sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

A tarde


As nuvens se movem nas sombras do inverno. Fios de chuva fina acompanham seu movimento e as ruas da cidade constroem espelhos nas pequenas poças d’água que refletem a cor cinza do firmamento. O silêncio predomina sobre o distante barulho dos poucos automóveis, o ladrar de um cão acentua a distância das coisas, torna ainda mais aguda a solidão da tarde.

O ritmo distante de uma sinfonia se aproxima e aos poucos se mistura ao marulhar do vento, envolve o que resta de silêncio, sufoca e cala a réstea de coisas ainda mais antigas. Os olhos procuram situar os limites dessas paragens, afastá-las da sombra, iluminar o que restou da escuridão .


Um velho abre a janela e olha para o horizonte sombrio. Procura entre as recordações, lembra-se de rostos esquecidos, tateia no escuro da alma que uma vez mais se move na direção dos ventos, na dor profunda de lembranças, na opacidade das memórias apagadas.

sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

As brumas



Há um território do sonho em que se cruzam todas as idades. Alucinações se confundem com as fantasias do pensamento lógico e a vigília perde aos poucos sua capacidade de ver o mundo como ele aparenta ser na realidade. As experiências da criança antiga, seu modo de olhar, ver e sentir brotam novamente e tornam a se mover entre as brumas do sono, o medo e a perplexidade de antigamente, antes mesmo do dia em que nascemos.

Também o deslumbramento. Os objetos, as coisas do mundo, astros celestes e figuras do passado e do futuro despontam como se pertencessem ao presente mas no entanto são diferentes. Uma dimensão diversa absorve todas as emoções e as emoções são enormes, fora do tempo, portadoras de segredos nunca revelados, degraus de horizontes insondáveis. Percepção das fímbrias de um infinito que cabe nos limites da imaginação reprimida pelo sono e por ele aberta em direção do desconhecido.


Prestes ao despertar, a consciência amplia seus limites diante do ignoto, do silêncio das esferas que se movem no universo ilimitado e ausente da memória. A claridade surpreendente da luz se revela e traz consigo a inesperada escuridão do passado. A consciência se dissolve no despertar de um futuro que se confunde com momentos vividos, todas as coisas que não existem mais e também com as que depois, num outro tempo, ainda irão existir.


quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

Inverno


O inverno é de chuva emoldurando o frio. A ventania chega a inverter os guarda-chuvas e torna horizontal as águas tempestuosas que humedecem as ruas mas afastaram o risco de rios secos e falta d’água. O Tejo quase se transformara num riacho, assim como o Douro em suas nascentes na Espanha. O tempo cor de chumbo mistura-se ao escuro granito que esculpe a identidade do Porto.

Turistas passeiam pelas ruas, movimentam a cidade que não perde sua beleza. Meninas louras quase não sentem a intensidade do frio, acostumadas com o inverno dos países de onde vieram. O mendigo da esquina da Rua de Sá da Bandeira faz dias que não aparece. Os bares estão vazios, poucos clientes diante de uma xícara de café ou de um cálice de aguardente.

Na passagem do ano, jovens corajosos mantiveram a tradição do primeiro banho de mar e mergulharam nas águas geladas do Atlântico Norte. A cidade cinza começa a sonhar com a primavera. As gaivotas quase sumiram, as nuvens se acumulam e o céu esconde-se nos dias de cor noturna.


terça-feira, 2 de janeiro de 2018

A noite escura


Na noite profunda e escura da alma são sempre três horas da manhã, definiu Scott Fitzgerald. A escuridão levou-o a abusar do álcool depois de ter conhecido a fama, a glória e um casamento desastroso. Sua vida, como a de outros grandes artistas, estava destinada a transitar sempre pelo lado negro do mundo.

Os artistas não estão destinados à felicidade, parecem dizer as biografias. As grandes obras são maiores quando criadas nos porões da alma e da depressão emocional. Poe morreu na miséria declamando ‘O Corvo’ nos botequins de Baltimore, Álvares de Azevedo sufocado pela hemoptise, Dostoievski passou quatro anos preso nas masmorras da Sibéria para morrer em São Petersburgo sufocado por um enfisema. Hemingway matou-se.


Os artistas não são felizes. Suas almas estão condenadas a sobreviver nas madrugadas onde os relógios estão parados na marca das três horas e para sempre na escuridão.