quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Um ano sombrio


Morte, destruição e tristeza são as marcas de um ano que começou com aquela tragédia na Região Serrana: mais de novecentos mortos e 400 desaparecidos. Gente que um dia antes estava a nosso lado. O dinheiro da ajuda perdido nas trevas da burocracia, parte dele roubado pelo prefeito de Teresópolis.

Doze crianças assassinadas numa escola de Realengo, o primeiro massacre desse tipo no Brasil; cinco pessoas mortas no acidente do bondinho de Santa Teresa, explosão de bueiros em ruas movimentadas. Um único cataclismo, no Japão, deixou mais de mil e trezentos mortos.

São apenas as primeiras lembranças que me ocorrem, ao pensar em 2011. O que me traz também à memória um quarteto que Vinícius teria escrito faz 43 anos:

Mil novecentos e sessenta e oito,
ano assim nunca se viu;
mil novecentos e sessenta e oito,
Vai pra puta que o pariu.

sábado, 17 de dezembro de 2011

À espera do verão


No botequim da esquina, os quatro velhinhos gays bebiam chope, hoje pela manhã. O sol que surgiu anunciando o verão trouxe consigo o desfile em direção da praia. Os velhinhos escaneavam a rua com ágeis olhares e examinavam com interesse os rapazes que vinham da estação do metrô.

Pareciam felizes, embora discutissem a decadência do bairro. O que se veste com maior apuro disse que Copacabana começou a se perder quando surgiu o primeiro café em pé. Não foi contestado pelos outros e acrescentou que, antes dessas aberrações de hoje, os cafés eram como os de Paris e como são até hoje os de Buenos Aires. As pessoas podiam sentar-se para um café e dali observar o mundo.

Depois baixaram a voz e, cochichando, desviaram o olhar para um jovem negro que atravessava a rua.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Os velhos


Os prédios onde vivem parecem pombais. Eles olham das janelas para a rua, são como pombos abrigados em caixotes. Olham para fora na busca de ar, de mais espaço e de alguma paisagem para contemplar, mesmo que seja a da Barata Ribeiro, inundada de gás carbônico.

Estão sempre nas janelas mas também na filas do supermercado e do banco. Alguns sentam-se nos bares, olhando para a rua ou para lugar nenhum, com o ar distante de quem na verdade não está ali.

Os mais sociáveis se organizam em jogos de baralho, ocupam as mesas feitas de cimento nas praças quase desertas. Reunem-se para passar os dias, cada vez mais longos, de anos cada vez mais curtos.

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

O mar


Se a paisagem da sua natureza não fosse tão bela, o Rio seria uma cidade desumana, como existem tantas no país. Opressivas, de ar pesado, trânsito louco, violência, miséria e cáos.

As cidades marítimas aparentam certa leveza e olhar o mar transporta o espírito para alem do horizonte, como se divagassemos em torno da nossa própria origem no universo das águas. Até mesmo um ligeiro contemplar proporciona pequena fuga de uma realidade às vezes sufocante.

Copacabana, no entanto, afasta de si o mar. Um paredão de quiosques, passarelas, arenas esportivas, palcos para shows barulhentos e construções enigmáticas bloqueia a praia. A cidade se afasta das águas. O carioca odeia o mar.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Luiz Carlos


Quando nos conhecemos éramos dois adolescentes interessados em literatura, amantes da poesia. O destino nos levou para caminhos diferentes mas de vez em quando vinham notícias de longe, de onde ele morava e trabalhava.

Voltamos a nos encontrar passados muitos anos, estavamos quase velhos. No bar, em Copacabana, ele disse que já estava se acostumando com a idéia da morte. Respondi com uma frase um pouco literária, a de que a vida não passa de uma preparação para a morte. E lembrei o verso de Unamuno: toda vida, ao final, é um fracasso.

Continuamos a beber, um pouco mais depois daquela conversa sobre a morte e o fracasso. Depois ele voltou para Natal, morreu poucos dias depois de um ataque do coração. Lula. O poeta Luiz Carlos Guimarães.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Fim de tarde

Sentaram-se na última mesa da calçada do botequim. Haviam chegado apressadamente, um depois do outro, aparentando certa urgência e dispensaram o garçon que se aproximou. Não queriam nada. Ficaram olhando em direções diferentes. Ele acompanhava o trânsito da Barata Ribeiro, ela fingia procurar alguma coisa para o lado da Paula Freitas. Ela usava uma calça jeans bem justa e trazia uma sacola de papel com algumas roupas, ele calçava chinelos e vestia uma camiseta verde, desbotada. Estavam muito sérios e passaram a olhar para o chão, compenetrados. O garçon os fitava de longe, encostado no umbral da porta e fez um comentário qualquer com alguém que se encontrava no caixa. Os dois não trocaram qualquer palavra nem quando ela, uns 15 minutos depois, levantou-se, acenou para um taxi e embarcou. Ele chamou o garçon, pediu um chope e voltou a olhar, desta vez para o lado da Paula Freitas.

sábado, 5 de novembro de 2011

Trilheiros

As pinceladas de vermelho no horizonte emolduravam a paisagem nos primeiros minutos do dia. O céu limpo de núvens preparava-se para receber o sol. O vento que batia em nosso rosto já não era tão frio e prenunciava calor nas serras. O ronco das motos era o único barulho perturbando a tranquilidade daqueles campos onde não faltavam sequer algumas vacas no amplo e ondulado espaço verde. Desaceleramos para olhar um pouco o quadro em nossa volta, respirar o ar fresco e sentir um pouco mais a euforia que nos trazia uma intensa sensação de liberdade. Logo adiante, depois da curva, sairiamos da estrada para percorrer uma trilha estreita, acidentada, onde outras paisagens, surpreendentes, iriam se suceder no meio da antiga mata atlântica. Tornamos a acelerar porque era domingo, eramos jovens e havia uma manhã que nos desafiava.

domingo, 23 de outubro de 2011

Belinha

Ela foi uma gata de rua, arisca e ligeira, cliente das latas de lixo, caçadora de ratos. Adotada, acostumou-se ao apartamento mas não perdeu o instinto. Expulsou os pombos que ocupavam o terraço e permanece atenta ao cochilo dos pássaros de Copacabana. Ela é capaz de pegá-los em pleno vôo.

