quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Lauzerte


A apenas 35 quilômetros de Cahors, Lauzerte domina do alto um belíssimo vale da região do Tarn e Garonne. Tem apenas 1.500 habitantes, embora regurgite de turistas nos meses de verão. Esteve no apogeu nos séculos XII e XIII, quando seu papel defensivo se aliou ao de etapa na viagem dos peregrinos que se dirigiam a Santiago de Compostela.

A maioria das cidades do Sudoeste francês teve um papel importante como parte dos caminhos de Santiago, um movimento que mudou a face da Europa e dos povos desse continente. Algumas desapareceram, outras entraram em profunda decadência e poucas se mantiveram com o traçado e arquitetura da sua época.

Lauzerte é um monumento preservado da Idade Média. Merece bem o título de uma das “plus beaux villages de France”, que recebeu do Governo junto com poucas outras deste país com tantas belas cidades.

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Louras e morenas


Entre nós, as morenas e mesmo as mulatas pintam os cabelos para sentirem-se louras. No verão, desfilam seus cabelos pintados de amarelo e com a pele queimada, escurecida pelas horas de deliberada exposição ao sol.

Aqui onde me encontro, no que chamam de França profunda, no interior do país, são as louras verdadeiras que pintam os cabelos de preto, numa tonalidade quase azulada de tão escura. Em contraste com a pele muito branca, a moda dos cabelos pretos completa-se com a forte pintura dos olhos e da boca.

Com este ar de vampiras, as alvas francesas fazem contraponto às nossas falsas louras, mulatas. Juntas, elas constituem o enorme mercado consumidor da coloração de cabelos, a valiosa pérola da indústria mundial de cosméticos.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

O Agneau du Quercy


O Agneau do Quercy é um carneirinho alimentado apenas pelo leite da mãe, que foi criada no pasto das terras calcáreas das margens do rio Lot. Por isso tem um sabor especial. É o único cordeiro do mundo de origem controlada, com selo de qualidade e pedigree reconhecido.

No Auberge du Vieux Cahors ele é servido acompanhado de champignons, vagem e batatas rostie. É um prato que atráis gourmands de todas as regiões da França porque, dizem, é bem melhor quando comido na terra natal.

O Auberge du Vieux Cahors é um bom restaurante, de cuidadoso cardápio de pratos regionais: além do carneirinho, o foie gras e o pato confit valem a visita. São pratos untuosos, próprios para enfrentar o frio intenso desta época do ano.

domingo, 26 de dezembro de 2010

Noël


Como festa cristã, o Natal se reveste de caráter cerimonial religioso. A tradição misturou alguns símbolos de nascimento e morte. O costume de fazer jejum existente nas religiões arábico-judaico-cristãs foi substituido em algumas culturas pela proibição de carne vermelha, pois não deveria existir sangue na memória da vida e da morte de Jesus.

Entre nós, a venda de bacalhau quadruplica nas festas de fim de ano e uma infinidade de perus são sacrificados para que a carne branca não nos traga a lembrança do sangue.

Entre os franceses, o fim de ano se caracteriza pelos enormes pratos de frutos-do-mar, com destaque para ostras e crustáceos. É também a época das enormes intoxicações alimentares, desinterias destruidoras. Os hospitais da França se preparam, a cada passagem de Natal e Ano Novo, para os milhares de casos de desidratação que também simbolizam este tempo de misticismo e festa.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Monrovia


Um viajante que perde a bagagem é como uma tartaruga que perdeu o casco, foi o pensamento que me ocorreu olhando para a imensa fila no aeroporto de Toulouse, esperando para reclamar as malas desaparecidas no meio do cáos aéreo da Europa nesta véspera do Natal.

Eram tartarugas sem casco e aflitas, caladas, olhando para o funcionário que, lá longe, no começo da fila, fora designado para explicar o que não sabia.

