sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Largo do Machado


Como acontece com as ruas, existem também praças vivas e praças mortas, que têm o destino de permanecerem vazias, como a Praça Paris, no centro do Rio. Foi restaurada há pouco mas é apenas uma paisagem. O Largo do Machado, ao contrário, pulsa vida. Está sempre em movimento, povoada por seu diversificado elenco de aposentados, carrinhos de bebê, usuários de crack, marginais de todo tipo, estudantes e belas garotas matando o tempo.

Não chega a ser um bairro. Foi chamado sucessivamente de Campo das Pitangueiras e Campo das Laranjeiras. Seu nome vem de um açougue que tinha um grande machado na porta identificando o estabelecimento.

A decadência que deteriorou a vizinhança não tirou a alegria do Largo, que ainda ostenta certa beleza carregada de história. Quando Santos Dumont, em 1906, decolou com o 14 Bis e virou glória nacional, foi lá que um grupo de boêmios anunciou sua chegada para jantar no Lamas. Um deles fantasiou-se, fez-se passar pelo herói, acenou para a multidão que lotava a praça e jantou e bebeu de graça com toda a sua falsa comitiva.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

O amor que não ousa dizer seu nome


As duas meninas estavam uma de frente para a outra, no vagão lotado do metrô. Elas se olhavam com a intensidade de amantes surpreendidas pelo desejo, quando o mundo em volta desaparece e só passa a existir a vontade dos corpos, a desesperada vontade dos corpos de se abraçar e de se unir. Elas balbuciavam sussurros da boca para o ouvido uma da outra, no meio da multidão apertada dentro daquele vagão, às cinco em ponto da tarde.

Os sussurros eram acompanhados de sorrisos leves e de olhares fixos um no outro, dava quase para se ouvir a respiração ofegante de uma e de outra, alguma coisa intangível quase que as sufocava dentro do vagão apertado e de repente elas aproximaram as bocas abertas e as juntaram coladas num beijo profundo.

Poucos passageiros viram, nenhum deles disse nada, alguns olharam com atenção. Elas saltaram quase abraçadas na Estação Botafogo, eu me lembrei de “O poço da solidão”, de Radclyffe Hall, a história de Stephen, de nome Mary Olivia Gertrude, e do seu desengano diante do preconceito na Inglaterra de 1928. Oscar Wilde, falando sobre o livro, resumiu assim: "As circunstâncias são as marcas de chicote que a vida deixa em cada um de nós. Alguns as recebem com as alvas costas inteiramente nuas..."

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Estado e religião


A cidade ficou mais limpa, com o passar do primeiro turno das eleições. Os cartazes não chegam a colaborar com o lixo visual da paisagem mas a campanha política tomou um rumo surpreendente, mais suja nos seus temas, apesar da compunção religiosa que tomou conta dos discursos.

As igrejas parecem nada ter aprendido com a história das suas intervenções na política e das tragédias em que foram protagonistas na França, na Espanha e em toda a Europa medieval. O melhor exemplo da mistura ruim de Estado e religião está presente hoje nos países árabes. No Irã, uma ditadura carola mostra o resultado em um país dirigido pelo Corão.

Religião e repressão são palavras que, rimadas, acabam por se juntar no exercício do poder temporal. Talvez por isso a expressão igreja progressista tenha trazido consigo insanável contradição. Mais uma vez as igrejas mostram como são obtusas quando procuram tutelar os destinos do povo.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Minissaia


Nos anos sessenta, as mulheres encurtaram a saia em 20 centímetros acima dos joelhos e ficaram mais femininas. Mais ou menos na mesma época, feministas radicais queimaram os sutiãs. Embora por motivos diferentes, os dois movimentos melhoraram bastante o visual da mulheres, as feias que me perdoem.

Disputam a autoria da minissaia a inglesa Mary Quant, o francês André Courreges e a americana Helen Rose, mas na China da Idade Média a saia curta Miao, que mal cobria as nádegas, foi uma novidade a causar certo frisson.

A partir dos anos 60, as mulheres nunca mais abandonaram a moda das saias muito curtas. Nos colégios religiosos, as meninas, longe da disciplina das professoras, costumam dobrar a bainha da cintura, encurtando a saia do uniforme escolar, para desfilarem pelas ruas de Copacabana. As fêmeas, em todas as espécies, têm sempre uma maneira mais ou menos sutil de atrair os machos e, assim, garantirem a preservação da espécie.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Coisas íntimas


Na mesa da esquerda dois homens conversam, quase bêbados. Um deles faz confidências ao outro. Não é muito comum homens confessando coisas íntimas, a não ser quando bêbados. As mulheres, ao contrário, expõem mais facilmente os seus sentimentos.

O homem gordo dizia ao outro que nunca se sentiu à vontade no casamento, parecia que ela, a mulher, alimentava enquanto ficaram juntos um certo sentimento de hostilidade que os afastou. Ele diz que segurou enquanto pôde até o dia em que arrumou algumas roupas numa mala velha e saiu de casa. A antiga hostilidade transformou-se em ódio.

Ele continuou a falar, o outro escutava com interesse. Acrescentou que já se sentia cansado de se defender perante juizes e delegados de acusações por conta de agressões que nunca praticou, de pensões de alimentos que não devia e de intrigas espalhadas no trabalho e entre seus amigos. Ficaram muito tempo conversando. Procurei desviar minha atenção, pois comecei a me sentir violando o sofrimento de um homem quase bêbado, num botequim de Copacabana.