A lembrança da fome a persegue e se revela no apetite voraz e na adoração por comida. Embora tranquila, não suporta ser agarrada ou obrigada a ficar no colo. O gato foi o último animal que o homem domesticou e guarda muito do caráter dos felinos selvagens.

Carlindo Costa, fotógrafo, capturou seu olhar sereno mas atento, capaz de acompanhar qualquer movimento que se faça em sua volta. A posição de repouso em que se encontra mostra simpatia pela pessoa que a está encarando mas revela antes de tudo a confiança que tem em si mesma.

sábado, 15 de outubro de 2011

Protestos


Os protestos que ocupam as praças pelo mundo afora trazem uma novidade. Não se trata apenas do uso da internet, como querem os jornais, preocupados mais com o meio do que com a mensagem.

Pela primeira vez, a polícia e a repressão não sabem a quem culpar pelo que possam chamar desordem. Os comunistas perderam a força, as esquerdas se dividem, a União Soviética decepcionou como modelo e não existe mais.

Os que protestam no coração do capitalismo chamam a atenção para a falência desse outro modelo. Mostram também como são destituidas de sentido as pequenas marchas no Brasil contra a corrupção. Num discurso em Wall Street, o inquieto filósofo Slavoj Žižek apontou com precisão que o problema não é a corrupção, mas o sistema.

domingo, 9 de outubro de 2011

Mendigos


Muito magro, o torso quase da espessura da perna atrofiada, ele pede dinheiro na Barata Ribeiro apoiado numa muleta e num pequeno bastão. Um outro estende a mão na esquina da República do Peru, muito sujo, portador de uma doença revelada pela extrema palidez em todo o seu corpo.

Na porta do metrô, uma mulher se dirige a quem passa para pedir que lhe paguem o valor da passagem e no sinal de trânsito um outro aborda os motoristas sentado numa velha cadeira de rodas. Um outro divide com ele a rua. Paralisado cerebral, percorre os corredores do trânsito congestionado num andar dançante, quase cômico.

Eles são muitos, de vez em quando desaparecem, talvez recolhidos pelos serviços sociais da Prefeitura. Mas sempre retornam para avivar no bairro a consciência da miséria humana e talvez despertar a má consciência nos que bebem nos bares ou passam em direção à praia.

domingo, 2 de outubro de 2011

Beija-flores


Descortinando a flor entre o som de buzinas, a fumaça dos escapamentos e a poeira do dia de Copacabana, eles costumam aparecer sem aviso. Há quem disponha bebedouros nas janelas, uma mistura de água e açúcar que, dizem os cientistas, acaba por exterminar a espécie pela descalcificação da casca dos ovos.

São tipos diferentes, de corpo e plumagem diversa, alguns mais agressivos, outros mais pacientes. A rapidez do vôo e a beleza dos movimentos pouco revelam da luta feroz que travam entre si pela mesma flor.

Quando parecem descansar, estão na verdade vigiando o território conquistado contra a ameaça de invasores. Mas é por um momento muito breve, como este da bela foto obtida por Marco Paganini num jardim da California.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Primavera


Esta sucessão de dias em que se alternam calor e um certo frio marca o início da nossa primavera. Não é tão bela e tão intensa quanto a do Hemisferio norte, que desabrocha as flores em março, mas nos dá em setembro este céu claro e atmosfera limpa.

A cidade se prepara para o verão. Este ano, considerando as amostras e as previsões, teremos de novo um calor abissínio, com a volta da epidemia de dengue, sem contar as gripes típicas da estação.

Copacabana hibernava mas já dá sinais de que começa a despertar. Daqui a pouco chegam os turistas, de pele muito alva, como pássaros brancos anunciando o verão. Terá início uma festa que só vai terminar bem depois do carnaval.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Papagaios


Eles devem morar no Morro de São João, aqui em frente, lá no alto, depois da Ladeira do Leme. É um pequeno bando, de oito a dez, que de manhã bem cedo sobrevoa a muralha dos edifícios de Copacabana e segue em desorganizada esquadrilha no rumo da praia.

São quase inteiramente verdes, com tons de amarelo e azul na cabeça e passam fazendo barulho com seu canto estridente em seu típico vôo desajeitado.

Sempre me perguntei o que um bando de papagaios vai fazer na direção do mar. Mas sei que eles vivem cerca de 40 anos e costumam unir-se em casais que duram por toda a vida. Às vezes voam tão juntos que, de longe, dão a impressão de serem apenas um.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Um gentleman


Lembrança de Eduardo, de cuja morte soubemos, eu e outros amigos. Procuramos muito descobrir por onde andava, depois que sumiu, até que nos chegou a notícia. Uma morte discreta, íntima, como ele sempre viveu.