“A Air France é uma companhia muito séria”, me disse o velho que bebia ao meu lado e que também perdera a sua mala. Acho que ele tinha razão porque muitos, alguns dias depois, recuperamos nossas perdas pelos esforços do pessoal que ouvia em silêncio tantas imprecações. Ao fim, me lembrei de Sergio Porto, cuja mala certa vez foi desviada para a Monrovia e ele pensava que monrovia era uma doença da pele.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Caos


As multidões nos aeroportos, de rosto cansado e ansiedade nos olhos é a marca da Europa nesses dias que antecedem o Natal. Centenas de pessoas tiveram de refazer seus programas para as festas de fim de ano por conta dos vôos cancelados pelas nevascas.

Nas cadeiras do aeroporto Charles De Gaulle, no centro da confusão, as crianças choram e os passageiros gritam com os perplexos atendentes da Air France, que olham para as telas do computador e estas não lhe dizem nada. A maioria dos monitores anuncia vôos cancelados.

Depois de uma viagem que durou exatas quarenta e duas horas, ainda não cheguei ao destino. Em Toulouse, uma parada, está frio mas não há neve. E o cassoulet da cidade, junto com o vinho de Bordeaux, ajuda a aquecer a quem perdeu a bagagem.

domingo, 19 de dezembro de 2010

De partida


Mais uma vez de partida para o Sudeste da França. Direto até Toulouse, com troca de avião no Charles de Gaulle, e de lá para as pequenas cidades da região, com base em Cahors , que conheço de longa data. Parece que a safra dos vinhos deste ano veio forte, encorpada, densa.

Está fazendo muito frio no Sudoeste e há neve em lugares onde ela não costuma cair, o que aumenta a suspeita de que o clima está mudando em todo o planeta. Será que as teorias da catástrofe climática são mesmo procedentes?

Tenho notícia de que em Toulouse a feirinha de Natal da Place du Capitole está movimentada como nunca e há filas enormes em suas barracas de vinho quente e comidas regionais. A quermesse de Natal em Cahors também dizem que não fica atrás. Já mandei avisar aos profissionais do Bar du Centre que estou chegando.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

O bolina


No extraordinário O Rio de Janeiro do Meu Tempo, Luiz Edmundo exibe seu talento de repórter e descreve com precisão como era a cidade na virada do Século XX. Descreve cada uma das ruas do centro. Seus prédios, lojas, cafés. E também a gente que habitava o Rio provinciano e calmo dos anos 1900.

Entre os tipos da época, ele destaca o bolina, o sujeito que subia nos primeiros bondes elétricos, sempre cheios, para se encostar nas mulheres e usufruir de um arriscado momento erótico. Havia escândalos de juntar gente, pois nem sempre as damas aceitavam sem protestar a intimidade do contato físico roubado pelo bolina. Edmudo acusa de serem adeptos da bolinagem algumas figuras importantes do seu tempo.

Parece que o metrô contemporâneo trouxe de volta o personagem, a ponto de terem reservado um carro exclusivo para mulheres, com o objetivo de protegê-las do assédio infame do bolina. Mas tenho visto alguns espertos bolinas pulando para o carro feminino, nas horas de pico. Dentro do vagão lotado de mulheres, eles procuram situar-se estratégicamente para o encosto, enquanto exibem um jeito cândido e um olhar distraido mirando um horizonte inexistente.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Obras-primas


Em 1876, quando Brahms estreou sua Primeira Sinfonia, o mundo musical o saudou como sucessor de Beethoven, que morrera em 1827. Foi um sucesso. O maestro Hans von Bulow, depois de ouvi-la, disse que a primeira sinfonia de Brahms significava a décima de Beethoven.

Quando a Nona e última sinfonia de Beethoven (http://www.youtube.com/watch?v=sE-sS_1JQZI) foi tocada pela primeira vez, em 7 de maio de 1824, em Viena, tornou-se uma sombra a inibir a criatividade de todos os compositores que o sucederam. Nenhum deles tinha coragem de compor uma sinfonia, depois de ouvir aquela obra-prima composta por um genio verdadeiro.

