domingo, 31 de julho de 2016

O Porto.



“Uma cidade pode ser apenas um rio, uma torre, uma rua com varandas de sal e gerânios de espuma. Pode ser um cacho de uvas numa garrafa, uma bandeira azul e branca, um cavalo de crinas de algodão, esporas de água e flancos de granito. Uma cidade pode ser o nome dum país, dum cais, um porto, um barco de andorinhas e gaivotas ancoradas na areia. E pode ser um arco-íris à janela, um manjerico de sol, um beijo de magnólias ao crepúsculo, um balão aceso numa noite de junho. Uma cidade pode ser um coração, um punho.”

Foi assim que o poeta Albano Martins cantou sua cidade. Portugal surgiu ali, às margens do Rio Douro. O velho ancoradouro dos romanos deu lugar a um país a partir de uma cidade que desde suas origens é apelidada invicta por causa dos atos heroicos da sua história. Construída sobre granito, amada pela gente que lá nasceu, plantada sobre os montes que desenham seus telhados a descer em cascatas coloridas.

quinta-feira, 28 de julho de 2016

O medo





No poema a que deu como título Congresso Internacional do Medo, Drummond escreveu “cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte.
 Depois morreremos de medo 
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.”

Pois o medo acompanha até os heróis valentes. Seus atos destemidos na maior parte das vezes são impulsionados pelo pavor e não pela coragem. A indústria milionária dos filmes de terror explora as fobias irracionais das audiências. Muitos são os que não viajam de avião e os que temem andar pelas ruas do Rio de Janeiro. Desde a infância somos perseguidos pelos fantasmas do medo. Na internet, são muitas as mensagens que amedrontam advertindo sobre vírus mortais e outras ameaças à vida e à saúde.

Doka me confessou que acordara numa ressaca enorme depois de uma noite de bebedeira e foi tomado de pânico. Perguntei o que lhe despertara este pesadelo irracional e ele me respondeu que nada especificamente. Apenas abrira os olhos e sentira-se de corpo e alma assaltado pelo medo difuso mas avassalador de continuar a viver.

sábado, 23 de julho de 2016

Nina



Ela possui um olhar meio vazio, como se olhasse e não visse. É bem velhinha, vestida com elegância numa roupa esportiva branca. O andar é curvado, como se o corpo tivesse encolhido na passagem do tempo mas caminha com alguma firmeza no calçadão de Copacabana.

Tem um cartão pendurado no pescoço com seu nome – Nina – e um endereço na Avenida Atlântica. Alguém da família teve a preocupação de escrever essas informações, provavelmente para obter ajuda no caso de Nina se perder na caminhada e não se lembrar onde mora.

A desorientação é um dos sintomas do Mal de Alzheimer, junto com a facilidade de se perder mesmo em ambientes conhecidos. Dizem os médicos que 3 por cento das pessoas entre 65 e 74 anos são acometidas pela doença. Após os 85, metade.

terça-feira, 19 de julho de 2016

O amor



É difícil explicar o amor. Camões disse que é uma ferida que arde sem se ver. Shakespeare o definiu como beleza, bem, verdade. Vastidão de emoções que confunde o entendimento humano, centenas de definições foram enunciadas mas delas fica sempre a sensação de que estão incompletas. E permanece o abismo entre o sentir e o entender.

Aristófanes, na Grécia antiga, durante um jantar que Platão descreveu segundo depoimentos que ouviu de quem estava presente, explicou o amor. Num passado distante, os seres eram inteiriços. Tinham quatro braços, o mesmo número de pernas, dois rostos numa mesma cabeça. Eram poderosos e valentes. Desafiaram os deuses e foram castigados.

E divididos. De cada um surgiram duas partes com metade das pernas, dos braços, uma cabeça e um só rosto. Separadas uma da outra, as duas partes procuram até hoje se achar. Ansiosamente, desesperadamente, na angustiada busca uma da outra. Às vezes durante toda a vida. Muitas não conseguem jamais se encontrar mas há outras que ao ver reconhecem de imediato a parte que os deuses lhe tomaram. E ambas voltam a se unir com a intensidade de todos os sentimentos humanos. É isto o amor, disse Aristófanes.

sábado, 16 de julho de 2016

A fera



A fera humana ocupa o vértice do poder entre os seres vivos. Dominou todos os outros, organizou-se em tribos, cidades e países, garantiu a sobrevivência da sua espécie. É a única que mata por prazer e encontra-se em conflito permanente consigo mesma. O homem é o único animal que ama e é capaz de assassinar a quem ama. Por ciúme ou porque num átimo é capaz de transformar em ódio o amor que se dizia imortal.

