quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

O bloco


Da mesa do botequim, assisto à passagem do bloco. Não é um desses grandes em que desfilam milhares de pessoas a cada fim de semana nestes dias que antecedem o carnaval. Nem chega a interromper o trânsito da Barata Ribeiro, vai pelo canto da rua, não tem licença da prefeitura nem belas mulheres seminuas atraindo fotógrafos de jornal e câmeras da televisão.

Segue atrás de uma velha kombi com o som de marchinhas antigas, formado de foliões que exibem sua pobreza nos biquinis descorados e chinelos sem cor. Desceram os morros de Copacabana, improvisaram o bloco e lá vão eles anunciando que o carnaval é também do povo.


No que seria a comissão de frente, um grupo que se destaca na formação caótica, vejo um rosto conhecido que dança animado na companhia de uma mulata bonita que ele abraça pela cintura. Costumo vê-lo no sinal da Rua Princesa Isabel. Lá, ele pede dinheiro aos motoristas e quase não consegue andar. Seus movimentos são os de quem é portador de paralisia cerebral mas costuma também aparecer com sintomas diferentes de outras deficiências. O bloco lhe oferece cura temporária e o direito de também amar e se divertir.

domingo, 24 de janeiro de 2016

Chuva


Copacabana reclama dos males do verão, tempo em que as levas de turistas invadem o bairro, a orla e os botequins enchem-se de novos clientes em busca de calor, cerveja, alegria e sexo. O bairro sonha então com os tranquilos dias de inverno e primaveras tardias. Mas bastam alguns dias de chuva para aflorar a impaciência e a nostalgia do calor.

As marquises são habitadas pelos moradores de rua, os garotos da periferia continuam assaltando nas praças e arrancam os celulares, ouvem-se os tiroteios nos morros. Há também uma sombra de frustração na praia vazia quando fustigada pela chuva e os que vieram em busca do verão se agasalham numa conformada tristeza.

Quando passam os dias chuvosos e o calor novamente investe sobre a areia e as calçadas, voltam os lamentos molhados de suor, a busca de sombras castigadas, o desejo de um pouco de brisa fresca. É o destino de um bairro onde os contrastes assinalam as diferenças entre os ricos dos belos edifícios e os miseráveis que se abrigam nas marquises; a praia e a montanha; o calor insuportável e o frio incompreensível em pleno mês de janeiro, às vésperas do carnaval.


quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Álcool


A compulsão de fugir da realidade fez o homem descobrir as substâncias que o conduzem à embriaguês, ao sonho e a novas fronteiras aparentes da percepção. Desde a mais remota antiguidade este desejo de fuga tem significado prazer e danação, compensação da angústia e também o mergulho cada vez mais profundo na angústia do desespero. Belos talentos, vidas, foram assim desperdiçados.

Viver o mundo como ele é na realidade, sem fantasia ou possibilidade de fuga seria uma experiência insuportável para algumas almas fragilizadas. O álcool - a mais universal das drogas - e outras substâncias tóxicas seriam então o remédio para a dor do mundo? Mas todas elas conduzem também ao inferno particular e muitas vezes a uma condenação definitiva.


Muitos grandes escritores beberam demasiadamente. Alguns poucos não demonstravam os efeitos do álcool, como Hemingway, outros caiam bêbados na rua, como Poe, ou ficavam socialmente inconvenientes, como Dylan. Mas todos evitavam beber enquanto trabalhavam. George Sand disse que não imaginava Byron, bêbado, escrevendo seus belos versos. A inspiração poderia vir no meio de uma bebedeira ou no silêncio da floresta. Mas no momento de dar forma ao pensamento, é preciso estar na posse absoluta de si mesmo.

sábado, 16 de janeiro de 2016

As mulheres de Picasso


Das mulheres que teve em sua longa vida, ele disse que só uma o acompanhou desde criança.

Amélie Lang ele a conheceu em 1905, quando tinha 23 anos de idade. Olga Khokhlova, uma bailarina russa, ele a encontrou e por ela se apaixonou em 1918, até o dia, em 1927, quando conheceu Marie-Thérese Walter, com quem teve a filha Maya. Marie-Thérese matou-se em 1977, muitos anos depois da separação.

Henriette Theodora Markovitch, uma mulher bela e triste, nascida na Croácia, entrou na sua vida em 1936. Ele a deixou em 1943, quando já tinha 60 anos e se apaixonou por Françoise Gilot, de 21, que lhe deu dois filhos – Claude e Paloma – e que o abandonou dez anos depois. 