A admiração de Brahms por Beethoven era enorme mas ele ousou compor uma sinfonia. Nos primeiros acordes, dizem os historiadores, ele se dirige a Beethoven para enunciar, musicalmente: “do mais alto monte, do mais profundo vale, eu te saúdo”. Ouça um trecho da obra-prima de Brahms, regida por Otto Klemperer: http://www.youtube.com/watch?v=HkgiwJTXHlE

domingo, 5 de dezembro de 2010

Tetro


Francis Ford Coppola sabe fazer filmes. Sua obra comprova isso. Mas talvez o sucesso que obteve ainda muito jovem, com a trilogia do Poderoso Chefão, tenha de alguma forma comprometido o que veio a fazer depois. Com estes três filmes, realizados em cima do forte argumento de Mario Puzzo, ele produziu sua obra-prima e nunca mais conseguiu repetir o feito.

Tetro é um filme que conta com bons atores, o expressivo cenário da Boca, em Buenos Aires, e uma direção criativa. Narra a história de um escritor angustiado pelo próprio fracasso, pela culpa e pela memória de um pai que o destruiu emocionalmente. Parece uma boa história. E é.

Mas talvez tenha faltado a Coppola a companhia de um roteirista capaz de conduzir essa história sem os excessos melodramáticos que a compometem e deixar para o diretor os exercícios de estilo nos quais é mestre. Mesmo assim, a triste história de Tetro, escrita, produzida e dirigida por Coppola, não consegue nos emocionar.

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Monicelli


Mario Monicelli é um dos maiores autores do cinema italiano em sua melhor época. Deixa obras-primas do quilate de Os Companheiros, O Incrivel Exército Brancaleone e suas sequências, Meus Caros Amigos, Parente é Serpente, Os Eternos Desconhecidos. Dirigiu 68 filmes e escreveu 106. Todos merecedores de qualquer cinemateca.

Com a morte dos seus grandes diretores – Fellini, Visconti, Bolognini, De Sica, Pasolini e, agora, Monicelli – o cinema italiano fica órfão, práticamente moribundo, incapaz de competir com a produção de outros países da Europa e, principalmente, com a enxurrada americana.

Nesta segunda-feira, 29 de novembro, o Mestre levantou-se da cama do quarto do Hospital San Juan, em Roma, dirigiu-se à janela e atirou-se do quinto andar. Tinha 95 anos. Não teve paciência de esperar que o câncer o vencesse e resolveu ele próprio encerrar o assunto.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

A guerra


Os dois soldados gordos com divisas de sargento foram tirados de detrás das mesas e colocados na rua. O porte desajeitado e o acentuado volume dos ventres revelam que há muito perderam o costume de ficar em pé, vigiando a rua. Procuram um encosto confortável nas paredes da esquina de Copacabana, as ruas estão mais vazias.

No twitter, alguém escreve bem cedo “good morning, Vietnam!”, outro se diz surpreendido com o bom trânsito da Barra para o centro da cidade e um terceiro pergunta como é possível separar os fatos dos boatos. E circulam notícias sobre mais ônibus e mais automóveis incendiados.

Alguém manda um recado aos traficantes: “senhores, favor queimar apenas os carros dos seus clientes”. A cidade está com um clima abafado, o sol encoberto por núvens e névoa, a temperatura é de 30 graus e o verão está chegando. Ainda é primavera.

domingo, 21 de novembro de 2010

Gerentes


O mundo gerencial criou um tipo humano que confronta sua própria humanidade na busca de resultados. Tanto nos escalões da empresa privada quanto na gerida pelo estado, a psicologia dos executivos não tem diferenças, pois eles procuram desesperadamente agir com a razão e a lógica da objetividade.

Creio que a frieza lógica e o desejo de decidir sem perda de tempo tem sua origem na linha industrial fordiana de montagem. Cada peça precisa se encaixar em segundos e não há tempo para pensar, pois qualquer reflexão pode significar um acidente ou, pior, prejuizo financeiro.

