sábado, 29 de abril de 2017

Ilha Vitória



O executivo da multinacional que me acompanhou durante dez dias bebia muito. Todos os expatriados que moravam na Nigéria, naquele tempo, bebiam muito. A paisagem era feia e confusa na imperfeita cidade de Lagos. No dia em que cheguei oito acusados de roubo foram fuzilados na quente manhã de sol, perto do hotel, numa praia da Ilha Vitória, que foi urbanizada no tempo dos ingleses. Vimos os condenados passar conduzidos na carroceria de um caminhão sinistro.

Durante muito tempo não consegui esquecer os rostos negros e tristes, o olhar perdido em algum ponto que não era ali, naquele lugar, a praia aonde foram conduzidos para serem mortos. O mais jovem era quase um menino, o jornal dizia que havia roubado um aparelho de som.

Na tarde do mesmo dia fomos para o aeroporto para embarcar em direção a Kaduna. O voo atrasou como sempre. Marcado para as duas da tarde,  decolou às sete da noite. Passamos o tempo no bar miserável, lotado e barulhento. Quando embarcamos estávamos bêbados. Durante a viagem continuamos a beber de uma garrafa que trouxéramos na mala de mão. Alguns muçulmanos estenderam tapetes no corredor do avião e rezaram em direção a Meca. Conversamos sobre muitas coisas, bêbados mas no entanto conscientes. Não conseguimos falar daqueles que haviam sido fuzilados, naquela manhã, na praia da Ilha Vitória.

quinta-feira, 20 de abril de 2017

Mudanças



A viagem de 11 horas atravessando o Atlântico a deixou inquieta, de mau humor, no desespero da prisão de uma caixa sem conforto. Miou seu protesto durante todo o voo até a chegada num aeroporto movimentado, ameaçador. Submeteu-se com paciência ao exame minucioso das autoridades e aguardou curiosa a apresentação dos certificados que atestavam a sua saúde. Para quem havia saído do clima do Rio em pleno calor de janeiro, não pareceu estranhar o frio intenso da cidade desconhecida.

Ocupou a nova casa, bem menor que a anterior, e percorreu cada canto enquanto a pequena cadela, silenciosa durante toda a viagem, a acompanhava com os olhos. Nos poucos dias de sol das primeiras semanas, procurava os raios filtrados pelas nuvens para fugir do frio do Norte de Portugal. Em breve, ambas sentiram-se à vontade, adaptadas a um país diferente.

Acostumou-se ao canto dos novos pássaros e às árvores que não eram mais as palmeiras que lhe fizeram companhia desde quando era um filhote ingênuo. Tornou-se amiga de uma oliveira plantada no pequeno jardim e passou a perseguir os insetos estranhos que habitam a nova paisagem. Ainda não lhe foi possível caçar uma das gaivotas do Rio Douro mas também não desistiu. Algum dia vai conseguir, pois a vida é assim - desafiante, trazendo consigo a permanente surpresa das emoções até então desconhecidas e que lhe dão significado e sentido.


sábado, 15 de abril de 2017

Aniversário

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Quando nos conhecemos éramos muito jovens e cada um de nós pai de duas filhas. Egressos do jornalismo, trabalhávamos na mesma agência de publicidade, pois para quem era muito jovem, tinha família e precisava de dinheiro, a publicidade pagava melhor. Numa prolongada noite em um bar de Belo Horizonte selamos nossa amizade. Descobrimos que havíamos lido os mesmos livros, ouvido as mesmas músicas, gostávamos dos mesmos filmes e tínhamos a mesma visão do mundo.

Foi um encontro que durou mais de cinquenta anos. Perpassamos ideias, tivemos vitórias e fracassos,  vivemos num país em que muitos amigos morreram na prisão sob tortura, algumas vezes nos separamos e tornamos a nos encontrar. Continuávamos a conversa interrompida. Ele, cristão. Eu, não tinha Deus como referência porque não recebi a graça da fé. Mas ambos acreditávamos na luta pela justiça social, na paz e no destino superior do homem.

Sua morte me fez pensar na passagem do tempo, no tempo cujo significado é a vida presente. O futuro é sempre o lugar em que estamos e o passado é feito de momentos mortos. Do passado restarão apenas a intensidade de alguns instantes vividos, o amor pela vida e uma antiga e boa amizade. Hoje, dia 15, era seu aniversário.

quinta-feira, 6 de abril de 2017

Anna



Sua alegria deixava no entanto transparecer a tristeza que seus gestos largos, o riso aberto e a forma franca de falar não conseguiam esconder. Talvez nesses momentos ela se achasse mesmo feliz, pois assim representava, incapaz de uma palavra que pudesse desmentir aquela euforia diante dos acontecimentos  da vida.

Assim ela era. Ou como os outros a viam. É mesmo difícil perceber quando há uma sombra no fundo do olhar enquanto a boca e o riso procuram acompanhar gestos largos mas aflitos. Sua voz era sempre alta, às vezes parecia expressar timidez, em outras transmitia o ligeiro tremor que perpassa as almas em desespero.

A maior lembrança da sua presença não me vem da felicidade em que todos acreditavam mas sim da melancolia, da desesperança que seus olhos transmitiam discretamente, sufocando o riso. Num dia muito claro, de muito sol sobre as praias do Rio de Janeiro, quando ela se matou, todos os que a conheciam se disseram chocados, surpreendidos pelo inesperado. Mas seu olhar sempre anunciara aquilo.