda, o nome de primavera. Nas árvores próximas do metrô, elas parecem que são centenas cantando em coro neste dia quente.

O sol castiga os de pele branca, as meninas estrangeiras hospedadas na pousada Mellow Yellow estão vermelhas como um pimentão recém colhido, algumas delas exibem o namorado conquistado aqui mesmo, na comunidade afrobrasileira e este encontro tem a beleza dos romances e dos prazeres intensos.

O rosto dos transeuntes exibe calor, há um toque de mau-humor nas fisionomias e os bares de rua vendem milhares de litros de cerveja. Copacabana começa a receber sua população flutuante, ônibus lotados que vêm do Estado do Rio, de Minas e do interior de São Paulo. Chegam muito cedo, estacionam na Barata Ribeiro, devem ter viajado toda a noite. Os passageiros saltam, procuram entender de que lado fica o mar e em seguida correm excitados em direção à praia, de onde voltarão cansados, bêbados, para empreenderem a viagem de volta no fim da tarde.

Penso que está muito próximo o dia em que, ao contrário das aves migratórias, preciso tomar a direção do Norte em direção ao frio.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Partidas


Desde a segunda metade do século passado, quando Rashomon, de Kurosawa, estreou no Ocidente, o cinema japonês nos surpreende com filmes diferentes e de grande sensibilidade. Nagisa Oshima, Hayao Miyazaki, Shohei Imamura, Hideo Nakata são alguns dos nomes exóticos de realizadores que aprendemos a conhecer e admirar.

Produzido no ano passado, Partidas (Okuribito), de Yôjirô Takita, foi premiado com o Oscar de melhor filme em língua estrangeira de 2008 e também surpreendeu Hollywood como um filme de concepção original, que fala da morte sem implantar o terror que o cinema americano inevitavelmente associa a este tema.

Trata-se de um filme ao mesmo tempo dramático e divertido, onde a morte é tratada como um ritual cuja beleza depende da maneira de encarar esta partida que todos nós um dia iremos empreender.

O estilo de Takita é ao mesmo tempo leve e reflexivo, com a colaboração de atores extraordinários cuja forma de atuar transmite com precisão as nuances emocionais e a humanidade dos seus personagens.

O cinema americano de hoje poderia aprender muito com o moderno cinema japonês.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Eduardo


O homem mais elegante e encantador que conhecí chamava-se Eduardo Garcia. Um príncipe. Não sei por onde ele anda. Fui seu amigo por mais de quarenta anos e acompanhei suas venturas e desventuras com as mulheres. Diplomático, educado, sensível, com ar desprotegido, manteve desde a adolescência um romance com oito diferentes namoradas - ao mesmo tempo.

Surpreendente como ele conseguia manter o equilíbrio saindo ora com uma, ora com outra. Durante anos elas jamais souberam que faziam parte de um pequeno harem e ele usava sua grande habilidade para driblar os telefonemas de todas, no fim de semana, até conseguir resolver, diante de grandes dúvidas, com qual iria se encontrar.

Por maior que seja a habilidade de um homem, ele nunca enganará uma mulher durante todo o tempo, quanto mais oito, e elas acabaram por descobrir a situação em que há muito viviam. Algumas se uniram para executar pequenas vinganças. Um domingo, na praia, ele estava na companhia de uma delas quando percebeu que outra se aproximava e estendia a toalha na areia. Alguns minutos depois, mais uma delas sentou-se nas proximidades. Uma difícil situação, que Eduardo resolveu tomando várias cervejas seguidas, até adormecer.

Quando acordou, anoitecera. Ele estava sozinho na praia imensa.

sábado, 14 de novembro de 2009

As tribos


As variadas tribos de Copacabana validam a palavra diversidade, que anda na moda quando se fala de uma sociedade moderna que aceite de bom grado o direito das minorias. Pois minorias é o que não falta no bairro. A primeira delas é a dos velhos que habitam os prédios antigos e formam a primeira referência. Exibem sua pobreza e sua dignidade nos supermercados, nos bancos, nas festas e nas ruas distantes da praia. Eles vieram para cá nos anos cinquenta, antes que Ipanema e Leblon despontassem como áreas residenciais e muito antes da Barra, o enorme areal hoje ocupado pela classe emergente dos subúrbios.

Tem os boêmios que enchem os bares da noite e, entre as profissões noturnas, ainda se destacam as jovens prostitutas e prostitutos que fazem ponto na Avenida Atlântica. Um garçon me chamou a atenção para a raridade das velhas prostitutas de antigamente porque, segundo ele, as de hoje tomam drogas e morrem cedo.

