sexta-feira, 28 de setembro de 2012

O Quercy no outono


Os plátanos começam a apresentar folhas com tonalidades de ouro, sinal de que em breve cairão, cumprindo o ritual do outono.  No Quercy o verão ainda dá sinais de vida mas aos poucos as pessoas vão esquecendo o calor, que elas cultuam como os adoradores do sol dos tempos antigos. Este ano, dizem, as temperaturas bateram recordes nas praias artificiais do rio Lot.

Estão todos felizes com o verão passado. Agora, é preparar-se para seis meses sombrios. Ainda se veem bandos de turistas, velhos, pois os jovens voltaram às aulas e abandonaram as praças, os bares e os campos. O trenzinho ainda circula pelas ruas de Cahors mas, ao invés das crianças, transportam os velhos, que aproveitam os últimos dias sem chuvas e de pouco frio.

No Bar du Centre, bebem os fregueses de sempre, aos poucos vão desaparecendo as mesas na calçada. Jaja e Didier dizem que vão se trancar no interior do bar e lá ficarão até abril, quando as janelas se abrirão de novo e o sol tingirá de azul mais uma vez o céu do Quercy.


quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Malbec


A maneira mais inteligente de criar uma identidade é ser o que os outros acham que nós somos, parece ser a estratégia dos produtores de vinho de Cahors. Depois de perder mercado para os argentinos, que desde logo chamaram a uva típica de Cahors pelo seu antigo nome – malbec – os produtores locais fizeram o mesmo e deixaram de chama-la “auxerrois”.

Uma nova estratégia de marketing encontra-se em andamento. Depois de rebatizarem o vinho, foram lançados os tipos branco e rosé, para acompanhar o gosto dos jovens. Degustações em feiras e eventos, folhetaria, cartazes e redesenho de rótulos procuram reposicionar o velho vinho da região que se deu tão bem na terra argentina.

O trunfo de Cahors na competição com a Argentina, que hoje é o primeiro produtor mundial, é lembrar que foi em seu território que surgiram as plantações da uva, ainda no tempo em que os romanos dominavam o país gaulês. No começo, era apenas uma entre as várias espécies de bordeaux. Teve um período de glória, depois caiu no esquecimento. Agora, ressuscita e quer deixar no passado que malbec significou mal bec, ou seja, mal para o bico, ruim para o paladar. 

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Marcilhac



Numa curva suave do Rio Célé, Marcilhac surgiu em torno de uma abadia dos monges beneditinos construída no século XI e destruída na Guerra dos Cem Anos com os ingleses. Foi reconstruída e destruída mais duas vezes, nas guerras de religião e de uma vez por todas na Revolução de 1789. Restam sua ruínas, imponentes.

A abadia deu importância à cidade, em sua época. Parece ter sido construída sobre uma capela romana que existiu em tempos mais antigos. Percorrendo hoje seus corredores, as sombras daqueles muros que existem desde os começos da Idade Média ecoam os prazeres e os sacrifícios da vida monástica naqueles tempos.

Marcilhac não chega a ser uma cidade, é até hoje uma passagem para os peregrinos que se dirigem a pé a Santiago de Compostela. Uma parada para admirar o rio Célé, o mais formoso da Europa, dizem os franceses. Na curva de Marcilhac, antes de desaguar no Lot, ele diminúi também a sua marcha, junta-se num pequeno lago, espelha o verde das árvores em sua volta e pinta uma paisagem de tocante e calma beleza.




sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Rocamadour


Vem de longe a angústia do homem à procura de Deus. Por volta do século XI, uma onda de misticismo gerou o movimento de milhões de peregrinos na direção de Santiago de Compostela. Alguns séculos antes, o bispo de Compostela precisava de dinheiro para a construção de uma igreja e divulgou a lenda de que o apóstolo estava enterrado lá, no pedaço de terra que apontava para o Atlântico e era conhecido como Finisterra, o fim da terra.

Enquanto a história se espalhava e as multidões acorriam a Compostela, cidades surgiam pelos caminhos e uma delas foi Rocamadour. Entalhada nas rochas de calcário, construída em torno da montanha e acessada através de ladeiras íngremes e formidáveis escadarias, Rocamadour testemunhava a adoração de Deus pelos peregrinos que passavam em hordas por aquelas paragens da França .

Rocamadour está lá, até hoje. As hordas continuam chegando, nem sempre crentes, a maioria para admirar as construções assombrosas. A indústria do turismo fez da cidade um produto de extraordinário sucesso. O intenso comércio de souvenires, o preço do bilhete dos elevadores para evitar as escadarias erguidas pelos peregrinos e a imaginação dos comerciantes fazem da cidade um enorme caça-níquel, fiel à tradição inaugurada pelo esperto bispo de Compostela.

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Sonho


A realidade é uma ilusão, diz a personagem de um filme. O homem nasce só e morre só, tudo o que acontece entre estes dois eventos é pura percepção, pode ou não ser verdade. Talvez seja sonho, alucinação, embriaguez.

Foi para entender isso que os gregos inventaram a filosofia. Para explicar a realidade, se é que ela existe, pois até isso a filosofia tem obrigação de questionar.

Um sonho dentro de outro sonho. Morrer, dormir, a vida é uma história contada por um louco, cheia de som e fúria e sem qualquer significado, nos diz Shakespeare. Ele era um artista e não um filósofo, mas talvez exista mais verdade nesse enunciado do que supõe a nossa vã filosofia.

sábado, 8 de setembro de 2012

Um caderno antigo


No meio de velhos guardados, encontrei um caderno antigo, do tempo em que servi ao Exército. São páginas escritas com a minha letra, mas eu não me lembrava mais daquelas anotações. Elas misturam a descrição de armas de guerra com esboços de poemas que devo ter escrito durante as aulas que nos apresentavam à tecnologia desenvolvida para matar.

O FM Madsen tem uma velocidade de tiro de 184 mts por segundo e sua caixa da culatra está dividida em caixa, tampa, suporte da coronha, portinhola e guarda-mato, diz uma anotação. E, ao lado, estes três decassílabos: “o mar que conduzimos nos sentidos/desde gélidos pássaros feridos/às coisas animadas que nós somos”.

Na mesma página da minuciosa descrição de um Lança-Rojão, arma tática da Cavalaria, a tradução que devo ter feito, durante a aula, de um poema de Paul Eluard: Eles ignoravam que a beleza do homem é maior do  que o homem. Eles viviam para pensar e pensavam para calar. Eles viviam para morrer e continuavam inúteis.