Já falei aqui sobre Eduardo, o homem mais elegante que conheci. E de suas oito namoradas, que manteve durante muitos anos sem que uma soubesse da outra. Quando o segredo acabou por ser revelado entre elas, mesmo assim continuaram a lhe fazer companhia nos fins de semana, ora uma, ora outra. Dava-lhe algum trabalho administrar esse amor com tantas faces, pois às sextas-feiras, no fim da tarde, começavam os telefonemas.

Cavalheiro perfeito de um tempo passado, figura romântica de charme envolvente, as mulheres não o conseguiam odiar.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

O poder do Estado


O governo anuncia aumento de impostos sobre o fumo e a bebida com o fim de angariar dinheiro e inibir esses hábitos.
As proibições cercam o homem civilizado. Foram-lhe cassados os direitos de fumar, beber ou comer de acordo com seus desejos.

As regras limitam sua existência. Educar significa repressão e lhe são exigidos diferentes comportamentos de acordo com o ambiente em que se encontra.

O Estado existe para a prática da dominação. Tem o poder de obrigar as pessoas a fazer ou deixar de fazer alguma coisa mesmo contra a própria vontade. Foi criado pela força e não por um contrato social, como queria Rousseau.

domingo, 4 de setembro de 2011

Encontro


De roupas sujas, barba de uns três dias e olhos arregalados, Marquinhos passou por mim na Barata Ribeiro. Parava de vez em quando, abria as pernas, levantava os braços e dava um grito. Bem diferente da semana passada, quando o vi de roupa limpa, sóbrio e compenetrado.

Ele desaparece de vez em quando, provavelmente internado. Quando volta, aparenta certa calma até que volta a xingar os passantes naquela algaravia que constitui sua linguagem. E torna a dirigir o trânsito e esculhambar os motoristas.

Em seus altos e baixos, na angústia expressa em sua face e nos seus gestos, Marquinhos parece nos ensinar como a vida não tem lógica e como é confusa a cidade em que vivemos.

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Escultores



Os turistas param, tiram fotos e se admiram com as formas femininas tão bem reproduzidas. Alguns deixam dinheiro e é assim que vivem os escultores da areia, artistas da praia que dela se sustentam.

Há poucos anos, em nome da ordem, um secretário da prefeitura destruiu com chutes essas frágeis esculturas. Mas as críticas que recebeu inibiu outros choques e os artistas refizeram suas obras.

Michelangelo esculpiu em mármore e suas estátuas são eternas. Os escultores da areia de Copacabana precisam continuamente refazer as suas. À noite, elas são destruidas pelo vandalismo e o simples prazer dos bêbados que percorrem drogados a madrugada. E os artistas recomeçam na manhã seguinte. Fazem um monte de areia, recolhem água do mar para umedecê-la e tornam a esculpir sua visão da cidade, das mulheres e do mundo.

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Um jazigo


Em um pequeno cemitério de animais foi enterrado o amigo Leitão. É um lugar calmo, mais tranquilo do que o cemitério dos humanos. Lá não existem as multidões do Dia de Finados nem os cortejos que acompanham o enterro dos poderosos.

Para seu jazigo, que Fernanda escolheu e organizou, fiz uma tradução livre do poema de Lord Byron na morte do seu cão Boatswain:

Aqui estão os restos de quem
tinha beleza sem vaidade,
força sem insolência,
coragem sem ferocidade
e todas as virtudes dos humanos
sem os seus defeitos.


Há um ditado galego que diz “quem a seu cão abandona, nem da própria mãe merece ter reverência”.

sábado, 6 de agosto de 2011

Uma cidade


A noite começava na Rua da Aurora, separada da Rua do Sol pelo Capibaribe, em cujas margens esperávamos o nascer do dia. O pouco dinheiro era bastante. A madrugada era uma festa e nós vivíamos na madrugada.

Havia os bares e seus habitantes, o calor da tarde e a brisa, o chope do Bar Savoy. O mar era distante, existiam apenas os dois rios que fazem o desenho de uma cidade das águas. E tinha os sobrados e os bares da ilha onde ficava o porto e onde a boemia celebrava a vida em um bairro que parecia deserto.

Quem teve a sorte de viver em Recife quando muito jovem, como aconteceu com Hemingway em relação a Paris, para onde for levará consigo uma festa em movimento. Pelo o resto da vida.

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Homenagens


A moça deu as costas para a estátua de Drummond, no Posto Seis, e olhou-a por cima do ombro enquanto suas amigas fotografavam. Na pose que ela fazia, o poeta, discreto como foi em vida, olhava com interesse para as suas nádegas. Penso que foi uma bela homenagem a quem escreveu um dia num poema

A bunda são duas luas gêmeas
em rotundo meneio. Anda por si
na cadência mimosa, no milagre
de ser duas em uma, plenamente.

Enquanto Drummond está sempre a ser fotografado na companhia das mulheres, a estátua de Caymmi não tem a mesma sorte, respirando o odor de peixe da colonia de pescadores. E o soldado ferido na esquina da Siqueira Campos, memória dos mortos da revolta de 1922, é o preferido dos pombos.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Nina


Ela possui um olhar meio vazio, como se olhasse e não visse. É bem velhinha, vestida com elegância numa roupa esportiva branca. O andar é curvado, como se o corpo tivesse encolhido na passagem do tempo mas caminha com alguma firmeza no calçadão de Copacabana.