Há o mundo, o submundo, os atletas, as favelas, os jogadores de cartas das praças públicas, os pequenos e os grandes ladrões, criminosos e policiais de todos os matizes. Todos vivendo juntos. 150 mil pessoas em 79 ruas, sem contar os turistas e os que vêm de outros bairros e enchem a praia no fim de semana.

Hoje, um sábado quente, o bairro ferve, os bares lotam, as mulheres se despem em Copacabana, o mais cosmopolita e democrático e também o mais louco dos bairros da cidade.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

This is it


As altas ombreiras, lapelas largas e roupa justa brilhante como a de um toureiro ajudam a compor, junto com extraordinários efeitos cenográficos, o ambiente pop em que Michel Jackson surge e reina como um duende hipercinético. Sua voz fina, muito bem colocada, atinge notas altíssimas, a banda o acompanha nos agudos e os dançarinos em sua volta repetem todos os seus gestos e criam um extraordinário espetáculo visual num palco que parece enorme e que assim mesmo se amplia ao infinito.

This is it
é um musical produzido com o material filmado durante os ensaios do show que iria assinalar, em Londres, a volta de MJ ao palco. O resultado faz a platéia do cinema imaginar: se aquilo tudo era um simples ensaio, o que dizer do espetáculo mesmo, no dia da sua estréia? Kenny Ortega, diretor do show que jamais vai estrear, fez do making of um filme que não será esquecido.

Michel Jackson foi um pop-star com uma grande intuição dos efeitos que uma cena poderia provocar na plateia. Penso que até sua transformação física ao longo dos anos atendia à busca de expressividade e à construção de uma bela figura de si mesmo a ser apresentada nos seus espetáculos. Talvez Spike Lee tivesse razão quando disse, aqui no Brasil, que ele era o maior artista do mundo.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Retorno


Ele andou sumido por um bom tempo e reapareceu ontem, no fim da tarde, no botequim de sempre. Está bem mais pálido, com ar ainda mais doente. Registrei aqui a sua ausência:

Clique.

Ontem estava sozinho, sem os três habituais companheiros. Continua fumando muito. Bebia caipirinha em copo longo, com muito gelo, certamente para compensar o forte calor que anda fazendo. A bengala repousava numa cadeira e noto que a mão passou a tremer, enquanto fuma. Seu olhar não para. Observa cada uma das pessoas que passam na calçada. Presta mais atenção aos jovens, moças e rapazes que voltam da praia no final do dia.

Estas tardes muito quentes da primavera prolongam-se no horário de verão e os dias ficam mais longos, a noite demora a chegar. Ele bebe mais um pouco e fuma mais alguns cigarros. Quando finalmente começa a escurecer, levanta-se, apoia-se na bengala, espera o sinal abrir, atravessa vagarosamente a rua e dobra a esquina da República do Peru.

domingo, 8 de novembro de 2009

O estouro da boiada


Em plena primavera, aí está o verão com seus sobressaltos. Já bateu o recorde de calor do ano e as mulheres estão mais nuas. O suor que escorre e o semblante aflito das pessoas trazem a certeza de que pelo fim de dezembro, princípio de janeiro, a cidade verá amolecer o asfalto das ruas. Ontem, um gaiato já fritava um ovo numa depressão da calçada da Avenida Atlântica.

Dizem que vai chover mas a previsão do tempo no Hemisfério Sul não merece confiança e as praias vão continuar ocupadas por multidões que cobrem completamente a faixa de areia. As praias trazem perigo, neste calor, pois os jornais gostam de anunciar arrastões e basta uma altercação entre dois banhistas para provocar o estouro da boiada. As pessoas começam a se afastar da briga, algumas correm e, de repente, dá-se o pânico, uns atropelam os outros e os ratos de praia fazem a festa.

Nenhuma multidão é capaz de pensar. Ela obedece ao comando do mais louco dos seus componentes

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Viajando de metrô


Seis horas da tarde, o metrô em direção ao centro ferve de calor e gente. A imagem de sardinha em lata me vem à cabeça e um jóvem suado come dois churros e lambe os dedos. O comboio para em Botafogo e permanece parado enquando os auto-falantes avisam que se espera o tráfego se normalizar à nossa frente.

Com o trem na espera, de portas abertas, mais passageiros entram no último vagão, que fica bem ao lado da escadaria. Alguns chegam correndo e forçam a entrada, enquanto outros mais tímidos olham para a porta espirrando gente, desistem e correm para procurar outro vagão.

