sexta-feira, 30 de outubro de 2015

O sacrifício


O sentimento de que nada existe para sempre e tudo tem um fim, dependendo só da passagem do tempo, estimula a fantasia do infinito, da possibilidade de outras vidas e até de outras dimensões do eterno. A certeza da morte de tudo e a consciência da solidão do planeta num universo desconhecido plantaram a tristeza dos homens. A invenção da divindade, ao invés da libertação pela transcendência, criou a existência do pecado, da culpa e o fantasma da danação.

A dimensão trágica nos olhos de uma criança acossada pelo sofrimento desperta questões sobre a crueldade, a fatalidade e a existência de Deus. Ao afirmar que o mundo quebra indiferentemente os muito meigos, os muito bons e os muito bravos, Hemingway trazia para o plano individual uma síntese de toda a angustia humana e refletia sobre a inutilidade da virtude diante da tragédia do destino.Talvez o alcoolismo que o atormentava tivesse aí um dos seus fatores.


A tradição religiosa do ocidente crê na vida como uma consequência da morte. O sacrifício do filho mais amado de Deus foi a forma de purgar as imperfeições éticas de um mundo que continuou como era. Alguns chegam a dizer que pior. Talvez esta crença na salvação que só é possível com o oferecimento de uma vida em troca do perdão esteja na origem de todas as ilusões do mundo e seus sacrifícios inúteis. 

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

O poder


A luta pelo poder é inerente aos grupamentos humanos e também realidade nos rebanhos, matilhas e toda forma de convívio animal. Mais do que dinheiro, tem sido o móvel das lideranças que surgem na sociedade. Nada seduz mais do que a capacidade de obrigar os outros a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, mesmo contra a própria vontade. E assim ocorrem os dramas sociais e também as grandes tragédias subjetivas, como Shakespeare mostrou em Hamlet, Macbeth, Julio Cesar e outras histórias do poder que ele contou de forma admirável.

Os ingredientes da luta e do próprio exercício do poder são a traição e a intriga, a inveja e o ódio, a corrupção e a vingança estimulados pela ambição e as fraquezas humanas. Como o poder político é a sua forma mais absoluta, na sua conquista expõem-se as misérias que afligem a condição humana. O crime, o suicídio, o genocídio e a prática de torturar fisicamente os adversários manifestam sua presença. A política é a forma superior de exercício do poder mas também conduz à danação, à derrota e à loucura.


Abraham Lincoln disse que, para julgar o caráter de um homem, basta lhe dar qualquer parcela de poder. E para Erich Fromm a ânsia de poder não tem origem na força mas na fraqueza.Em seu desejo de conquistar a supremacia e a glória, os poderosos recebem de Miguel de Unamuno o aviso de que toda vida, ao final, é um fracasso. Em sua obra, Unamuno tentou dar sentido aos paradoxos.

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Os sinos


Nada do que é humano me é estranho, disse o poeta Terêncio, que viveu em Roma 200 anos antes de Cristo. Em latim, esta frase se escreve "Homo sum: nihil humani a me alienum puto”. Machado de Assis gostava de citá-la eliminando a última palavra, que nada tem a ver com qualquer sentido em português. Machado se rendia aos pudores da época em que viveu. Terêncio resumiu conceitos fundamentais, pois somos semelhantes e tudo o que acontece a outro poderia ter acontecido a nós mesmos. Daí a necessidade da compaixão e da tolerância.

Em cada um habitam muitos. Podemos ser covardes ou heróis mas são poucos os heróis. Somos capazes de vilanias e um gesto nobre nos emociona, uma covardia nos entristece porque admiramos a coragem e a beleza dos heróis. Luis Cernuda, poeta andaluz, dizia que um só exemplo da superioridade moral dos heróis é bastante para testemunhar toda a nobreza humana.


Nosso destino se confunde com o de outros seres humanos. Somos também os que sofrem, os perseguidos e as vítimas das injustiças, e para se fazer solidário não é preciso ser cristão. Ao dizer que nenhum homem é uma ilha, o poeta inglês John Donne termina seu poema lembrando que não se pergunte por quem os sinos dobram. Eles dobram por ti.

domingo, 18 de outubro de 2015

A Nona


Trazer de volta momentos vividos é uma das notáveis emoções que a música desperta. Sensações desorganizadas de lembranças e reflexões guiadas pelo sentimento que o momento conduz. Da mais alta montanha ao vale mais profundo, como nos sugere o início da Sinfonia nº 1 de Brahms. Quando a compôs, ele quis homenagear Beethoven, que venerava e que morrera seis anos depois de seu nascimento. O maestro Von Bülow, alemão como os outros dois, dizia que a primeira sinfonia de Brahms era também a décima de Beethoven, que só compôs nove sinfonias.

É sobre a Nona Sinfonia que eu gostaria de falar. Sobre as imagens despertadas na memória e seus recantos inconscientes onde jazem as mais estranhas emoções. Nos primeiros acordes há uma praia deserta com dunas brancas no fim da tarde iniciando a noite, quando quatro jovens quase bêbados, saturados da magia do mundo, calavam-se, entregavam-se à música e olhavam para o mar escuro e calmo. Não havia pensamentos sombrios em Arraial do Cabo, Praia Grande, anos 70.


