segunda-feira, 30 de maio de 2016

Salmo




Estou sentado numa praça à espera do Senhor.
Ele está atrasado e dos bancos em que se sentam os ricos
caem migalhas de pão que é o seu corpo.
Falta vinho, que é o seu sangue,
mas o vinho não falta em suas ceias.

É longa esta espera, como longos têm sido os dias
em que tento me mover no trançado dos espinhos
ou na cruz que me tem pregado.
Não há fuga quando as amarras se misturam
aos braços, às pernas e no pensamento.

Não reconheço este sítio onde espero
e observo a fartura em outros bancos
eu faminto, insone, o corpo exibindo suas chagas
nas escadarias dos templos visitados.

Tenho permanecido na vizinhança das árvores
porém longe das sombras ocupadas.
Divido água e comida com os bichos.
À noite, penso que Deus é invenção soturna,
como os pássaros que cercam esta lugar.

terça-feira, 24 de maio de 2016

Eu vi



Eu vi quando o país entrou no coração das trevas e lá ficou por mais de vinte anos. E vi o movimento hippie imaginar que a paz e o amor poderiam reger o mundo, para depois concluir que o sonho tinha acabado. Vi amigos que caíram, foram torturados ou morreram jovens, muito jovens. E o mundo continuou o mesmo, com suas contradições caminhando para a violência sem solução.

Uma geração sem legado num tempo em que a tecnologia diminuiu o tamanho do mundo e o transformou em mercado. Os ventos alísios trouxeram esperanças mas a escuridão do pensamento os bloqueou nascituros. Falou-se em revoluções afogadas e os sonhos que imaginavam a paz foram transformados em pesadelos sombrios.

O homem sonha enquanto vivo. Seus fracassos se dissipam sob a chuva cinzenta das ventanias do inverno. Há sempre o desejo de levantar-se depois das quedas para continuar a marcha na direção de um destino construído pelo acaso, pela direção dos ventos.

sexta-feira, 20 de maio de 2016

Cidades mortas



Nínive, chamada de grande demais no Livro de Jonas, foi arrasada seiscentos anos antes da nossa era. Nada restou dos seus palácios e da sua grandeza. Atlântida, potencia naval que teria sido Tantalis, capital da Lidia, desapareceu no mar e o que ficou de sua memória foi apenas a menção que lhe fez o filósofo Platão.

As cidades crescem, desenvolvem-se e morrem. Desaparecem seus feitos e tudo o que viveram seus habitantes. Delas pouco fica e tudo se transforma mesmo quando continuam a existir. Roma não há mais. A moderna Roma traz consigo apenas a lembrança do seu esplendor. Os contornos de sua alma são lembrados no registro dos seus escritores e na obra dos seus artistas.

As civilizações desaparecem como tudo o que é humano. Fica a memória. Como ficou a dos persas, a dos egípcios e a dos hebreus. O que restará do mundo em que vivemos, das cidades onde nascemos e de tudo o que está construído e feito em nossa volta? No futuro, existirá apenas o registro do pouco que fizemos e certamente a lembrança dos tempos cruéis que habitamos.

segunda-feira, 16 de maio de 2016

As sombras



Eram bandos derrotados que voltavam
de batalhas nunca conhecidas
porque foram travadas
em campos nunca revelados.

Doía-nos ver os ferimentos
e o sangue da boca dos meninos,
porque eram meninos que voltavam
cansados como velhos aleijados.

Passaram por nós, ainda hoje estão passando
como sombras ou fantasmas de crianças.
Em nós há de ficar sua lembrança,
a de seus rostos que nunca esqueceremos.

Estes bandos que passaram e passam
tão perto de nós que nos impregnam
com seu cheiro, seu hálito e seu cuspe,
para sempre cercarão nossa memória.

Mesmo que o tempo apague a sua trilha,
eles permanecerão como se fossem estátuas
de pedra, banhadas pelo pranto,
recortadas sobre um céu de chumbo.

quarta-feira, 11 de maio de 2016

A traição



A humanidade despreza os traidores. Os episódios de traição registrados pela história o são com tintas dramáticas, violentas e trágicas. Assim como na mitologia religiosa, onde Lúcifer foi punido com a suprema condenação pelo crime de trair o próprio Deus. Em nenhum momento se vê a defesa ou o perdão para os traidores. Seria então o maior dos crimes praticados pelo homem contra o homem.

Dante Alighieri, na sua monumental Divina Comédia, que muitos consideram uma representação total do universo, reservou o Nono Círculo, o mais profundo do Inferno, para aqueles que praticaram atos de traição. É onde existe um lago chamado Cocite, eternamente congelado e formado pelas lágrimas de todos os condenados, e também pelos rios de sangue que banham os campos do inferno.

Os traidores cumprem sua condenação em quatro diferentes esferas, divididos entre os que traíram os seus parentes, os que traíram seus hóspedes, os que traíram seus mestres e reis e, na esfera que Dante nomeou Antenora, estão os que traíram sua pátria ou seu partido político. Submersas, com apenas a cabeça fora do gelo, estão condenadas para sempre as suas almas.

domingo, 8 de maio de 2016

Regresso




O homem é velho e pinta os cabelos que usa compridos e penteados com cuidado para esconder a calvície. Veste-se com roupas já bem usadas e mostra alguma vaidade também na combinação das tonalidades, na camisa cuidadosamente enfiada nas calças e nos sapatos de duas cores. Perguntou-me onde ficava a agência da Caixa mais próxima e seguiu na direção indicada.

Voltou algum tempo depois e sentou-se na mesa do lado. Disse que havia morado vinte anos no prédio em frente e que estudou na Sorbonne. Depois me deu as costas e continuou bebendo cerveja, olhando distraidamente o prédio onde disse que havia morado. Quando fui embora ele continuava lá, com a cerveja pela metade. Não pareceu ter percebido o meu gesto de despedida.

Tem aparecido ali todos os dias, veste a mesma roupa com os sapatos de duas cores. Bebe pouco, uma cerveja só, esperando a hora do almoço. Seu olhar se fixa no prédio em frente. Não responde ao meu cumprimento, é como se não estivesse sentado no botequim mas na sala ou no quarto de um apartamento qualquer do prédio onde ele disse que havia morado por vinte anos.

terça-feira, 3 de maio de 2016

O Absoluto



Faz parte da natureza humana indagar sobre si mesma. Desde muito cedo, ainda em sua infância, surgem diante do homem as interrogações sobre o destino, a origem e as razões de existir. As religiões têm respostas para todas as perguntas mas aqueles que não foram tocados pela fé permanecem em sua perplexidade ou simplesmente desistem de perguntar. Mas de vez em quando as inquietações ressurgem para permanecer sem respostas.

Abandonado no espaço e no tempo do universo, o homem será sempre acompanhado de dúvidas, na busca perdida de verdades. Tem uma vaga noção do absoluto mas se perde na relatividade do acaso que rege a sua vida como única lei inquestionável no mundo. A angústia da solidão o persegue também como prenúncio da morte, única certeza que o acompanhará em toda a sua curta trajetória na vida.

Os poetas dedicam toda a sua existência escrevendo um único poema. A filosofia tangencia uma única fímbria do conhecimento e todos os artistas dedicam a vida a buscar uma só manifestação da beleza. Todos investigam um único sinal que os possa guiar a um momento único, capaz de explicar o Absoluto. É um esforço em vão.