É o prenúncio do forte verão que está chegando. Muitos estão voltando da praia, outros voltam para casa depois do trabalho. Constato algo interessante: já vivi situação semelhante no metrô de Paris e sinto no ar que o povo do Rio tem cheiro melhor do que o povo de lá.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Procura-se o nome do poeta


O amigo Maldonado encontrou na net um poema sem identificação de autoria e pergunta se eu teria alguma ideia de quem o escreveu. Também não o conhecia nem sei do autor. A linguagem, o tema, a ausência de auto-comiseração lembram o melhor de Charles Bukowski. É um belo poema. Se alguém que passar por aqui souber quem o escreveu, por favor dê notícia.

O que sobrou de mim


O que sobrou de mim não é bastante
para mostrar o desperdício de meus sonhos

A gente se acostuma às próprias rugas,
Com a água, um a um, vão os cabelos
Cultivamos vícios que fedem nas latrinas
Orgulhosos acariciamos com a língua
o dente de titânio implantecente a gengiva
Capengamos e mentimos que nossos ossos
se ajustam e, em surdina, nós ganimos
só agarramos com vontade o veludo

O que sobrou de mim
foi muito pouco para a sede
do que ainda quero viver

Vivi o que podia
mas como ia saber
que a vida não tem fim?

Desde o início
não importa a idade

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Vôo para Vitória


O Galeão lotado e as longas filas nos balcões da Gol davam logo notícia de que algo fora da rotina acontecera. A frente fria fechara o aeroporto de Vitória desde a véspera mas naquele momento acabara de abrir e embarquei num avião lotado pelos passageiros do dia e pelos que haviam sobrado do dia anterior.

Quase chegando – é um vôo de 40 minutos, na saudosa e farta época da Varig era o tempo exato de duas doses de uísque – o comandante avisou que o tempo fechara de novo e dessa vez Vitória não abriria mais pelo resto do dia. E aterrissou em Belo Horizonte.

Fiquei na dúvida se ligava para o amigo Zé Alberto e o convidava para jantar no Mercado Municipal, ponto alto da boa gastronomia mineira, mas eu tinha compromisso no Rio, nesta sexta, e me contentei com a barrinha de cereal das modernas companhias. Lidei com o nervosismo das bonitas moças da Gol diante do tumulto de um avião lotado que surge inesperadamente, passageiros alterados, alguns sem conseguir voltar para casa depois de dois dias de tentativas vãs.

Consegui um lugar de volta para o Rio, depois de visitar o aeroporto de Confins, batizado como Tancredo de Almeida Neves.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Comunicação à distância


Num desses dias de calor que antecedem a chuva nesta primavera estranha, estava eu sem camisa, trabalhando no computador, quase nu, sozinho no escritório, quando o Skype entra no monitor com a imagem do bom amigo Jean Buclet, chamando de Paris. É como sempre um prazer falar com ele, vê-lo na tela e ouvir sua conversa inteligente, cheia de sabedoria.

Dessa vez, me chamou a atenção as contradições do clima em que vivemos. Ele, a 10 graus centígrados no outono do seu país, vestia um pullover dentro de seu apartamento ao lado da igreja de Saint Sulpice. Eu, práticamente nu como um índio da floresta amazônica, compensava os 30 graus com o ar condicionado que não conseguia vencer a temperatura quente da tarde de Copacabana.

Vivemos num mundo cada vez menor e cada vez mais próximo. O que diria disso o meu avô, que viveu em suas terras do sertão nordestino e pensava que o mundo, a partir das suas fronteiras, encontrava-se num planeta muito, muito distante?

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Vícios


O homem bebe para mudar sua maneira de ver o mundo, fuma pelo prazer da tragada, ingere drogas para alterar seu psiquismo e pratica execícios para obter a euforia que a endorfina lhe proporciona. E vicia-se, torna-se dependente a ponto de só sentir-se em estado normal depois de absorver a substância que vai equilibrar suas emoções, por algum tempo.

Compreendo todos os vícios e suas razões ligadas ao prazer mas percebo um certo mistério e tenho dificuldade de entender o vício do jogo. Doistoievsky escreveu com O Jogador uma de suas obras-primas e foi buscar no seu próprio vício a matéria do romance. Mas deixou por explicar o mistério das suas motivações mais profundas.

