sábado, 29 de junho de 2013

Uma história sem fim

Há muitos anos, quando eu tinha quinze anos, comecei a escrever uma história que não deveria ter fim. Era sobre um homem que olhava a própria vida como um palco cujas personagens interpretavam diferentes papeis e ele assistia. Não podia interferir na trama embora se tratasse de sua vida e as personagens não passassem dos tipos diferentes que ele próprio representava.

Tempos depois, acho que eu já tinha trinta anos, retomei a história que não terminara e vi que o protagonista continuava assistindo o desfilar daquelas personagens, cada vez mais estranhas. Mas eram parecidas com ele próprio e ele não queria aceitar que aqueles tipos eram apenas a representação de si mesmo.

Faz alguns dias achei a história que eu não terminara perdida numa gaveta e o homem havia mudado, na tentativa de incorporar os tipos que durante tanto tempo desfilavam diante de si. As personagens estavam diferentes, haviam envelhecido e recusavam-se a continuar interpretando as faces diversas de quem as olhava, não conseguia entendê-las e mesmo assim procurava dirigi-las.


quarta-feira, 26 de junho de 2013

Um velho

Um pouco depois da seis da manhã, cruzo com ele na Nossa Senhora de Copacabana. Sua calça jeans bem suja teimava em escorregar para baixo, o que o obrigava a tirar as mãos dos bolsos para levanta-la. Andava de cabeça baixa, olhar no chão, vestia um pulover velho, fazia frio como costuma fazer no começo do dia nesses meses de inverno em Copacabana.

Tinha dificuldade de andar em linha reta, balançava o corpo de um lado para o outro pois era gordo e as pernas pareciam fracas. Virava o rosto para um lado e para o outro da calçada como se procurasse alguma coisa. Parou diante de uma lixeira, olhou para dentro e depois retomou a caminhada lenta e sem ritmo, indecisa.


O empregado de um botequim lavava a calçada, o que o fez desviar-se para o limite do meio-fio. Devia ter pouco mais de oitenta anos, ou menos, talvez. Em frente aos fundos do Copacabana Palace, olhou para a direita, viu que não havia trânsito naquela hora e atravessou lentamente a rua.

quarta-feira, 19 de junho de 2013

O miado do leão


A mídia se vê onipotente, capaz de conduzir as multidões para o destino que ela apontar. Não  se vê como um serviço que distribui um produto necessário, a informação. E como qualquer outro produto, a informação é mais ou menos desejada dependendo da maior ou menor qualidade que possúi e oferece ao seu consumidor.

Quando procura levar o público a adotar sua opinião e agir ou pensar de acordo com seus objetivos políticos ou comerciais, a mídia tem fracassado. Pois o consumidor da informação procura – quase sempre - pensar com a própria cabeça.

A campanha contra a criação da Petrobras, derrotada em meados do século passado pela opinião pública que procurou conduzir, é sempre citada como uma histórica derrota da mídia. Existem outras, como a posição inicialmente adotada em relação às atuais manifestações de rua. Inicialmente agressiva e contrária, a mídia acabou amedrontada e aderiu. E agora pretende dirigir as reivindicações.


A mídia só influencia aqueles que pensam como ela.

terça-feira, 11 de junho de 2013

Constança


Ela se divertia me dando sustos. Escondia-se atrás dos móveis, esperava-me entrar e fingia um ataque. Era bem-humorada, irrequieta, curiosa. E de extraordinária beleza. Conseguia pegar um passarinho em pleno voo, investigava a casa inteira e dava conta de qualquer coisa que estivesse fora do lugar.

Quando caiu do oitavo andar, passou dois dias desaparecida até ser encontrada numa área escondida do prédio. Estava ferida, uma perna fraturada mas viva e assustada. Sofreu uma cirurgia, foi-lhe implantada uma prótese de metal e passou a mancar. Mas continuou ativa, rápida, e não perdeu o bom-humor.


Depois ela adoeceu. Os rins deixaram de funcionar, talvez uma sequela da queda. Ficou vários dias internada, sem melhoras. Quando fui visitá-la, estava com o pelo duro, eriçado, porque já não conseguia limpar-se. Os olhos estavam fechados. Ao reconhecer minha voz, conseguiu levantar-se, emitiu um miado fraco e triste e depois tornou a deitar-se. Naquela mesma noite foi sacrificada.

segunda-feira, 3 de junho de 2013

Marilyn


A malícia dos seus olhos azuis contrastava com o ar fingido, inocente, num corpo de beleza esculpida em sensualidade. Sem ajuda de academias de ginástica ou intervenções plásticas, apenas um toque de movimentos nos quais chamava atenção a harmonia dos gestos. Na expressão do rosto, uma falsa alienação escondia a solidão que acabaria por mata-la.

O lugar comum da infância pobre e triste foi apenas exploração da mídia que lança mão das mais elementares emoções humanas. Ela manipulava as pessoas, principalmente homens, e procurou se compensar intelectualizando-se, a ponto de aceitar um casamento com Arthur Miller, um dos mais brilhantes intelectuais do seu tempo mas que, nela, só espelhou o próprio sofrimento.

Ernesto Cardenal, o poeta e padre da Nicarágua, talvez tenha sido quem melhor compreendeu a crise que a levou ao suicídio num poema escrito no mesmo dia da sua morte:

“Foi
como alguém que discou o número da única voz amiga
e ouve apenas a voz de uma gravação dizendo: WRONG NUMBER
Ou como alguém que ferido pelos gangsters
estende a mão para um telefone desligado.
Senhor
quem quer que tenha sido a quem ela chamava
e não chamou (talvez ninguém
ou era Alguém cujo número não se encontra na Lista de Los Angeles)
atende Tu ao telefone.”


sábado, 1 de junho de 2013

Do alto dos edifícios


A floresta de prédios toma conta da paisagem. À distância, há gente a fazer algo que não se compreende. Binóculos são instrumento do voyerismo habitual nas cidades montadas em concreto. Com eles os vizinhos, cada vez mais distantes uns dos outros, se espionam.

Adolescentes – e outros nem tão jovens – procuram acompanhar das janelas a rotina da moça lá longe que troca a roupa descuidada dos olhares. A velha que se debruça sobre o movimento da rua vai depois ao telefone falar sobre o que viu com outra velha que também mora no bairro, a duas quadras, mas há meses elas não se vêem.

Há jardins e coberturas, chaminés estranhas e telhados sobre as lajes de cimento; escadas enigmáticas conduzindo a recantos misteriosos, plantas, animais, homens e mulheres que não se falam e um tédio imenso cobrindo a solidão de todos.