quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Preta

Nenhum movimento escapa a seu olhar. Ela acompanha o voo dos insetos nos escaninhos da sala, segue os helicópteros que espalham barulho nos céus de Copacabana. E disfarça a sua presença, embora se divirta a me pregar sustos pulando inesperadamente no colo. Quando a procuro, nem sempre é possível encontra-la, pois sua cor negra ajuda na camuflagem.

O tempo todo me vigia. Se me dirijo à cozinha, o longo miado transmite um pedido meigo mas forte de comida. Não possui a agressividade da outra que morreu, caçadora dos pássaros que se arriscavam na varanda e cujos corpos me trazia como uma gentil demonstração da amizade de que nunca duvidei.

Esta prefere olhar embevecida o voo dos pássaros, ao invés de persegui-los. Acompanha silenciosamente encantada seus volteios, talvez imaginando o que fazer para poder voar como aqueles seres alados, misteriosos e distantes. Ou, mais provável, pensando numa forma inteligente e ardilosa de atrai-los, atacá-los e comê-los.

sábado, 21 de fevereiro de 2015

A alma

Quando descobriu que existia algo misterioso na mente humana – e o chamou de inconsciente – Freud estava na verdade descobrindo a alma. Não a alma imortal das religiões, que sobrevive ao corpo e se torna infinita, mas a vida paralela, invisível e atemporal, que muitas vezes toma para si o leme do nosso destino.

Este ser inconsútil, tão abstrato quanto o pensamento e de tão absoluta presença nos sentimentos da vida. A certeza da sua existência não foi bastante para o revelar pois permanece desconhecido, misterioso, detentor do medo sem razão de ser, dos mistérios da paixão e dos impulsos irracionais. Sua aparição súbita muitas vezes traz consigo as alucinações da loucura.


É ele que nos conduz como um guia às vezes cego, muitas vezes iluminado. Nas emoções que nos perturbam e cuja causa não compreendemos está presente a sua revelação. Costumamos sofrer por motivos que em nós se aninharam na infância mais remota, cuja memória não mais possuímos. Mas para o inconsciente não existe tempo e sua lembrança não se apaga nunca.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Retorno

Os sons se multiplicam
nos ecos de antigamente.
No quarto e em silêncio,
um homem procura
entender o fim das coisas.


Resquícios.
Tema de selvagens
mutações que o tempo evoca
e bebe o espanto,
afogado nas areias de um deserto:
sementes, folhas, galhos,
plantações de formigas devoradas.


Paredes de cupim, teias, o odor
da urina de homens e animais,
as sombras que habitam este lugar.


sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Um inglês

Conheci aquele inglês no Rio Araguaia. Era gerente de um barco-hotel onde costumávamos nos hospedar. De lá saíamos para pescar por volta das quatro da manhã e ficávamos pelo rio até às dez, quando o sol se tornava insuportavelmente quente. Taylor, que se dizia de uma pequena cidade perto de Manchester, era nosso anfitrião e guia pelos pesqueiros do Araguaia.

Era ele quem nos despertava, às 3 e meia, de modo a que pudéssemos começar bem cedo a faina do dia. Tomávamos um rápido lanche e Taylor bebia apenas um copo de água. Durante a viagem nas pequenas voadeiras ao local da pesca, abria a primeira lata de cerveja e continuava bebendo durante o resto do dia. Aquele copo de água, descobri mais tarde, era na verdade uma farta dose de gin. Nunca o vi bêbado, embora tropeçasse em algumas palavras, pela dificuldade com o português.

Da mesma maneira como chegou às margens do Araguaia em busca de trabalho, também sumiu. Quando voltamos mais uma vez no meio do ano, depois das grandes águas, o novo gerente do botel disse que Taylor certo dia pediu as contas, tomou uma última dose de gin, pegou carona num batelão de transporte de gado e desapareceu na curva do rio.

domingo, 8 de fevereiro de 2015

Infinito, finito

Uma vida esgota-se em seus próprios limites, pois no universo o tempo não existe. Isto nos traz uma noção do que não temos capacidade de imaginar – o infinito. Sabemos que talvez exista, ou não, mas como podemos sonhar coisas difíceis de imaginar, como a própria inexistência das coisas? A compreensão que temos do infinito ultrapassa o tempo de uma vida e amplia-se, sem qualquer horizonte, na escuridão do que a inteligência não alcança.

O sentimento da nossa incapacidade de entender o grande enigma leva-nos à perplexidade diante do mistério, quando o pensamento abandona a inteligência e se refugia nas  sombras da magia. É na mística do inexplicável, no apelo aos sinais dos deuses que o homem tem procurado compreender sua existência e o sentido de todas as coisas.


Inseguro e amedrontado desde quando, pela primeira vez, procurou interpretar o que havia em sua volta e teve como resposta sua própria vida breve e atribulada. Desde o seu primeiro olhar para o infinito, o homem sentiu quais eram os limites do que seria capaz de compreender. Em seu pensamento trava-se a luta de procurar entender o sentido de tudo enquanto vê, cada vez mais distante, a explicação de como é vária, complexa e obscura a sua misteriosa presença no mundo.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Um adeus

Escolheram um bar movimentado da Rua Barata Ribeiro para não tornar a conversa muito íntima, talvez. Ele falava, ela escutava e às vezes rebatia algo que ele dissera; um detalhe da sua fala, algum argumento, um sentimento obscuro.

O fim da tarde, nas ruas internas de Copacabana, é marcado pelo barulho dos motores no engarrafamento da hora do rush. Para se fazer ouvir, de vez em quando um dos dois falava um pouco mais alto, olhando diretamente para o rosto do outro. Depois ela abaixava a cabeça e ele olhava para os lados parecendo não saber o que procurava. Ficavam assim por um momento e depois retomavam a discussão calma porem nervosa.

Ela picava em pequenos pedaços o guardanapo de papel, ele mantinha as mãos nos bolsos. Havia tirado o paletó e a gravata e arregaçado as mangas da camisa na tentativa de enfrentar o calor. Ela vestia uma saia simples, justa, com um paletó feminino, segundo a moda das mulheres que trabalham em cargos executivos. Os dois copos de chope estavam quentes e sem espuma.

Depois ele pegou o paletó e se levantou. Deixou algum dinheiro na mesa, ao lado da conta que acabara de pedir ao garçon. Seguiu a Rua Paula Freitas na direção da praia e ela ficou alguns momentos olhando os automóveis parados no engarrafamento. Então se levantou, atravessou a rua e embarcou num ônibus que ia na direção do Jardim de Alah. O calor batia os 40 graus.

domingo, 1 de fevereiro de 2015

Abismos

A intolerância é uma das marcas do nosso tempo. O ódio às vezes torna-se líquido no ar. As religiões, que aspiram ser códigos morais, ao invés de unir, separam. Existem crentes e descrentes, fiéis e infiéis, campos em luta. As ideologias, receitas montadas para uma organização do mundo e da vida, opõem-se com violência umas às outras.

O julgamento substitui a busca da compreensão dos gestos do outro. Preconceitos constroem muros e há uma desesperada busca de razão sem entendimento. Olhar para os lados significaria a compreensão do mundo impuro e imperfeito, mas da forma como é.


A violência testemunha a falência da humanidade. A cada massacre, na morte dos inocentes, na brutalidade e no desespero dos fugitivos vai-se construindo a derrota da quimera romântica. O mundo conheceu momentos piores, talvez. A humanidade traz consigo uma poderosa atração pelos abismos.