Acredito que o jogador compulsivo traz consigo um tal vazio, um tal sentimento de solidão e pobreza que é capaz de arriscat tudo num único lance que possa resgatar de vez a sua angústia. É disto que se alimentam as loterias, bingos, casas de jogo clandestinas e a própria Bolsa de Valores.

sábado, 24 de outubro de 2009

Cena em Copacabana


Antes do meio-dia ele senta-se à mesa do botequim que fica em frente ao colégio. Pede um café, abre uma revista e faz palavras cruzadas. Parece ser eximio nessa arte porque resolve os problemas e escreve cada letra com grande rapidez, mas nao parece concentrado no que faz, pois levanta a cabeça a todo instante e olha em direcao à porta do colegio.

Tem de aparência pouco mais de cinquenta anos, é magro, calado e triste. Seu olhar não divaga, permanece atento à porta do colégio de onde, ao meio-dia, sái o bando de adolescentes dispensados das aulas. Meninos e meninas vestindo uniforme na eterna algazarra de risos e mútuas provocações. Ele se levanta da mesa e se dirige à porta do colégio, onde encontra e abraça uma das garotas que acabam de sair pelo portão.

Os dois caminham abraçados, rindo um para o outro, ambos possuem traços fisionômicos bem parecidos. Dirigem-se vagarosamente ao ponto de ônibus onde ela pega um em direção à Barra. Ele ainda permanece na calçada, acena para ela que retribúi com o braço de fora da janela do ônibus. Então ele volta ao bar, senta-se à mesa, pede um chope e fica por lá fazendo palavras cruzadas pelo resto da tarde.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Kurosawa


Revi ontem, mais uma vez, Sete Samurais, de 1954, com a mesma sensação de ver pela primeira vez. Akira Kurosawa tem a capacidade dos grandes artistas de enriquecer de tal forma o seu trabalho com detalhes sutís que só a observação continuada e atenta vai aos poucos revelando. As cenas do filme, desenhadas com meticuloso enquadramento e composição antes de serem filmadas, misturam-se a diálogos de alta qualidade literária e fina sensibilidade aos fatores da vida e do destino dos homens.

Kurosawa foi um artista raro e um cineasta que de um modo ou de outro influenciou todos os filmes ocidentais de alguma qualidade que vieram a ser produzidos na segunda metade do século passado. Tanto os épicos quanto as aventuras de samurais que produziu foram vistos e imitados em Hollywood com versões mais pobres.

Penso que ele não tem sido cultuado como deveria.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Viral versus TV


Já falei aqui sobre o assunto, mas volto a ele por observar que os conceitos fortes e memoráveis que marcaram a revolução criativa da propaganda são aos poucos substituidos pelos shows de produção tecnológica do chamado marketing viral. Os grandes anunciantes preferem investir na feitura de filmes pirotécnicos para exibição via internet. Eles enchem de tal forma os olhos dos internautas que estes não resistem em passar o comercial uns para os outros. formando extraordinária audiência.

A Procter & Gamble, gigante americano, diz que anunciou a marca Physique de xampu usando o viral e só gastou o dinheiro aplicado na feitura do filme. Pela forma tradicional, com anúncios na TV, seriam necessários alguns milhões de dólares. E a Honda reposicionou sua marca Accord com outro viral que, num show de efeitos tecnológicos, juntava todas as peças e construia um carro. Veja aqui o comercial.

O marketing viral é isso: filmes que divertem e surpreendem o homem sozinho diante do computador que, num gesto típico dos usuários da rede, passa adiante o que vê para todos os contatos da sua lista de endereços de email. Lucro para os anunciantes, prejuizo para a TV. E este é um movimento sem volta.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Baader-Meinhof


A dura política intervencionista americana nos anos 70 teve como contraponto inúmeras ações revolucionárias da extrema esquerda, em vários países. A maioria delas surgidas no movimento estudantil alvo de repressão violenta, como foi o caso de diversas siglas que atuaram no Brasil, dos tupamaros, no Uruguai, e dos montoneros, na Argentina.

Nenhum desses movimentos foi tão radical quanto a Facção Exército Vermelho (RAF, na sigla em alemão), mais conhecido como Baader-Meinhof, nomes dos seus dois principais líderes, cuja história serviu como tema do excelente filme de Uli Edel.

Em linguagem seca e sem concessões, Edel, a partir de um livro de Stefan Aust, foi fiel aos fatos e à agitação promovida na Alemanha pelos filhos da geração que construiu o nazismo, desta vez posicionados no outro extremo ideológico da política feita por seus pais.