Eles têm uma tarefa difícil, ao interpretar o mundo com a lógica que aprenderam. Os alvos humanos são móveis e não esperam, por isso decepcionam. Os executivos procuram desesperadamente não errar, não têm dúvidas. São personagens trágicos, de vida angustiada. Como heróis da tragédia grega, seu destino não pode ser evitado.

sábado, 13 de novembro de 2010

Poesia

Há muitos anos, lí um poema com o título “Testamento”, do qual decorei os primeiros versos:

Ao meu pai, deixo as minhas dívidas
e a guarda da mulher que nunca me foi fiel
um só momento de vida.
Ao meu irmão, deixo minhas roupas e meus sapatos
e que ele nunca ande pelos caminhos que andei.
A minha irmã, deixo a dentadura da pianola,
para que ela passe a vinda inteira
com a ilusão de que é uma grande artista.
Às minhas tias solteironas, deixo a minha memória
que elas soerguerão num monumento de lágrimas histéricas.


Esqueci o nome do poeta, fiz várias pesquisas no Google e na minha própria memória e nada encontrei.

Mas topei com um belo poema, com o mesmo título, da poetisa angolana Alda Lara, que nasceu em 1930 e morreu em 1962:

Testamento

À prostituta mais nova
Do bairro mais velho e escuro,
Deixo os meus brincos, lavrados
Em cristal, límpido e puro...
E àquela virgem esquecida
Rapariga sem ternura,
Sonhando algures uma lenda,
Deixo o meu vestido branco,
O meu vestido de noiva,
Todo tecido de renda...
Este meu rosário antigo
Ofereço-o àquele amigo
Que não acredita em Deus...
E os livros, rosários meus
Das contas de outro sofrer,
São para os homens humildes,
Que nunca souberam ler.
Quanto aos meus poemas loucos,
Esses, que são de dor
Sincera e desordenada...
Esses, que são de esperança,
Desesperada mas firme,
Deixo-os a ti, meu amor...
Para que, na paz da hora,
Em que a minha alma venha
Beijar de longe os teus olhos,
Vás por essa noite fora...
Com passos feitos de lua,
Oferecê-los às crianças
Que encontrares em cada rua...

sábado, 6 de novembro de 2010

Recordações de Paris


No fim da tarde, os quatro velhinhos gays tomavam chope na mesa do botequim. Olhavam os rapazes que vinham da praia, alguns com pranchas de surfe, e falavam de Paris. Todos conheciam bem a cidade e os lugares que um dia estiveram na moda. Citaram os nomes do La Coupole, Café de Flore, Les Deux Magots, Brasserie Lipp...

Paris já foi a capital gay do mundo mas parece ter sido destronada por Berlim e o Rio de Janeiro tem aparecido como um dos destinos turísticos preferidos por essa comunidade sempre atenta a novidades.

Os quatro velhinhos falavam com nostalgia, suas vozes denotavam o sentimento que acompanha recordações antigas e boas. O que se apóia numa bengala e anda com dificuldade acendeu um cigarro e se dirigiu em voz alta para os outros “nós eramos muito felizes, vocês concordam?”

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Dores de corno


Muito da inspiração do cancioneiro popular vem do sentimento do amor perdido. Traição, ódio, dor, despeito, vingança e culpa misturam-se para produzir belas canções que são a catarse de uma frustração amorosa. Se não existisse o amor perdido, a música popular seria mais pobre em todos os países do mundo.

Sobre o tumultuado amor entre Ava Gardner e Frank Sinatra, já escrevi aqui. As traições dela deram origem a “I’m a fool to want you”, uma obra-prima do sofrimento transformado em canção.

O tango é um gênero que não teria a força que possui se não existisse a melancolia e o desespero dos amores perdidos. Um dos seus maiores cantores, talvez o maior depois de Gardel, foi Julio Sosa. Quando gravou “En esta tarde gris”, de autoria de J. M. Contursi e Marianito Mores, dizem que chorou ao fim da música e disse que jamais seria capaz de repetir aquela interpretação.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Largo do Machado


Como acontece com as ruas, existem também praças vivas e praças mortas, que têm o destino de permanecerem vazias, como a Praça Paris, no centro do Rio. Foi restaurada há pouco mas é apenas uma paisagem. O Largo do Machado, ao contrário, pulsa vida. Está sempre em movimento, povoada por seu diversificado elenco de aposentados, carrinhos de bebê, usuários de crack, marginais de todo tipo, estudantes e belas garotas matando o tempo.

