segunda-feira, 30 de junho de 2014

Arraial

A aurora já nos encontrava no mar, a água tinha a cor metálica de chumbo. Batendo nas leves ondulações, o barco avançava e o cheiro do motor a diesel invadia o espaço até que ancorávamos na ponta do Cabo Frio. E começávamos a pescaria que se prolongava até que o sol forte nos expulsasse com o calor e o incômodo da nossa pele em brasa. O banho de mar nos devolveria o suave frescor da brisa que soprava a partir do começo da tarde.

Trazíamos peixes para o almoço, bebíamos e nos divertíamos na conversa à sombra do terraço. A praia quase deserta se estendia por quilômetros de areia branca e se perdia do olhar. Crianças corriam a beira mar, os pescadores cercavam com a grande rede os cardumes avistados do morro da vigia. E os arrastavam até a praia.


A noite era curta porque já estávamos com sono, bêbados e cansados. O por de sol já havia nos dado a quota diária de surpreendente beleza e às vezes o luar também surpreendia. Até os dias chuvosos eram belos com o sentimento que traziam de nostálgica solidão à beira mar. Nós éramos jovens e felizes e ninguém estava morto.

quarta-feira, 25 de junho de 2014

Encontro

No botequim, enquanto Maria lhe servia de graça, como quase todos os dias, café com leite e um pão, conversei com Marquinhos, o maluco da vizinhança. Com o pensamento um pouco mais coordenado e os olhos mais tranquilos, ele falou enquanto comia da quantidade de japoneses andando pelo bairro nessa Copa do Mundo. Qualquer um que não fale a sua língua, para Marquimhos,  é um japonês. Mas preferiu falar dos amigos que morreram.

Sua fala é quase tão confusa como a de um surdo-mudo e me contou que no bar em frente havia um homem bom que conhecia bem. Diabético, morrera de tanto beber. O mesmo aconteceu com um amigo que tinha na esquina da República do Peru, o garçon de uma lanchonete que saia de madrugada pelos bares ainda abertos e que morreu também de tanto beber.


Perguntei se ele gostaria de beber. Olhou no fundo dos meus olhos com seus olhos estrábicos - eu estava bebendo - e disse que ainda não queria morrer. Acabou de comer o pão com café e voltou à rua ouvindo seu rádio que não toca nada para assustar os turistas com a sua miséria, sua feiura e a dificuldade dos loucos em entender a lucidez capaz de matar os que não são loucos.

sexta-feira, 20 de junho de 2014

Poder e fama

Todo homem traz dentro de si a medida da sua insignificância. Talvez seja esta a razão por que é tão difícil lidar com o poder. Ao sentir-se diferente dos outros, atraindo admiração ou capaz de obrigar as pessoas a praticarem atos contra sua própria vontade, o homem começa a se transfigurar. Há uma pressão sobre sua subjetividade que o leva a cometer desatinos.

Em qualquer nível de poder. No caso de pessoas que adquirem fama, assistimos como se fosse um espetáculo as mudanças que ocorrem em seu comportamento. A menina humilde ou o menino modesto, quando se transformam em celebridades tornam-se reféns da adoração do público. E perdem as referências da própria subjetividade.


A dificuldade de lidar com as fantasias do poder e da singularidade, a ilusão trazida pela fortuna pessoal, a adulação de que são vítimas contaminam sua personalidade. As celebridades costumam esconder-se ao sair à rua e se deprimem se não são reconhecidas e festejadas no meio da multidão.

quarta-feira, 18 de junho de 2014

A vida, segundo Doka

A vida, me disse Doka, se resume numa sucessão de armadilhas que às vezes te surpreende e  em outras você consegue escapar. Mas ficam sempre dor, decepção e ódio, ele dizia. De cigarro na mão, copo de cerveja e cotovelo no balcão do botequim, se divertia me deixando atônito com suas frases, eu tinha dezoito anos.

O engano da vida, dizia, é que você pensa que pode domá-la mas os acontecimentos têm um poder maior do que o teu e os acontecimentos se sucedem em outros e todos eles acabam por te encurralar num canto qualquer, na margem do tablado da vida.


Ele encontrava razões para beber. O aniversário de amigos e o dele próprio, uma vitória do América mineiro, a celebração do mito da Paz que nunca existiu. Doka me disse que em 1957 havia tomado um pileque pela primeira vez na vida e desde então havia desistido da lucidez.

sexta-feira, 13 de junho de 2014

Estresse

No aeroporto o velho discutiu com o jovem que passou à sua frente na fila preferencial. Uma discussão violenta.  Os outros passageiros se impacientavam enquanto se resolvia o impasse. A moça atrás do balcão não conseguia dissimular o constrangimento e nos outros balcões as pessoas também reclamavam da demora ou do atraso.

No supermercado, no banco, nos guichês do metrô vêem-se sinais do estresse no rosto de quem espera. Os mais velhos, lentos mas também impacientes, reclamam. Os demais olham para eles como se fossem os culpados pela demora. Pelas calçadas das ruas, quem tem pressa ultrapassa e recrimina os que não possuem mais a agilidade dos jovens.


São os signos da saturação das cidades. Milhares de pessoas disputam entre si o espaço urbano, os serviços, as áreas públicas e o lugar de viver. Há o cansaço, a impaciência, a inimizade, o mau-humor e a decepção com o mundo construido pelo homem à sua imagem e semelhança.

domingo, 8 de junho de 2014

O idioma

O idioma é o que dá identidade a um povo. Mais do que raça, religião, história ou crenças. É na linguagem que um povo se reconhece e os homens se vêem uns nos outros, expressam sua dor, esperanças e o desejo de estar no mundo. Fernando Pessoa disse que sua pátria era a língua portuguesa.

Soljenítsin voltou à Russia depois de vinte anos de exílio porque não suportava mais a ausência da sua língua – a sua pátria. Bilac declarou seu amor escrevendo “Amo-te, ó rude e doloroso idioma, em que da voz materna ouvi: "meu filho!" Ao mesmo tempo, qualificava a última flor do Lácio, desconhecida e obscura, como “esplendor e sepultura”.


 A linguagem desenvolveu intelectualmente o bicho humano e foi capaz de resgatar a sua espécie do estado selvagem. Gestos e expressões corporais dão forma ao universo dos surdos-mudos, sons que não existem mas formam a sua fala, interpretando o mundo em sua festa e sua angústia.