O ódio como instrumento da política, o cinismo do Estado e os equívocos de uma juventude sectária estão dramáticamente unidos nesta história contada em um filme feito com honestidade e muita competência.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Salada verde

Sentado no restaurante, acompanho a corrida das crianças. As mães parecem cansadas e incapazes de reprimir a alegria infantil que corre por entre as mesas, esbarra nos garçons e grita de forma fina e estridente. Por que nossas crianças são tão mal educadas, pergunto para mim mesmo. E olho para um gordo que come uma salada de folhas verdes.

O gordo está triste, olhando as folhas verdes. Ele as corta, em pedaços pequenos, o alface, o brócoli e o agrião. Joga por cima uma boa quantidade de azeite, leva à boca uma garfada e me dá a impressão de que aumenta a sua tristeza. Dá-me uma certa vontade de consolá-lo dizendo-lhe que “o brócoli é um vegetal muito rico em Cálcio e Ferro, minerais importantes para a formação e manutenção de ossos e dentes e à integridade do sangue”, conforme li em algum lugar. Mas sei que isso não o consolaria.

Solidarizo-me intimamente com o gordo, com a sua tristeza olhando a salada verde e a sua impaciência ouvindo o alarido daquelas crianças de mães cansadas.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Ressurreição


Tolstoi escreveu Ressurreição, seu último romance, na virada do século XIX. O livro não é um dos mais citados desse escritor que, aos 82 anos, rico e famoso, fugiu da família e preferiu morrer como um miserável num vagão de terceira classe. Seu nome é imediatamente associado a Guerra e Paz e Anna Karenina, embora Ressurreição seja um desses livros que, apenas ele, justificaria toda a obra de um escritor.

O dilema de um homem que, na idade madura, procura redimir um erro cometido na juventude serve para Tolstoi exibir sua genialidade como artista mas também para nos provar que a estética não existe separada da ética e que, apesar de tudo, de todos os crimes cometidos e de todas as iniquidades, ainda pode haver grandeza no seres humanos. Um livro adequado ao nosso tempo sem esperanças.

Não resisto e transcrevo um dos primeiros parágrafos de Ressurreição:

«Em vão, centenas de milhares de homens, amontoados num pequeno espaço, se esforçavam por desfigurar a terra em que viviam. Em vão, a cobriam de pedras para que nada pudesse germinar; em vão arrancavam as ervas tenras que pugnavam por irromper; em vão impregnavam o ar de fumaça; em vão escorraçavam os animais e os pássaros - Em vão… Porque até na cidade, a Primavera é Primavera.»

sábado, 10 de outubro de 2009

Kim Novak


Num dia qualquer dos primeiros anos da década dos setenta, almoçando no Nino, que foi um grande restaurante de Copacabana, ví Kim Novak correr para o banheiro engasgada por um forte molho de pimenta malagueta. Ela sentara-se na mesa em frente, na companhia de Jorginho Guinle. Todas as mulheres belas e famosas que passaram pelo Rio, enquanto ele era vivo, sairam em sua companhia. Como ele conseguia?

As mesas eram muito próximas e dava para ouvir tudo o que se dizia na do vizinho. Jorge bem que tentou dissuadí-la de colocar tanta pimenta no prato do picadinho, mas ela insistiu e disse que adorava chili, estava acostumada com a do México, onde costumava passar o verão. Kim parecia gostar de comer e jogou várias colheres cheias de pimenta em cima do picadinho guarnecido com purê de abóbora, arroz, farofa e caldo de feijão.

Eu conhecia bem aquele molho e fiquei na espreita da sua reação. Muito branca, depois da segunda garfada – na primeira nada aconteceu – ela começou a ficar muito vermelha. Em seguida arregalou os olhos, jogou o guardanapo em cima do prato e correu para o banheiro.
Seu acompanhante olhou para nossa mesa e abriu os braços, como quem dizia o que eu poderia fazer?

Ela voltou quase meia hora depois. E pediu um sorvete.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Fina iguaria

Na Idade Média européia, o pão era o alimento do povo. Apenas os nobres comiam carne, fornecida pelo esporte da caça, pois a nobreza dedicava seu tempo aos jogos, à caça e à guerra. Até hoje se utiliza a palavra pão, figurativamente, para definir o alimento de maneira geral, pois era só o que se comia, se não se fosse da família de um senhor feudal.

O homem moderno, no entanto, perdeu a lembrança dos animais de onde vem a carne posta em sua mesa. Vê apenas um bife comprado no supermercado e preparado no fogão a gás.