O poema de Schiller que Beethoven usou para o último movimento da Nona traz consigo a lembrança de momentos felizes. Quais momentos? Embora sem conseguir defini-los com clareza, há no entanto a consciência de que nascemos para desafiar destinos incertos e afirmar perante eles a nossa própria humanidade. Schiller chamou seu poema de À Alegria e Beethoven mandou cantar a Ode à Alegria, como passou a ser chamado, por um coral de vozes masculinas e femininas, pela primeira vez na história das sinfonias. Como a nos dizer que a voz humana é um dos mais belos instrumentos da música.

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Paralelas


Crianças imaginativas costumam pensar que em algum lugar do universo haverá um duplo. Alguém igual a elas, que pensa e age como elas de idêntica maneira. O mito de uma vida paralela encontra-se também na busca da ciência por um planeta igual ao nosso, com a mesma atmosfera onde a vida floresceria tal qual a conhecemos.

Haveria uma outra existência ao lado da vida que vivemos. Nesta aparente percepção estaria a origem da arte, da religião, da criatividade e da loucura. E também da mentira, que é algo que não existe mas que passa a existir numa narrativa da imaginação. Somos porque pensamos, logo podemos duvidar da realidade. O real pode não existir, somos apenas o sonho dentro de um sonho.


Nossa existência seria, portanto, o produto do sonho de uma entidade adormecida em algum lugar perdido no cosmos. Somos, quem sabe, apenas o sonho de Deus ou um pesadelo no qual íncubos e súcubos atravessam nosso caminho, olham para dentro dos nossos olhos e nos impedem de enxergar a vida, nossa vida, a própria realidade e o mundo que talvez sequer exista na forma em que o vemos.

sábado, 10 de outubro de 2015

Bichos


A quantidade de bichos de estimação em Copacabana é maior que a população de humanos. Os velhinhos do bairro costumam estabelecer laços profundos de amizade com gatos, cães e passarinhos e com eles dividem os pequenos apartamentos em que viviam sozinhos. Levam-nos à rua e a eles se dirigem com a mesma linguagem carinhosa de mães cujas crianças ainda não aprenderam a falar.

Passear com o cão pode trazer o desconforto de voltar com algumas pulgas e carrapatos que infestam as ruas à espera de hospedeiros. Por isso a mulher do prédio em frente conduz seu pequeno poodle num carrinho de bebê. Sua vizinha leva o yorkshire calçado com pequenas botas de couro. E há o homem que passa de bicicleta pela Barata Ribeiro com um gato agarrado às suas costas.

O bairro tem o maior número de velhos da cidade. E também de viúvos e divorciados, dizem as estatísticas. Os números expressam a solidão que os pequenos animais vêm aliviar. É tanta e tão próxima a amizade entre gente e bichos que muitas vezes se tornam parecidos entre si. O mesmo jeito de andar, não raro a mesma aparência e o mesmo humor que são fruto da união e do entendimento entre eles.



terça-feira, 6 de outubro de 2015

Outubro

Tímido, indeciso, o sol volta a aparecer mas outubro começou com as nuvens cinzas que trouxeram chuva e esvaziaram  a praia. Copacabana retorna a seus dias mais calmos, que se desmentem pelos engarrafamentos da manhã e do fim da tarde. Marquinhos, o maluco da vizinhança, andava sumido e reapareceu limpo, barbeado e de roupa nova. Tenta organizar o trânsito, dirige raiva e condenação aos motoristas que ousam parar nos limites da faixa de pedestres. Seu olhar amedronta, as mulheres fogem.

Os velhinhos do bairro voltam a frequentar a fila dos bancos e supermercados. Tropeçam nas calçadas de pedras portuguesas, socializam, reclamam, esperar na fila é parte do seu dia. Desconfio que amam este momento em que fogem da solidão e tentam mudar o mundo enquanto esperam e reclamam.


A temperatura amena trazida pelas chuvas é das últimas do ano, que em breve retornará ao verão, a estação mais louca. Os turistas já começaram a chegar, um pouco tristes pela falta de sol. Mas em breve estarão queimados e vermelhos, a temperatura sufocante atacará de novo e os velhinhos, humilhados pelo calor, reclamarão nas filas, tropeçarão nas pedras das calçadas e, aos fins de semana, diante da televisão, voltarão a sentir medo dos arrastões.

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Felicidade


Há quem a procure na paixão do amor ou no brilho da fortuna pessoal. Ou então viajando pelo mundo, no exercício do poder, às vezes no êxtase religioso. O homem está sempre em busca da felicidade porque não deseja ser infeliz.

Ordenamentos jurídicos incluem entre os direitos fundamentais o de aspirar à felicidade. Nos códigos severos das religiões, o paraíso estaria reservado apenas aos puros. Seus portões estão fechados aos pecadores e o castigo é não ter o privilégio de ser feliz após a morte.


Tanto quanto a utopia da paz na terra, a da felicidade enfrenta os horrores da realidade. A guerra, a intolerância, a miséria, violência e caos.  O genocídio e os crimes odiosos que se sucedem todos os dias, os desastres promovidos pela natureza destruindo paisagens e dilacerando vidas. A face horrível do mundo esmera-se na promoção do desespero. Os homens desejariam eternizar os breves momentos em que não são infelizes.