segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

As brancas



Doka, velho boêmio, aconselhava a tomar cuidado com as brancas. Referia-se a gin, vodka, tequila, todas as aguardentes que à distância pareçam água. Elas são perigosas, dizia, porque a embriaguês que provocam muitas vezes se confunde com a loucura.

Doka foi dono de um bar que sofreu a intervenção da família, pois era também o seu maior cliente e estava falindo a casa. Posto fora do balcão, foi obrigado a pagar pelo que bebia.

Quando se inscreveu nos AA, dizia que sua força de vontade prevalecera. Era capaz de sentir desprezo por qualquer bebida, só o cheiro de cachaça o perturbava, a ponto de sonhar todas as noites com um cálice cheio dela, transparente e branca. O cheiro que sentia lhe penetrava e o fazia perder o sono.

domingo, 19 de fevereiro de 2017

O lado humano



Um governador e sua dama, o negociante que sentava entre os mais ricos do mundo, os políticos cheios de poder, os famosos, os belos e os festejados, sua queda e desonra não nos deixam esquecer do que somos feitos. Há uma substância invisível, estranha, obscura e má que traça linhas para o destino e reveste o coração dos homens.

A queda dos ídolos, a desgraça dos poderosos e a inútil fantasia da onipotência são testemunhos da condição humana. No seu tempo, Shakespeare gozava de enorme sucesso popular com suas peças que exibiam a fragilidade dos poderosos. Hamlet, Othelo, Macbeth, o Rei Lear, Ricardo III, eram todos aristocratas, distantes do povo, vivendo suas tragédias particulares.

Os grandes trágicos gregos mostravam também que nem os deuses estavam isentos das fraquezas e das quedas. Quando desmorona, o Olimpo dos dominadores deixa revelar que poder e dinheiro estão condicionados por mesquinhos sentimentos humanos. É quando o destino demonstra a miséria que existe na grande planície dos instintos sombrios.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

Ruas





Existem ruas vivas e ruas mortas. As de Brasília, como as da Barra da Tijuca, são ruas onde a vida não pulsa, onde se vê apenas o desfilar dos automóveis com seus passageiros isolados, prisioneiros entre vidros fechados e escurecidos de insulfim. São vias em que os sinais de trânsito, quando acendem os farois vermelhos, transformam-se em paradas ameaçadas por assaltantes que podem saltar das sombras e nos levar a bolsa e a vida.

Nas ruas mortas não existem bares, nelas as mulheres não desfilam diante de olhares perturbados pelo desejo nem se vê nas esquinas o encontro de pessoas que há tempo não se viam e de repente uma surpreende a outra.

Existem ruas onde a vida se manifesta nas lojas, nos botequins e em todas as esquinas, onde as mesas de calçada permitem observar com tranquilidade o desfilar da comédia humana. A Barata Ribeiro e a rua do Catete são exemplos de ruas que vêm de outros séculos mas cuja antiguidade não lhes tirou a animação e a vida. Ao contrário, deu-lhes um estilo e algum orgulho de serem a prova de que houve uma forma diferente de viver uma cidade.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

O charme



Quando hoje vejo fumantes acuados nas portas dos edifícios onde são proibidos de entrar, quando me lembro dos trepidantes anúncios de cigarros na TV e das coloridas fotos nas páginas nobres das revistas, ainda me surpreende a rápida derrocada do hábito de fumar. Do símbolo de status e poder que exalava, do charme social que possuia, o cigarro foi reduzido em poucos anos a um vício mesquinho e doentio.

Quase todos os fumantes que ainda insistem nesse hábito pensam em deixá-lo mas sentem-se incapazes. A cada dia novas doenças são associadas ao fumo, além do câncer pulmonar sobre o qual parece não haver mais dúvidas. É o terror substituindo o charme.

Pergunto-me sobre o que restou dos quinhentos anos de prazer que o fumo trouxe à civilização, quando foi descoberto logo após a conquista do Novo Mundo. Apenas isso, o medo das doenças, a bronquite e o câncer?