A tête de veau, que ilustra este post, é uma das receitas mais apreciadas pelo povo francês, mas que costuma assustar o turista quando lhe é apresentada à moda do interior do país: a cabeça da vitela cozida inteira. Já nos restaurantes parisienses, o prato é arrumado na forma da arte dos grandes chefs. Quase ninguém se lembra de que os miolos, a língua e todos os outros ricos pertences vieram da cabeça de um animal sacrificado à gula dos homens.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Sexo no mercado

A porno shop fica entre a igreja e o supermercado, na esquina de Nossa Senhora de Copacabana com Hilário de Gouveia. Sua localização entre estes dois ícones deve simbolizar alguma coisa, algo como a afirmação do sexo, situado entre o alimento da alma e a nutrição do corpo, entre o sublime da mensagem divina e a necessidade de comer para a sobrevivência na terra.

Os clientes disfarçam para entrar nesta catedral da luxúria que é também supermercado da lascívia. Fingem que estão andando pela avenida e de repente pulam para dentro da loja. Os homens são os que mais se escondem, ao contrário das garotas curiosas que entram, aos risos, na procura de sensações proibidas.

O sexo transformou-se numa mercadoria responsável pelo faturamento de bilhões de dólares em todo o mundo, segmentado entre o fetichismo, o voyerismo e a velha, tradicional prostituição. Canais de tv, revistas, lojas, cinema, night-clubs e o show-business são os distribuidores desse produto tão desejado, alvo de histórica repressão e que, quanto mais reprimido, mais valorizado se torna.

domingo, 4 de outubro de 2009

Amor na tarde

Ela chegou apressada e parecia nervosa. O botequim estava cheio mas ela teve sorte de encontrar uma mesa bem no meio do burburinho. O garçon aproximou-se e afastou-se quando ela abanou a cabeça. Não queria nada. Ficou roendo as unhas.

Fazia quase frio, no fim de tarde de Copacabana. A Barata Ribeiro como sempre congestionada e o desfile do povo pela calçada, os que voltavam do trabalho, os que vinham da praia, alguns turistas curiosos tentando ler o cardápio escrito na porta, alguns mais audaciosos procuravam um lugar para sentar-se.

Ela devia ter talvez uns vinte anos, continuava roendo as unhas e olhava para um lado e para o outro, virava-se, estava esperando alguém. Ele chegou enquanto ela olhava para o lado contrário ao que ele veio. Ela tomou um susto e os dois riram, ele sentou-se numa cadeira bem próxima à dela.

Eles se abraçaram demoradamente. Então os dois se beijaram. As pessoas que estavam em volta pouco prestaram a atenção naquele beijo que durou, calculei, bem uns três minutos. Foi bem no fim da tarde, no princípio da noite.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Napoleão imperador

Estou lendo Napoléon, de Pierre Norma, de onde traduzi este trecho que descreve a coroação do imperador:

Napoleão veste as insígnias imperiais e cingiu a cabeça com uma coroa de louros elaborada em ouro. Assim que toma lugar na igreja, diante do altar, numa poltrona simples, a cerimônia começa. Pio VII faz a santa unção na fronte, braços e mãos do Imperador, benze a espada e com ela cinge-lhe a cintura, entrega-lhe o cetro e se aproxima para colocar-lhe a coroa de ouro maciço modelada pela de Carlos Magno. De súbito, Napoleão o afasta, toma a coroa e ele mesmo a coloca sobre a cabeça. Um frêmito de surpresa percorre a multidão. Josefina, por sua vez, desce do trono e se dirige ao altar, onde o Imperador a aguarda, seguida das damas palacianas e de todo o seu serviço de honra; seu manto é carregado pelas princesas Caroline (Madame Murat), Julie (Madame José Bonaparte), Elisa e Louise (Madame Luiz Bonaparte), que a detestam. Seu esposo pousa sobre sua fronte uma coroa encimada por um diadema feito em diamantes. A coroação termina, Napoleão e Josefina sobem ao trono. O papa aproxima-se e abençoa o novo imperador. Um formidável grito de “viva o Imperador!” parte de todas as vozes e faz tremer as abóbodas de Notre-Dame, os músicos tocam; lá fora, os sinos dobram, o canhão troveja.

Segue-se uma festa que vai durar três dias.

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Mendigos

Muitos mendigos desapareceram das ruas de Copacabana, talvez porque os turistas ainda não chegaram – eles preferem o verão – talvez em busca de outros bairros mais nobres e mais ricos. Mas ainda existem os que defendem o seu ponto e entre eles se destacam a mulher elegante, o da falsa dor de dente e o da falsa paralisia cerebral.