Jacqueline Rocque, sua última companheira oficial, ele a conheceu em 1954 e com ela viveu até a morte, na cidade de Mougins, em 1973. Jacqueline também se matou com um tiro na cabeça treze anos depois da morte de Picasso.


Quando tinha noventa anos, ele disse numa entrevista que pensava na morte desde a infância. A morte, afirmou na ocasião, havia sido a única mulher que o acompanhara durante toda a vida.

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Sonhos


Há um território do sonho em que se cruzam todas as idades. Alucinações se confundem com as fantasias do pensamento lógico e a vigília perde aos poucos sua capacidade de ver o mundo como ele aparenta ser na realidade. As experiências da criança antiga, seu modo de olhar, ver e sentir brotam novamente e tornam a se mover entre as brumas do sono, o medo e a perplexidade de antigamente, antes mesmo do dia em que nascemos.

Também o deslumbramento. Os objetos, as coisas do mundo, astros celestes e figuras do passado e do futuro despontam como se pertencessem ao presente mas no entanto são diferentes. Uma dimensão diversa absorve todas as emoções e as emoções são enormes, fora do tempo, portadoras de segredos nunca revelados, degraus de horizontes insondáveis. Percepção das fímbrias de um infinito que cabe nos limites da imaginação reprimida pelo sono e por ele aberta em direção do desconhecido.


Prestes ao despertar, a consciência amplia seus limites diante do ignoto, do silêncio das esferas que se movem no universo ilimitado e ausente da memória. A claridade surpreendente da luz se revela e traz consigo a inesperada escuridão do passado. A consciência se dissolve no despertar de um futuro que se confunde com momentos vividos, todas as coisas que não existem mais e também com as que depois, num outro tempo, ainda irão existir.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

Esperança


A esperança é um fruto
que apodrece em nossas mãos.
Longe da boca e da fome,
tão distante da contemplação
como o horizonte de sombras.

É como se fosse a flor
sugada por abelhas e formigas
e lagartas enroladas
no caule de sua planta,
na folhagem devastada.

Jamais cercou nossas vidas
nem a nossa caminhada,
apenas suas pegadas
foram vistas e anotadas
em um canto da memória.

Não nasceu, foi construída
por almas desamparadas
precisando acreditar.
Existiu como um sonho
prestes ao acordar.

Plantou suas raízes
no peito dos escravizados,
na garganta dos prisioneiros,
nos olhos dos exilados,
como uma erva daninha.

Iludiu-nos. Prometeu
realizar quimeras,
devolver coisas perdidas.
Falou estranha palavra,
bela e emudecida.

Interrompeu o choro
e o lamento das velhas
e nos fez acreditar no tempo
e em manhãs
que haviam de chegar.


Confuso sentimento, este
que vai parindo fantasias,
revolvendo o silêncio
e que é menos que promessa
e mais que esquecimento.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Uma cidade


Alguns dias chuvosos substituem a claridade solar que tem iluminado este inverno. Pouca gente na rua, uma cidade que se anima nos dias de feira, na hora das compras matinais e dentro do pequeno mercado municipal onde as pessoas compram e conversam. Não há pressa, todos caminham em ritmo diferente de quem vive numa metrópole. Se alguém passar correndo, os outros param surpresos para observar o que aconteceu.

Perguntam-me porque não prefiro Paris a este canto da França profunda, tranquila e contemplativa. Procuro evitar as grandes cidades. Paris, como o Rio, invadida por levas de turistas, atravancada pelas filas, exibe disfarçadamente o medo da violência. São lugares ocupados por multidões que sequestram a alma das ruas.


Um homem passeia com seu cão nas primeiras horas da manhã. O açougue abre suas portas, o bar põe cadeiras na calçada. É dia de feira na praça da catedral, os comerciantes amanhecem preparando suas barracas e Cahors acorda mais cedo. Não se ouvem gritos, nem conversas altas ou barulhos que incomodam. Um cantor canta canções populares acompanhado do violão, à sua frente um tapete espera pelas doações. Uma folha de plátano ressecada pelo frio flutua no vento e vai repousar nas águas tranquilas do Rio Lot. Há um clima de calma, talvez de alegria, enquanto a vida escorre pelas ruas muito antigas desta cidade.