Tem um cartão pendurado no pescoço com seu nome – Nina – e um endereço na Avenida Atlântica. Alguém da família teve a preocupação de escrever essas informações, provavelmente para obter ajuda no caso de Nina se perder na caminhada e não se lembrar onde mora.

A desorientação é um dos sintomas do Mal de Alzheimer, junto com a facilidade de se perder mesmo em ambientes conhecidos. Dizem os médicos que 3 por cento das pessoas entre 65 e 74 anos são acometidas pela doença. Após os 85, metade.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Ódio


Vicente me contou. Ao caminhar no calçadão, chocou-se violentamente com um homem que vinha em sentido contrário. Teve inexplicavel acesso de fúria e percebeu que o mesmo acontecia com o homem. Iam entrar em violenta luta corporal se não tivessem sido contidos e separados.

Voltou a caminhar e recordou um conflito da adolescência, quando se envolveu em luta insana e feroz com um desconhecido. Já não se lembra do motivo, mas que foram separados machucados e sangrando.

A memória veio como uma síncope. Era ele, o mesmo adolescente, agora também envelhecido, no calçadão de Copacabana. O acaso fez com que se chocassem e a mesma fúria refluira como se despertasse. Vicente, de natureza tranquila, diz que tem uma certeza: se voltarem a se encontrar, prosseguirão o confronto com o mesmo ódio que vai levá-los até o fim.

terça-feira, 12 de julho de 2011

Copacabana no frio


Nesses dias de frio, em que nos esquecemos do intenso calor que nos castigou em janeiro, os casacos sairam do armário e Copacabana perde sua identidade. As mulheres, habitualmente quase despidas, desfilam em toalete paulista.

As velhinhas do bairro demonstram maior padecimento, como se o clima acentuasse as rugas do tempo vivido. No calçadão, os andarilhos usam mangas compridas e marcham em rítmo mais acelerado.

Gotejando suor, com os olhos esbugalhados, Marquinhos, o maluco da vizinhança, atravessou hoje quase correndo a pequena praça Manuel Campos da Paz. Vestia um terno de linho branco, todo amassado mas limpo. Usava também uma gravata vermelha fina e suja. O frio não lhe dizia respeito.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Um cão chamado Leitão


Ele trouxe afeto e companhia a quem precisava. Pouco pedia em troca e nos olhava demoradamente. Parecia procurar saber em que pensávamos, o que nos preocupava ou entristecia.

Durante anos fizemos companhia um ao outro. Sabíamos nos entender e nos comunicar um com o outro pelo simples olhar e nossos momentos foram divertidos e bons. Com as atribulações da vida, sofreu grande solidão quando foi praticamente abandonado nas montanhas. Fernanda o acolheu e amou e agora é quem mais sofre com a sua morte.

Nos últimos anos, teve vida sossegada e feliz mas a velhice aproximou-se com seus estragos. Sabemos que a morte só existe porque existe a vida mas não nos acostumamos à resignação.Vale homenageá-lo com a lembrança de um amigo que nos ensinou como uma simples presença pode nos fazer felizes.

sábado, 2 de julho de 2011

O herói


Os gregos da antiguidade diziam que nada se deve temer, pois os heróis já enfrentaram todos os perigos antes de nós. O mito do herói sempre esteve presente em todas as civilizações e de Teseu a Luke Skywalker ele enfrentou todas as vicissitudes.

Não existem várias histórias diferentes vividas pelos heróis, mas apenas a única história de um só herói que se repete e nas quais o narrador coloca muito de si mesmo.

Joseph Campbell estudou toda a mitologia do herói para nos dizer que a única história, mil vezes repetida, é a da personagem que se lança na aventura, enfrenta inimigos, experimenta enormes provações e volta para casa depois de transcender a existência comum. A história é sempre a mesma. O que muda é a maneira de contar.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

O cão



O cão pertence a um mendigo mas costuma andar sozinho pelas ruas de Copacabana. Encontra-se com o dono já tarde da noite, quando ambos se abrigam embaixo da marquise de um edifício comercial da Barata Ribeiro.

O mendigo tem uma carroça carregada de sacos, embalagens usadas, panos velhos, latas, caixas vazias. Ele e o cão vivem segundo um acordo em que um protege o outro. O cão precisa de um dono e o mendigo precisa do cão para dormir tranquilo debaixo da marquise.

De aparência bem tratada, o pelo amarelado e brilhante, o cão se afasta durante o dia. Anda pela calçada com a determinação de quem vai a algum lugar. Desvia-se dos transeuntes, espera abrir o sinal para pedestres e só então atravessa a rua.

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Corporações


À maneira dos cães, os homens possuem o instinto da matilha e se reunem para agir, sobreviver e lutar contra as ameaças. Desde as origens se juntou em tribos e as corporações são hoje a melhor expressão desse primitivo instinto.

As empresas procuram unir suas equipes sob o estímulo emocional dos sacerdotes da área de Recursos Humanos. No Japão, algumas companhias fazem seus empregados cantarem o hino da fábrica antes do trabalho e nos EUA as convenções anuais se assemelham a um culto religioso.

Como numa guerra de matilhas, as corporações, cada vez maiores, lançam seus produtos contra os concorrentes e bradam gritos de guerra na conquista de consumidores. Arreganham os dentes e lutam pela vitória.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Inverno


Numa visita que fez ao Rio no mês de junho, uma jornalista americana disse que a cidade hiberna para despertar no verão. As ruas ficam como que vazias durante os meses de inverno e o carioca veste casacos de lã quando bate menos de 20 graus. No hemisfério Norte, esta é uma marca de calor.