Ela não chega a ser propriamente elegante mas, a julgar pelas roupas, dificilmente seria identificada como pedinte. Está sempre sem dinheiro para a passagem e na sua abordagem, com expressão preocupada no rosto, pede dinheiro para completar o preço da viagem de ônibus até Nova Iguaçu. Sempre nas imediações da Praça Serzedelo Correa, sua tática tornou-se conhecida nas redondezas e já não faz tanto efeito. Estaria na hora de procurar outro ponto.

No sinal de trânsito da Avenida Atlântica, com o rosto denotando enorme sofrimento, ele põe a mão no queixo e, com a ajuda da outra, balbucia um pedido. De vez em quando, para descansar o braço, troca de mão e de lado do queixo. Já o vi sorrindo e conversando, antes de incorporar a dor de dente e começar a performance.

O outro imita com perfeição um portador de paralisia cerebral. Movimentos desordenados, andar de pernas bambas e voz engrolada, sorridente e simpático. Já testemunhei seu desembaraço, ereto e elegante, desfilando num bloco de carnaval na Barata Ribeiro, abraçado a uma bonita mulata.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Luar sobre Copacabana


Névoa e gás envolvem a lua,
paredes e muros de Copacabana.
Reflexos imitam a lua, deságuam
nas línguas negras,
são estranhos animais.

Invisível-indivisível, o corpo
anda : corpos velhos sob a lua.
Os velhos passam, não são vistos.
São peixes transparentes contra a água
de outros corpos na rua.

Entre o mar e os edifícios
o areal rompe as ondas,
suja os olhos e a boca,
constrói no ar seu roteiro.
Deixa traços no caminho.

Uma noite sem mistério
ou sonho. Um homem senta-se ao bar,
aspira o hálito do tempo,
bebe ao futuro. As horas,
uma a uma, desperdiçam seus sinais.

O movimento dos vultos,
cães silenciosos, homens apagados
misturados ao trânsito da noite.
O tempo espelha sua lâmina
no refluxo das águas.

O sereno, as sombras e o silêncio
juntam-se nas esquinas das ruas
e avenidas do Leme ao Posto Seis.
Transitam além dos olhos, na alma
que não consegue adormecer.

Há um território do sono
explorado pelo mar e seus ruídos ,
habitação do medo , onde fantasmas
balbuciam sortilégios e os mortos
são aves recolhidas pelo vento .

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Yukio Mishima


Essas chuvas na primavera me trazem à lembrança o romance de Yukio Mishima – Neves de Primavera – que tem como pano de fundo um Japão ameaçado pelas influências ocidentais, perdendo suas referências culturais e sendo invadido pelo consumismo e a superficialidade.

O romance se passa na era Miji da história japonesa, que vai de 1867 a 1912 e retrata uma bela história de amor e amizade num país que perde suas referências culturais.

A elegância e a sutileza do estilo de Mishima, todo o seu conteúdo poético nos mostra como eram diferentes as formas de ver o mundo entre o Oriente e o Ocidente. Mishima, que chegou a fundar um movimento de caráter político para manter as tradições japonesas, escreveu mais de 40 livros entre romances, ensaios, poemas e peças para o teatro kabuki. Suicidou-se em 1970, cumprindo o ritual do harakiri.

Tinha acabado de escrever o último volume da série que chamou O Mar da Fertilidade, da qual Neves da Primavera foi o primeiro. Seguiram-se Cavalos em Fuga, O Templo da Aurora e, por último, A Queda do Anjo.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Cachaça


Marginalizada historicamente pela aristocracia, a burguesia e a melhor sociedade, a cachaça teve algum momento de glória depois que inventaram a caipirinha. Mas sofreu de imediato a concorrência do rum e, depois, da vodka, que sempre dispuseram de poderosos recursos de marketing. Voltou a ser a bebida da escumalha, dos pés-rapados, dos matutos do interior e do lumpen urbano, que sempre a tomaram pura.

Há alguns anos, com os programas de qualidade do Ministério da Agricultura, o aparecimento de associações de produtores e o cuidado geral na fabricação, ela começou uma trajetória de ascensão social e hoje já tem até lugar na pauta de exportações.

Estima-se que, se forem considerados os alambiques clandestinos, a produção de cachaça no Brasil, calculada em hectolitros, é maior que a de cerveja.

Duas regiões se destacam como produtoras de grandes cachaças: o Norte de Minas, principalmente a micro-região de Salinas, com sua terra rica em salitre, e o Nordeste, com sua cana caiana.