Não chega a ser um bairro. Foi chamado sucessivamente de Campo das Pitangueiras e Campo das Laranjeiras. Seu nome vem de um açougue que tinha um grande machado na porta identificando o estabelecimento.

A decadência que deteriorou a vizinhança não tirou a alegria do Largo, que ainda ostenta certa beleza carregada de história. Quando Santos Dumont, em 1906, decolou com o 14 Bis e virou glória nacional, foi lá que um grupo de boêmios anunciou sua chegada para jantar no Lamas. Um deles fantasiou-se, fez-se passar pelo herói, acenou para a multidão que lotava a praça e jantou e bebeu de graça com toda a sua falsa comitiva.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

O amor que não ousa dizer seu nome


As duas meninas estavam uma de frente para a outra, no vagão lotado do metrô. Elas se olhavam com a intensidade de amantes surpreendidas pelo desejo, quando o mundo em volta desaparece e só passa a existir a vontade dos corpos, a desesperada vontade dos corpos de se abraçar e de se unir. Elas balbuciavam sussurros da boca para o ouvido uma da outra, no meio da multidão apertada dentro daquele vagão, às cinco em ponto da tarde.

Os sussurros eram acompanhados de sorrisos leves e de olhares fixos um no outro, dava quase para se ouvir a respiração ofegante de uma e de outra, alguma coisa intangível quase que as sufocava dentro do vagão apertado e de repente elas aproximaram as bocas abertas e as juntaram coladas num beijo profundo.

Poucos passageiros viram, nenhum deles disse nada, alguns olharam com atenção. Elas saltaram quase abraçadas na Estação Botafogo, eu me lembrei de “O poço da solidão”, de Radclyffe Hall, a história de Stephen, de nome Mary Olivia Gertrude, e do seu desengano diante do preconceito na Inglaterra de 1928. Oscar Wilde, falando sobre o livro, resumiu assim: "As circunstâncias são as marcas de chicote que a vida deixa em cada um de nós. Alguns as recebem com as alvas costas inteiramente nuas..."

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Estado e religião


A cidade ficou mais limpa, com o passar do primeiro turno das eleições. Os cartazes não chegam a colaborar com o lixo visual da paisagem mas a campanha política tomou um rumo surpreendente, mais suja nos seus temas, apesar da compunção religiosa que tomou conta dos discursos.

As igrejas parecem nada ter aprendido com a história das suas intervenções na política e das tragédias em que foram protagonistas na França, na Espanha e em toda a Europa medieval. O melhor exemplo da mistura ruim de Estado e religião está presente hoje nos países árabes. No Irã, uma ditadura carola mostra o resultado em um país dirigido pelo Corão.

Religião e repressão são palavras que, rimadas, acabam por se juntar no exercício do poder temporal. Talvez por isso a expressão igreja progressista tenha trazido consigo insanável contradição. Mais uma vez as igrejas mostram como são obtusas quando procuram tutelar os destinos do povo.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Minissaia


Nos anos sessenta, as mulheres encurtaram a saia em 20 centímetros acima dos joelhos e ficaram mais femininas. Mais ou menos na mesma época, feministas radicais queimaram os sutiãs. Embora por motivos diferentes, os dois movimentos melhoraram bastante o visual da mulheres, as feias que me perdoem.

Disputam a autoria da minissaia a inglesa Mary Quant, o francês André Courreges e a americana Helen Rose, mas na China da Idade Média a saia curta Miao, que mal cobria as nádegas, foi uma novidade a causar certo frisson.