Assassino em massa, genocida, capaz de torturar outro homem e conceber o horror, inventou Deus acreditando que bondade e onipotência eram a sua própria semelhança. Desesperado, acossado por medos imaginários, foi capaz de desenvolver a ciência e a filosofia para tentar entender a angústia que o persegue. Consciente de viver num planeta isolado do universo, olha para o céu à procura de sinais de vida no cosmos. Não consegue se libertar de seus fantasmas.

Mergulhado na escuridão da própria alma, olha em volta e enxerga ameaças no mundo, no próximo, na natureza e no caos. De todas as suas criações, tem orgulho das máquinas de guerra. Cultua a obsessão de matar, de comer animais mortos e escravizar outros bichos. Procura em vão e desesperadamente a beleza da paisagem e quem sabe sequer da poesia na terra de ninguém.


quarta-feira, 13 de julho de 2016

Luares




Cheguei muito tarde num mundo muito velho, disse Arthur Rimbaud. Ele tinha menos de vinte anos quando teve essa revelação. O cansaço paira sobre as nuvens do passado, o desejo da vida avança por dentro de sensações esquecidas e algo nos diz que o tempo também envelhece e confunde o olhar sobre as coisas findas.

Esquecemos quem nós somos e contemplamos a primavera de um país outonal. O odor de chuva na memória de um provinciano desterrado no tempo, nas esferas de um universo confuso onde os extremos nunca haverão de se tocar. Há vida, no entanto. E a vida se arrasta como um lagarto ferido.

Uma paisagem deslumbra os passageiros de um trem acomodado em seus trilhos, incapaz de avançar além de seus limites. Uma velha admira-se com tanta vida em volta, tanta espera de alguma coisa que jamais virá e a luz se apaga no espaço entre as paredes sombrias. Um cão late no escuro, desfazem-se as nuvens, uma criança chora amedrontada entre as sombras. Alphonsus vê um luar velho cair sobre o silêncio.

sábado, 9 de julho de 2016

O parto



Existe a angústia de que são vítimas os escritores e também, em maior ou menor grau, todos os que exercem uma atividade criativa. Vem com a ansiedade após o fim de um trabalho, sensação por muitos comparada a um parto, um sentimento de vazio depois de um grande esforço a que se junta o medo de nunca mais ser capaz de escrever alguma coisa que valha a pena. A vida perderia o seu sentido.

Talvez seja por isso que os escritores costumam beber tanto. A impressão da impotência da infertilidade conduz à desorientação. Norman Mailer dizia que quando não escrevia embriagava-se diariamente e é dele a afirmação de que ficar muito bêbado era uma forma de se matar, com a vantagem de que você morre mas acorda vivo no dia seguinte.

Os biógrafos de Ernest Hemingway dizem que era assim que ele se sentia depois de terminar cada livro. A obra prima “O Velho e o Mar” começou a ser escrita durante uma dessas crises. Com a luta solitária de um velho contra um monstro do mar profundo, ele quis provar a si mesmo que não seria derrotado pela agonia. Há quem acredite que seu suicídio, em 1961, foi diante da desesperada convicção de que não seria capaz de voltar a escrever.

terça-feira, 5 de julho de 2016

Bons tempos



Os anos 1920 e 1960 do século XX foram duas décadas revolucionárias que inauguraram novos comportamentos e novas formas de pensar. Os sessenta foram marcados pelo movimento hippie, a libertação feminina e o impacto dos baby-boomers. Os anos 1920, no entanto, foram mais transformadores e mais criativos. Muito diferentes dos tempos conformistas que estamos vivendo hoje.
Atraída pela baixa cotação do franco francês e o alto valor do dólar entre as duas guerras, chegou a Paris uma leva de americanos que se aliou à vanguarda local e juntos mudaram o que veio depois na literatura, na música e em todas as outras artes. Hemingway, Cocteau, Picasso, Dali, Fitzgerald, Joyce, John dos Passos, Stravinsky, Prokofiev, Tristan Tzara, o surrealismo e o dadaísmo foram uma combinação de inteligência, talento e desejo de revirar o mundo.

Sem um tostão no bolso, às vezes tendo de caçar pombos com uma atiradeira nos Jardins de Luxemburgo para garantir o jantar da mulher e do filho pequeno, Hemingway recordou mais tarde, no apogeu do seu sucesso como escritor, o tempo em que viveu em Paris. Disse que nessa época era muito pobre e também muito feliz.