segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Dizer


O que vejo não verás tão cedo

nesta terra de dor

e séculos de sangue.

 

Virás depois de mim,

dirás algo de poesia

 que a infância resguardou.

 

Dirás aos que virão depois de ti

o quanto vimos nos portais

onde estivemos prisioneiros.

 

Os outros saberão

quem na selva escura

era inimigo.

 

Onde a morte e a vida

se enlaçavam

em mesma dor constituídas.

 

E que amor era palavra sem sentido,

guardada na morada dos vermes,

mantida nas estantes.



quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Relance

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Em uma paisagem distante, recanto solar onde homens e animais se misturavam às cores verdes da natureza, ouviam-se o vagido solitário dos bezerros, a queda da água e o constante zumbido dos besouros. Os dias eram longos, contemplados pelo ir e vir das lembranças, o sorriso na face das crianças, ritmadas oscilações das árvores comandadas pelo vento.
A brisa trazia recordações que alimentavam os vivos. Nada era tão claro quanto as manhãs que se seguiam às auroras menstruadas do nascer dos dias. A tarde era serena, semeava o campo de uma noite que cobria os espaços, despertava o ciciar dos ruídos e alumbrava o pensamento.
O circo armava-se nos derradeiros limites da cidade, o desfile do palhaço produzia-se pela turba dos meninos que o seguiam, a rua fazia-se pequena para tanta alegria desbordante, os pássaros espantados acrescentavam mais espaço ainda àquela festa. Esta é a paisagem que ficou daquele tempo.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Ciclos




A vida não é uma história que decorre no único tempo em que dura. Acontece em ciclos, cada um que se encerra inaugura um novo e diferente, muitas vezes surpreendente. Nada do que você projetou para o futuro é sequer considerado no fio da vida que se desenrola em suas formas estranhas .
Há momentos de profundo cansaço, quando se instala o sentimento de que nada mais há a fazer, tudo se exauriu, o futuro está coberto de brumas e o horizonte se fecha. É num momento assim que uma etapa se finda  e outra se inaugura, talvez pior, quem sabe melhor, pois a vida se dá em ciclos, cansaços e ressurreições.
Cada ciclo inaugurado desmente a afirmação de que só se vive uma única vez. Existem sempre novas vidas em constante retorno. Somente a morte é definitiva.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Cena de rua



Eles estão deitados na calçada da pequena praça, dormem no dia claro, de sol luminoso e forte calor neste apogeu do verão. O barulho dos automóveis e o acelerar dos ônibus não são capazes de acordá-los. Dormem profundamente em pleno dia de trabalho, comércio intenso, lojas abertas e transeuntes apressados.
Devem ter se recolhido nas últimas horas da madrugada, quando são menores os perigos da noite e por isso os mendigos do bairro costumam dormir na companhia de um cão que os protege. Eles só têm um ao outro e ambos dormem profundamente. Ela coloca com cuidado o braço protetor sobre as suas costas.
Em volta, alguns pertences desarrumados, duas bolsas de aparência um pouco cara e origem talvez clandestina. As pessoas que passam, umas olham-nos com desprezo, outras com alguma indignação por um quadro que lhes parece triste e feio. Para muitos eles são invisíveis, fazem parte de uma paisagem miserável a que o bairro já se acostumou. Refletem também, na intensidade anônima da rua, uma desajeitada e silenciosa cena de amor. Mas esta passa despercebida.

sábado, 13 de fevereiro de 2016

Insetos



A humanidade foi capaz de se adaptar ao rude e violento planeta que habita e chegou ao ápice da cadeia alimentar. Poder supremo, dotada de inteligência, capaz de desenvolver a ciência, expressar-se pela arte, descobrir coisas e observar o mundo através de sua imanente sensibilidade. Reina entre os viventes, reinventa a natureza e, no exercício da sua vontade, influi sobre o meio ambiente em que vive.
O ser humano se desenvolveu, transformou-se em força superior, preservando características originais da sua condição de fera: animal carnívoro, omnívaro, violento e sanguinário, entre todos os bichos é o único que mata o semelhante por vingança ou pelos mais fúteis motivos.
Predador supremo, o homem está no entanto posto em risco pelo menor e mais desprezível dos seus inimigos, ameaçado de morte e extinção pelo inseto. Semeador de epidemias, propagador de moléstias mortais, com 10 milhões de espécies diferentes, o inseto tem aptidões para vencer e substituir a humanidade no domínio e na liderança da vida no planeta Terra.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

Os velhinhos gays

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 Durante os carnavais eles se reuniam no bar da esquina, os quatro velhinhos gays, para a sua melhor diversão: acompanhar com o olhar os rapazes que passavam em direção à praia. Levantavam-se para ver os pequenos blocos evoluindo na Barata Ribeiro. Bebiam e riam, um riso cúmplice entre eles, malicioso e divertido.
Não os vejo mais. O último deles andava com uma acompanhante que o vigiava quando sentavam-se os dois à mesa do botequim. Provavelmente para não deixa-lo beber nada que não fosse um refrigerante. Há muito que também não o vejo. Os outros três haviam sumido aos poucos, a intervalos de tempo cada vez menores.
Viveram tempos alegres. Ou então sabiam onde descobrir alegria. Olhar para o carnaval da juventude parece que tinha esse poder sobre aqueles velhos nos derradeiros tempos de suas vidas que, de alguma forma, souberam como viver.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

vinha o dia



despido de sua máscara
vinha o dia
trazia lembranças bichos

carregando seu passado
tropeçando e se nutrindo
de memória

vinha o dia seus tercetos
apontavam a matéria e nos diziam
que nem o canto nem o pranto

cessariam
nem o destino revelado
algo a se mover nos templos

e nos bares
na fome
suicídios

espetáculos de dor presenciados
memórias simplesmente
sem qualquer entendimento

explicação de nada
funeral de cinza acumulada
vinha o dia

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Holocaustos



Quatro milhões de africanos foram trazidos para o Brasil como escravos. Seus donos tinham o direito de matá-los, se assim o quisessem. Muitos o fizeram. Em Canudos, vinte mil sertanejos foram massacrados pelas tropas federais. O genocídio praticado pelos turcos contra os armênios deixou mais de um milhão de mortos. Os belgas mataram dez milhões de pessoas durante a ocupação do Congo.

A história do mundo é uma sucessão de crimes praticados pelo homem contra o homem. Não é preciso falar em combates de guerra para medir o grau de violência na natureza da humanidade. A vida diária expõe o desejo de matar, o homicídio é mais ameaçador do que as doenças como causa de morte entre os animais racionais.


Da sucessão de genocídios, alguns foram esquecidos. Ficou forte na memória histórica o holocausto judeu, noticiado e analisado em todas as suas formas de violência brutal. Foi também a prova final da falência da humanidade. Escrita na parede em um campo de concentração, encontrou-se uma frase que ficará gravada na má consciência do nosso tempo: “se existe um Deus, ele terá de implorar pelo meu perdão”.