terça-feira, 9 de julho de 2019

Trevas




Afastado da poesia, o poeta cego mergulha na escuridão. Há ventos gelados e em volta tudo o leva a pensamentos suicidas. O som da guitarra o transporta ao tempo em que a música traduzia meditações, percepções e sentimentos do mundo.

Precisa do poema como o afogado preso no fundo do mar a quem lhe falta a respiração. Sufoca. Algo se move nos olhos além da íris mas são flocos de esquecimento. Compreende o olhar dos deserdados, o sofrimento do escritor obrigado a escrever e escrever significa dor, agudas setas que lhe ferem o que resta de sentimentos.

Compreende o álcool na vida de Hemingway, Dylan Thomas, tantos outros. A droga e a automutilação das emoções que atacam todos os viventes. Os ventos da depressão, emoções doentias, o desejo afastado da morte, a salvação na angústia de Beethoven e na alegria de Schiller, ambas presentes na mesma sinfonia.


sábado, 11 de maio de 2019

Espelho

Espelho

Uma aurora incendiada assemelha-se
à sangrenta chaga do crepúsculo
como se fora a noite no lugar do dia.
As passadas na rua são ritmos antigos
em um som cantado pelos ventos.

Os sonhos nadam numa argila escura,
espécie de lama a se espraiar nas plantas
e estas são apenas troncos ressequidos.
A fumaça exala brumas, a paisagem 
desvenda seu rosto esmaecido.

A maré avança sobre os ritos, um altar
feito de galhos queima e o sacrifício
é vão como a rotina dos que morrem
agonizando às primeiras horas da manhã.
Os presságios espalham seu perfume.

Nem cânticos ou lamentos nem o pranto
consolarão a noite e seus tormentos.
A escuridão perpassa seus gemidos,
os animais escondem-se nas sombras
os homens em pressentimentos.

Uma noite esmagada pelos sonhos.
Os vultos se perdem pelos labirintos,
são apenas reflexos dos espelhos.
O olhar tenta enxergar o horizonte
e desvendar o segredo desse instante.


sábado, 30 de março de 2019

Os mortos

Convivemos com nossos mortos. Lembrá-los é uma maneira de mantê-los vivos na nossa vida. A memória deles nos ajuda a evitar a despedida que sabemos eterna. Enquanto envelhecemos aumenta a quantidade dos amigos e dos mais próximos, amantes e conhecidos que partiram antes de nós. Teu pai morreu, teu avô também, em ti mesmo muita coisa já expirou, outras espreitam a morte, nos lembra Drummond em seu poema de passagem de ano.

A dor da lembrança e dos instantes perdidos estará sempre conosco enquanto vamos a ficar cada vez mais sozinhos. A solidão da vida presente na lembrança dos nossos mortos. Eles vão nos acompanhar para sempre. De repente um rosto, uma gesto, uma palavra vai nos trazer a imagem de alguém que um dia nos acompanhou num breve espaço da nossa existência.

Aprendemos a lidar com a morte pela dificuldade de entender o amor e seu desejo de ser eterno enquanto sabemos pouco, muito pouco sobre a vida. Nada esperamos de paragens desconhecidas, de seus traços e da ausência que transporta consigo apenas a dor e seus contornos indefinidos.

quinta-feira, 14 de março de 2019

Aniversário



A criança vive na memória do velho, o menino calado de olhos grandes, curioso, surpreso com as descobertas do mundo. As lembranças não desaparecem, misturam-se umas às outras e despertam leves sentimentos de nostalgia e também de arrependimento e culpa por gestos e palavras que se revelaram inúteis. A vida se mostra com a intensidade que pulsa até mesmo nos males que o tempo acumula e as dores sopram de algum lugar de dentro da alma.

A infância teima em lutar contra as sombras que invadem o sono, apascenta as vigílias e recita os versos mudos que jamais serão escritos. Fazem parte da poesia que nunca encontrará sua forma mas estará presente como se forçasse a ressureição de sentimentos mortos.

Pois para isto fomos feitos. Viver as voltas da vida, habitar a fonte dos conflitos que nos acompanharão até esgotar-se a derradeira brisa. Penso na inutilidade de todas as coisas e nas feridas que nunca cicatrizaram. Há chuva, um tímido sol, nuvens sombrias e certa beleza no despertar da primavera fria.

sábado, 23 de fevereiro de 2019

Adagio

 
 O vento suave soprava cedo nas manhãs.
Depois se misturava à poeira e se transformava em redemoinhos.
Suspendia folhas ao sol, transformava a cor dos horizontes.
Concebia os tons de uma paisagem que se estendia no deserto,
lugares ermos, desconhecidos, vistos em algum sonho alucinado.
Durante as madrugadas havia silêncios cobertos pela noite,
longe da imaginação, segredos nunca revelados.
Caminhos encobertos de plantas, pontos de fuga,
lugares onde se encontravam fontes,
início das viagens, sons agudos,
sono de crianças que um dia nascerão.
São assim, como foram,
antes de existirem sombras e sereno sobre as dunas
que se movem e se afastam com a ventania,
desfazem-se,
transformam-se em mares de areia.
Sussurros no silêncio de águas profundas,
onde os peixes se devoram construindo símbolos,
noturnas traduções,
nuances em que a vida se constrói.

terça-feira, 8 de janeiro de 2019

Sol de inverno



Nenhum sinal de nuvem no céu azul que se espalha no claro universo destas manhãs. Ontem foi dia das janeiradas e os grupos de cantores surgiram nas ruas espalhando as esperanças de um novo ano que se inicia. Passam as pessoas agasalhadas de um frio intenso, seco, penetrante e limpo. São poucos os passantes, pois a maioria prefere permanecer no interior dos edifícios.

A cidade parece continuar no sono da noite, a recusar o dia claro, a olhar para dentro de si mesma. No ar paira um desejo de descobertas, pois um novo ano traz consigo expectativas, curiosidade e esperanças. Procuro esquecer a tragédia política que ocorre no meu país.

Olho para o céu limpo, a rua quase vazia traz pensamentos confusos, correntes de angústia misturadas a certas formas difusas de alegria. O pensamento se distancia e a memória trabalha em coisas antigas e sem sentido. Vem de repente a lembrança dos meus mortos, a consciência de que tudo o que foi vivido não passou da fantasia de um sonho enlouquecido, “cheio de som e de fúria, sem qualquer significado”.