A burguesia e a melhor sociedade, com relutância, começam a aceitar a cachaça e também a identificar e valorizar seu terroir.

domingo, 20 de setembro de 2009

Domingo na praia


As minorias escolhem a praia para protestar contra a discriminação de que são vítimas e a Prefeitura para promover shows e demonstrar boa vontade com a população. Carros de som circulam em abertos decibéis, vendedores de picolé gritam e a garotada faz zig-zag nos skates.

Os quatro quilômetros do calçadão de Copacabana transformam-se num casbah onde tudo se vende, tudo se expõe e o barulho incomoda. Na ciclovia, bicicletas correm, ameaçam pedestres invasores do seu espaço, uma criança cái e chora. As competições de corredores de rua ocupam a pista fechada para o lazer e quem precisa de alguma forma aparecer estende uma faixa com um protesto qualquer.

As mulheres desfilam rebolando nádegas imensas, os quiosques espalham cheiro de gordura e um trio elétrico amplifica a voz de um péssimo cantor.

A praia, aos domingos, é um lugar desagradável. E ainda não começou a campanha política.

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Uma geração privilegiada


O amigo me dizia que a nossa é uma geração privilegiada Quando tivemos nossa iniciação, haviam há pouco descoberto a penicilina e ficamos livres da sífilis e dos gonococos. Em plena juventude, a pílula libertou as mulheres e fomos beneficiários da revolução sexual dos anos sessenta, contemporâneos de Woodstock, dos Beatles e dos Rolling Stones.

Muitos de nós se perderam na escuridão das drogas, outros procuraram mudar o mundo. Muitos se tornaram velhos reacionários, vociferando contra tudo o que é novo.

Mas a prova de que a nossa geração teve muita sorte, dizia o amigo, é que no momento da vida em que os nossos antepassados se retiravam para uma vida de forçada castidade, foi descoberto o Viagra.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

O terror como modelo


Os suicídios em série dos empregados da France Telecom revelam bem o caráter perverso do estilo de administração adotado pelas grandes empresas. O mito da eficiência e da produtividade, baseado na exploração em tempo integral do pessoal e cultivado pelos gerentes, começa a fazer as suas vítimas.

As empresas mundializadas orgulham-se de dizer que contam com milhares de empregados full-time. Isto significa que o contrato de trabalho, hoje, não respeita horários. O empregado está à disposição da empresa 24 horas por dia, sete dias por semana. O poder que sobre ele é exercido estimula o surgimento de chefes medíocres mas com atribuições de julgar, premiar, transferir, punir e destruir carreiras profissionais.

É o reinado do estresse e da insegurança, o terror como modelo de gestão de pessoas.

A ilustração é um quadro chamado Le Suicide, de Edouard Manet.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Romeo Dallaire


O General canadense que, em 1994, comandou as tropas da ONU numa missão em Ruanda, voltou para casa levando consigo um colapso emocional e a descrença na capacidade das Nações Unidas como força de paz. Romeo Dallaire (www.romeodallaire.com) assistiu, incapacitado de qualquer ação para impedí-lo, ao genocídio que massacrou 800 mil ruandenses em poucos dias, numa guerra étnica que até hoje mantém o país em permanente crise.

Depois dessa experiência, em que se viu abandonado pela própria ONU e pelos grandes países, que nada fizeram para evitar o massacre, o General Dallaire tentou por duas vezes o suicídio e conseguiu, com muita dor, se recuperar emocionalmente. É hoje um ativista da paz e candidatou-se, com sucesso, ao Senado do Canadá.

Seu livro – Shake hands with the devil – já rendeu dois filmes. É o testemunho da sua indignação e de um tempo que assistiu à falência da humanidade.

sábado, 12 de setembro de 2009

A Prado Junior


Durante muito tempo, pensei que fosse uma rua. Mas a Prado Junior é uma avenida, de longa tradição na boemia de Copacabana. Lá funcionaram o Beco da Fome e o Cinema 1 e seu nome esteve sempre ligado às moças que fazem a vida e à própria vida marginal.

Pelo menos três grandes catedrais do sexo – Barbarella, La Cicciolina e Frank’s Bar – estão nas suas proximidades. Foi lá que surgiram as primeiras boates do Rio, como Tabaris e Plaza, de fama esquecida e que se perderam no tempo.

Prado Júnior, que a ela emprestou seu nome, foi prefeito do Rio quando a cidade se chamava Distrito Federal, durante o governo Washington Luiz. Era um paulista meio aventureiro e simpático.

Nos bares da esquina da praia, reunem-se estranhos tipos de turistas, vindos dos mais diversos e distantes paises. Sempre que passo em frente, tenho a impressão de que grande parte de todos os crimes praticados no mundo são planejados alí.