Desaparecem os engarrafamentos e a viagem de Copacabana ao centro dura menos de quinze minutos. O mar se agiganta em ressacas acompanhadas de chuva. À noite, as ruas vazias lembram antigos fantasmas, a solidão nas grandes metrópoles, abandono e ameaças sombrias.

Em breve chegará setembro num outono de sol ameno e céu muito azul, prenunciando o verão, quando chegam as meninas muito brancas que em dois dias estarão rosadas e começarão a trocar a pele. O Rio vive e regurgita é mesmo no verão e no calor. O inverno o acalma e o faz dormir.

domingo, 5 de junho de 2011

Políticos


Aos cinquenta e três anos de idade, o ator Alec Baldwin olhou para si mesmo, rememorou seu passado profissional e perscrutou o futuro. Concluiu que sua carreira não ia mesmo deslanchar e anunciou que vai entrar na política. Depois do sucesso de Ronald Reagan, que chegou à presidência, a política tem sido uma alternativa para os atores americanos.

Ao analisar o sucesso de outros artistas, Tiririca também percebeu que tinha chances e foi eleito deputado por uma massa de votos que o consagrou. Depois de aparecer num programa de grande audiência na classe média, o professor Jean Wyllys igualou-se aos artistas e se beneficiou da grande votação de Chico Alencar, seu companheiro de partido. Também se elegeu deputado.

Olaf Palmer, ex-Primeiro Ministro da Suécia, disse numa entrevista que, quando jóvem, havia sido um razoável ator e um dedicado boxeador. Mas compreendeu que tinha poucas chances nas duas atividades. Resolveu então tentar a política porque era a única carreira que lhe permitiria fazer uso das duas aptidões.

domingo, 29 de maio de 2011

Luis Sérgio


A notícia da sua morte, ontem, foi um choque como costumam ser os acontecimentos trágicos. Há alguns anos publiquei alguns dos seus fotopoemas em Uma coisa e outra, uma pequena amostra da sua obra, de lirismo envolvente e grande beleza.


Luis Sérgio dos Santos, médico de profissão e poeta na essência da sua alma generosa, foi traído pelo coração. Nos últimos meses, dedicava-se a organizar uma antologia de poetas contemporâneos, com o entusiasmo que era um traço do seu caráter.

Nunca nos conhecemos pessoalmente. O gosto pela literatura e a internet nos aproximaram em um relacionamento cordial. Sua obra permanece, seu trabalho dará frutos. Mas o melhor se perdeu.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Larões de Cemitérios


A conversa derivou para a morte, destino comum de todos os viventes e que levou Miguel de Unamuno a escrever “toda vida ao final é um fracasso”. E daí alguém lembrou a existência dos ladrões de cemitério.

Existem três tipos de roubos que são praticados contra os mortos. O mais comum é o roubo das flores, logo depois do enterro, quando a família e os amigos se retiram. O morto, deixado na solidão absoluta, não precisa de flores e elas ainda estão frescas e custam caro no mercado da morte.

Outro tipo é o roubo do caixão, um ítem de valor deixado para alguém que não precisa de mais nada e que pode ser revendido para acomodar outro morto. E finalmente o assalto ao próprio cadáver para a retirada das próteses dentárias de algum valor. O homem é o lobo do homem, os romanos diziam antigamente.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Arruda


Arruda faz parte do pequeno exército de seguranças de rua com a missão de garantir alguma tranquilidade nos botequins de Copacabana com mesas de calçada. Antes, no colete preto que eles usam como uniforme, estava escrito Segurança mas parece ter havido uma proibição da Secretaria de Segurança e a palavra foi substituida por Apoio.

O trabalho deles consiste em ostentar a vigilância do quarteirão e afastar mendigos e pequenos vendedores que assediam a freguesia. A maioria é de PMs aposentados que fazem uma melhoria de renda. Exibem o rosto fechado e um porte condizente com a importância conferida por um certo poder de polícia.

Não é bem o caso do Arruda, responsável por um quarteirão da Barata Ribeiro. Ele ri o tempo todo, cumprimenta os clientes, ajuda os velhos na travessia da rua e dá jeito de conseguir no botequim alguma comida para um ou outro mendigo. Diz que sabe reconhecer, olho no olho, quem está mentindo e quem passa fome de verdade.

sábado, 7 de maio de 2011

O Relato de Prócula


Uma instigante e nova interpretação da vida de Jesus, descoberta num documento produzido por Prócula, mulher de Poncio Pilatos, é o leit-motiv do último livro de WJ Solha, mas o seu interesse não reside apenas nessa revelação. Um painel amplo de temas entrelaçados conquista o leitor até o desfecho surpreendente, valorizado pelo virtuosismo de um escritor que domina a sua técnica e sabe contar uma história.

Cinéfilo declarado, Solha homenageia uma infinidade de clássicos da história do cinema e escreve também, com este romance, um roteiro quase pronto para o que pode se transformar num belo filme.

O escritor, embora paulista, vive há muitos anos na Paraiba. Com amor e sensibilidade, incorporou a cultura nordestina no que ela tem de criatividade, singularidade e riqueza. O Relato de Prócula prova também, como notou Clemente Rosas numa resenha do livro, que, vivendo longe do circúito sulista de auto-promoção e mais fácil penetração na grande mídia, WJ Solha é menos conhecido do que merece a qualidade da sua obra.

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Paris, anos 20


Os anos vinte e os anos sessenta do século passado foram dois períodos que despertaram coisas novas na cabeça das pessoas, mudaram comportamentos e transformaram o mundo. Os sessenta foram marcados pelo movimento hippie, a libertação feminina e o impacto dos baby-boomers. Os anos entre 1920 e 1930 foram, no entanto, mais criativos.

Por esse tempo, atraidos pelo baixo valor do franco e o alto valor do dólar, entre as duas guerras, chegou a Paris uma leva de americanos que se aliou à vanguarda local e juntos mudaram o que veio depois deles na literatura, na música e nas artes. Hemingway, Cocteau, Picasso, Dali, Fitzgerald, Joyce, John dos Passos, Stravinsk, Prokofiev, Tristan Tzara, o surrealismo e o dadaismo, fizeram uma mistura de inteligência e talento verdadeiramente revolucionária.

Sem um tostão no bolso, às vezes tendo de caçar pombos com uma atiradeira nos Jardins de Luxemburgo para garantir o jantar, Hemingway, já velho, no apogeu do sucesso como escritor, recordava aquele tempo quando, como escreveu em Paris é uma festa , era muito pobre mas também muito feliz.

terça-feira, 26 de abril de 2011

Jota


Entre as centenas de mortos no trânsito das estradas e da cidade e na violência de cada dia, nenhum jornal noticiou a morte de Jota, que vivia na noite. Seu ponto era a esquina de Viveiros de Castro com Prado Junior, bem no meio da área onde a malandragem divide o espaço com os velhos moradores de Copacabana.

Jota foi encontrado debaixo de uma marquise com um tiro disparado à queima-roupa na testa. Ele fazia a vida prestando pequenos serviços às garotas do Barbarella, ia à farmácia e fazia compras nas lojas noturnas da vizinhança. Dizem que também estava à disposição para subir o morro e buscar algum bagulho a pedido delas ou de um cliente.

Gordo, pequeno, andava rebolando e tinha sempre ar de riso. Vestia um paletó cinza menor do que o corpo e calças jeans sem cor e era este seu uniforme. Parado na esquina, gesticulando e falante, puxava conversa e conhecia pelo nome os motoristas de taxi.

terça-feira, 19 de abril de 2011

La Tour d’Argent


Na mesa ao lado, os quatro velhinhos gays discutiam com o garçon e um deles liderava a indignação de todos contra o aumento no preço do prato. Eles costumam almoçar juntos, sem fidelidade a um único local mas estão sempre nos botequins da Barata Ribeiro, nos três blocos e meio entre Paula Freitas e Rodolfo Dantas.

“Reclama do galego”, disse o garçon, com receosa discrição e olhando para a caixa registradora; atrás dela sentava-se o dono do botequim. Mandaram chamá-lo e o mais alto deles, o que se veste com elegância, faz as sobrancelhas e usa uma bengala, procurou saber a razão daquele preço por um magro filé de peixe.

O dono do botequim acentuou o sotaque da Galícia e informou que estava comprando o peixe bem mais caro porque é assim todo ano na época da Páscoa. Um dos velhinhos riu com ironia e disse que por aquele preço nem o coelho da Páscoa. O da bengala, antes de recolher entre eles o dinheiro para pagar a conta, disse com desprezo que um botequim de terceira classe em Copacabana estava cobrando mais caro do que La Tour d’Argent, quando ele morava em Paris.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Ivan


Sua forte compleição atlética trabalhada com halteres pesados e um rosto fechado, com a moldura de um cavanhaque negro, completavam sua figura e o papel de homem mau que gostava de desempenhar. Exibia sua valentia. Quando bêbado, aumentava o volume da voz poderosa e todos se calavam, o bar ficava num silêncio amedrontado que nem parecia um bar.

Vestido de uma sunga de praia, viajava de moto nos fins de semana para Arraial do Cabo e passava a tal velocidade pela blitz da Polícia Rodoviária, em São Pedro da Aldeia, que os policiais não tinham ânimo de persegui-lo.

Gostava de armas. Calou o barulho de uma festa no apartamento de frente com um tiro certeiro no aparelho de som. Tinha medo de baratas e ternura pelos amigos. Na convivência, revelava-se um sentimental que não suportou a solidão. Naquela noite, bebeu uma garrafa de vodka, entrou no mar, nadou até muito depois da arrebentação e ficou lá para sempre.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Segunda-feira


O bairro amanheceu com o trânsito parado nos engarrafamentos. As fábricas de automóveis, produzindo mais de 3 milhões de unidades por ano, despejam esses novos modelos nas ruas. Qualquer dia poderemos despertar e assistir ao nó definitivo. O metrô, depois do fim da baldeação no Estácio, caminha para se igualar ao de Tóquio, onde os passageiros são empurrados com o pé para dentro dos vagões lotados.

Marquinhos em seu delírio tenta organizar o trânsito, cospe no chão e grita com os motoristas palavras que não articula mas que sabemos ser de ódio pelos olhos esbugalhados. As crianças reunidas diante da escola municipal ainda mostram um certo olhar de perplexidade e tristeza.

As previsões do tempo insistiram nos boletins de muita chuva para estes dias, acompanhada de raios e trovões, talvez houvesse enchentes. Mas o sol insiste e contradiz, apareceu em céu claro e as praias continuam cheias. Os turistas ainda estão por aí, de pele avermelhada, as meninas em vestidos leves e sandálias havaianas.

quarta-feira, 6 de abril de 2011

A transitória glória do mundo

Um dos homens mais ricos do mundo foi um sueco chamado Ivar Kreuger, que teve o monopólio da fabricação e venda de fósforos em práticamente todo o mundo. Em seus escritórios localizados no prédio de número 7, na elegante Place Vendôme, em Paris, comandava várias empresas, entre as quais a poderosa Ericsson, e administrava o monopólio de fósforos negociado com chefes de estado em quase todos os países ocidentais.

Kreuger era também um boa-vida, dotado de grande charme pessoal, amante de belas mulheres que frequentavam sua garçoniere no andar logo acima dos seus escritórios. Era também amante dos bons vinhos, que guardava no subsolo do mesmo prédio. Sua adega despertou inveja até no banqueiro J.P. Morgan, seu rival no mundo dos negócios internacionais.

Como todos os grandes investidores, Ivar Kreuger amava os riscos do poker dos grandes negócios, que enfrentava com reconhecida inteligência financeira e dos quais saía ainda mais rico. Numa dessas jogadas, a fusão da Ericsson com a ITT americana, blefou e deu-se mal. Na manhã do dia 12 de março de 1932, Kreuger comprou uma pistola Browning automática de 9 mm e cem balas. Usou apenas uma delas para matar-se com um tiro no coração.

quinta-feira, 31 de março de 2011

Animais de estimação


O pequeno poodle, inteiramente molhado, treme sob o chuveiro da mangueira operada pela moça da loja de animais. Sairá com o pelo enxuto, perfumado e aliviado do sofrimento que passou no corte do pelo e na tortura do banho. Sua dona, uma mulher de ar deprimido, aguarda o final do tratamento enquanto passeia pela loja e compra comida para o poodle.

Do lado de fora, enquanto olha para a vitrine, uma mulher negra protesta em voz baixa e diz que Copacabana tem tantos mendigos sujos e famintos enquanto aquele cão recebe tantos cuidados.

Ouço e penso que a miséria dos mendigos do bairro não consola a mulher deprimida que compra comida para o cão. Talvez desperte sua compaixão. Mas a solidão vivida nos pequenos apartamentos explica tanto amor pelos bichos e a existência de tantas lojas especializadas no luxo dos animais de estimação.

sexta-feira, 25 de março de 2011

Previsão do tempo


Um outono envergonhado veio amenizar o calor do verão mas o sol ainda fornece alegria a quem não dispensa a praia. Os vagões do metrô continuam a despejar os banhistas que vêm do subúrbio para Copacabana pelo caminho mais curto criado pelo acesso direto da Linha 2. O movimento é apenas pouco menor que o do verão e as chuvas anunciadas devem ter estacionado no Rio Grande do Sul, quando não escapam para São Paulo.

Os meteorologistas do nosso Hemisfério dificilmente acertam em seus palpites, que esbarram na inconstãncia do tempo ao Sul do globo terrestre. Enquanto ao Norte as estações do ano são bem definidas e as condições do clima apresentam-se previsíveis e imutáveis, possibilitando saber o tempo que vai fazer com grande antecedência, por aqui o regime de ventos e o caminho das núvens mudam a cada instante.

No Brasil, o único boletim meteorológico em que se podia realmente confiar era o da Rádio Tabajara de João Pessoa, que contemplava todas as hipóteses: “tempo bom com nebulosidades, sujeito a chuvas e trovoadas”.

terça-feira, 22 de março de 2011

Manhã cedo


Os botequins da Barata Ribeiro e os quiosques da praia abrem muito cedo, alguns sequer chegam a fechar. As boates e clubes noturnos atravessam a madrugada. Às primeiras horas, Copacabana mostra seus contrastes. Nos bares das calçadas, alguns tomam o café da manhã e outros bebem cerveja após a noite movida a outros prazeres menos inocentes.

A paisagem humana é diversa. Há os que se preparam para o trabalho no desjejum de café com leite, pão e manteiga. Dividem o bar com os boêmios que vêm da véspera e as moças de programa despejadas na rua com o fechamento das boates e que esticam num último gole antes do sono. De olhos vermelhos, observam os que vão andar ou correr no calçadão.

Eles não se misturam. Uns comem sozinhos, outros bebem cerveja ainda animados e os atletas andam a passos apressados em direção à praia. As velhas senhoras seguem para a primeira missa da manhã e olham desconfiada e silenciosamente na direção dos bares.

sexta-feira, 18 de março de 2011

Pedra filosofal


Nenhuma profissão dá garantia de enriquecimento tão rápido quanto a política. Em apenas um mandato, alguns políticos começam a dar sinais exteriores de que ascenderam na escala da fortuna e deixaram para trás tempos difíceis. Economistas pobres, advogados pobres, médicos, funcionários, pastores, empresários modestos parecem ter descoberto a pedra filosofal ao fim de apenas quatro anos.

A vocação para a política pode se revelar cedo, na vontade de mudar o mundo e reparar as injustiças da vida. A iniciação na luta política surge então nas disputas estudantis e evolui para a militância partidária. Ou então aparece como oportunidade para funcionários, líderes comunitários, dirigentes sindicais.

Os que pensam na justiça muitas vezes se transformam diante das tentações e das possibilidades de enriquecer. E os que viram na prática política instigantes oportunidades para fazer dinheiro – talvez a maioria – estes já chegam com o conhecimento completo dos infames labirintos.

sábado, 12 de março de 2011

A Língua Geral


A presença portuguesa no Brasil depois do descobrimento não foi suficiente para, espontaneamente, impor no país a hegemonia da língua portuguesa. Até a segunda metade do Século XVIII, predominava no país a Língua Geral, o tupi, que era falada pela grande nação tupinambá. A ponto de o famoso bandeirante Fernão Dias Paes Leme, como tanta gente na época, nunca ter aprendido a falar português.

A Língua Franca, como também era chamada, foi inicialmente usada pelos jesuitas para ajudá-los na catequese. E espalhou-se pelo país com as bandeiras e as entradas pelo interior. O Marquês de Pombal a proibiu e obrigou a colonia a só falar português, mas a Língua Geral deixou remanescentes em inúmeras palavras do vocabulário brasileiro. O sotaque caipira do sul do país, com os rr de língua enrolada, é uma dessas heranças.

Apesar dos esforços dos governos das antigas colonias portuguesas, que tentam manter a unidade lusoparlante, o falar do Brasil afasta-se cada vez mais dos padrões clássicos. Um saloio português e um caipira brasileiro falam línguas diferentes, dificilmente se entenderiam.

terça-feira, 8 de março de 2011

Marlowe


Junto com Dashiell Hammet, Raymond Chandler renovou a literatura policial americana de uma forma que veio a influenciar dezenas de escritores mundo a fora. Eles foram contemporâneos, criaram arquétipos literários e morreram ambos de tanto beber.

Chandler escreveu oito romances em que a personagem, Philip Marlowe, é um detetive particular que tem uma atitude filosófica diante da vida e joga xadrez. Mas do xadrez ele diz que “é a mais elaborada forma de desperdício da inteligência humana, com exceção de uma agência de publicidade”.

No cinema, Marlowe foi interpretado por diferentes atores, entre os quais Humphrey Bogart e Robert Mitchum, que criaram tipos memoráveis. Ele dizia que “o álcool é como o amor. O primeiro beijo é mágico, o segundo é íntimo e o terceiro é rotina. Depois disso, você tira a roupa da garota”.

sexta-feira, 4 de março de 2011

Pássaros


Os pardais que habitavam Copacabana vieram de Lisboa mas foram quase todos expulsos pelos pombos. Outros pássaros, no entanto, parecem desafiar esses inimigos e frequentam o bairro com alguma desenvoltura. Povoam as árvores da Barata Ribeiro e os jardins das coberturas.

Eles vêm das matas que ainda existem no cocoruto dos morros dos Cabritos, São João, Babilônia, Uribu e do Leme. Ornitólogos consideram que, apesar de todas as condições precárias que existem para a vida nas grandes cidades, o número dos pássaros urbanos vem aumentando. Aqui no bairro, basta prestar atenção. Eles estão por aí.

Sabiás, beija-flores, bem-te-vis, cambacicas, canários, quero-queros, sanhaços, andorinhas, trinca-ferros, rolinhas. Os papagaios passam com seu canto rouco e vôo desajeitado pela manhã e regressam no fim da tarde ao Morro de São João. Um ou outro tucano, de vez em quando, aparece para surpreender. Sem contar as aves marinhas em seu incansável mergulho no mar para sobreviver.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Esquentando os tamborins


A enchente do mês passado na região serrana do Rio de Janeiro saiu das páginas dos jornais e do noticiário da TV. Novas notícias, outros acontecimentos dramáticos tomaram o lugar dos mortos de Friburgo, Teresópolis e Itaipava.

As vítimas foram estimadas em mais de mil e muitas ainda se encontram sob os escombros. O barro que restou no caminho das águas enterram os corpos em sepulturas desajeitadas. Muitos jamais serão encontrados e permanecerão para sempre na conta de pessoas desaparecidas.

O luto pelos mortos passa rápido na memória dos vivos. Restam como trágicas lembranças a leishmaniose, a leptospirose, a hepatite A e a toxoplasmose. Pois agora é tempo de festa, do carnaval que excita as multidões e as leva para as ruas exaltando a vida.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Perversa Paixão


Perversa Paixão (Play Misty for Me), primeiro filme de Clint Eastwood na direção, traz alguns defeitos que se pode debitar a sua inexperiência atrás das câmeras. Mas já tem a marca do seu talento.

É uma história com ingredientes de terror filmada em 1971, depois da sua volta aos Estados Unidos. Ele havia passado alguns anos na Europa estrelando spaghetti westerns e aproveitou para aprender com Sergio Leone alguns truques de narração que veio a desenvolver mais tarde.

Play Misty for Me, no entanto, foi feito sob clara influência de Don Siegel, mestre de filmes B hollywoodianos, grande amigo de Eastwood. Ele chega a fazer neste filme um pequeno papel como ator. Vale a pena ver como um bom filme continua bom quarenta anos depois.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Religiões


A crença nas divindades consola as emoções humanas e dá aos homens a esperança de sobreviverem à morte. Compensa a brevidade da vida e assegura a existência de uma outra dimensão desconhecida. Os sacerdotes, intermediários entre os viventes e as entidades divinas, encarregam-se de descrever o além e de assegurar a eternidade do castigo para os maus e da bonança para os bons.

As religiões desprezam a vida em benefício da morte, quando só então existe a possibilidade de paz para as almas e eterno descanso para o corpo. A doutrina das grandes religiões tenta domar o comportamento humano e dele exigir absoluta fidelidade a seus mandamentos.

O sacrifício é cultuado e promovido, pois só através dele são possíveis as recompensas. A repressão aos instintos vitais é a prova de fidelidade aos preceitos divinos. As religiões têm escravizado os homens em troca da esperança.