A partir dos anos 60, as mulheres nunca mais abandonaram a moda das saias muito curtas. Nos colégios religiosos, as meninas, longe da disciplina das professoras, costumam dobrar a bainha da cintura, encurtando a saia do uniforme escolar, para desfilarem pelas ruas de Copacabana. As fêmeas, em todas as espécies, têm sempre uma maneira mais ou menos sutil de atrair os machos e, assim, garantirem a preservação da espécie.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Coisas íntimas


Na mesa da esquerda dois homens conversam, quase bêbados. Um deles faz confidências ao outro. Não é muito comum homens confessando coisas íntimas, a não ser quando bêbados. As mulheres, ao contrário, expõem mais facilmente os seus sentimentos.

O homem gordo dizia ao outro que nunca se sentiu à vontade no casamento, parecia que ela, a mulher, alimentava enquanto ficaram juntos um certo sentimento de hostilidade que os afastou. Ele diz que segurou enquanto pôde até o dia em que arrumou algumas roupas numa mala velha e saiu de casa. A antiga hostilidade transformou-se em ódio.

Ele continuou a falar, o outro escutava com interesse. Acrescentou que já se sentia cansado de se defender perante juizes e delegados de acusações por conta de agressões que nunca praticou, de pensões de alimentos que não devia e de intrigas espalhadas no trabalho e entre seus amigos. Ficaram muito tempo conversando. Procurei desviar minha atenção, pois comecei a me sentir violando o sofrimento de um homem quase bêbado, num botequim de Copacabana.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Primavera


Sol entrecortado de chuva marca o início da primavera e prepara a chegada do verão, numa cidade que hiberna até setembro, para despertar no calor. Um amigo diz pela internet que os pássaros de Ipanema, onde mora, enlouqueceram e começaram a cantar desesperadamente, antes mesmo de o sol nascer. Outro amigo diz que esta aflição dos passarinhos deve-se à busca das fêmeas para o acasalamento da primavera.

Num país com tão poucos traços das quatro estações, das quais apenas duas marcam realmente sua presença, os sinais da primavera trazem a agradável surpresa de assistirmos ao desabrochar das plantas, do desejo dos pássaros e ao nascimento das flores. Em Copacabana, os botões franzinos se abrem timidamente nas calçadas.

Talvez tenhamos nos esquecido do calor que fez no ano passado, antes mesmo de o verão chegar. A presença antecipada de tantos turistas, brancos e louros, ocupando a orla do mar, é um sinal do quente verão que nos espera. Eles, como os insetos alados que são atraidos pela luz, antecipam a intensidade do calor que irá fazer antes do fim do ano.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Publicidade sem glamour


A publicidade não é tão glamurosa como antes, parece dizer o exodo dos criativos das grandes agências americanas, que procuram em algum lugar um trabalho que lhes dê prazer. Foi o jornal Advertising Age, especializado em marketing e propaganda, quem detectou o movimento, depois de observar a fuga recente de pelo menos oito grandes estrelas das maiores agências.

Eles se queixam da falta de respeito dos clientes, que os tratam como fornecedores de commodities e não como artistas que dão vida a um produto. O conhecido ego dos criadores não suporta mais esse tipo de relacionamento. E o ego, é preciso que se reconheça, é o que mobiliza o talento.

You’re nobody’s bitch – você não é prostituta de ninguém, foi o conselho que Gerry Graf, uma daquelas grandes estrelas, recebeu de um amigo antes de deixar a Saatchi em busca de algum lugar que reconhecesse seu talento.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Nosferatu


Nosferatu, filho de Lilith, a primeira mulher de Adão antes de Eva, sobreviveu nos mitos criados pelo medo que habita o coração dos homens. Vivente da escuridão, transforma-se em morcego e sobrevive sugando o sangue dos inocentes.

Em 1922, o cineasta alemão Friedrich Murnau contou a sua história num filme que se transformou em um clássico do cinema de horror e deu origem a uma longa série de histórias de vampiros. Murnau inspirou-se no romance Drácula, de Bram Stocker. Ele não conseguiu obter os direitos da viuva do escritor para filmá-lo e criou a sua própria história. Nosferatu é a melhor representação do Mal jamais imaginada.

É uma personagem triste, sofre de profunda solidão e a sua vida nas sombras aterroriza muitas crianças e adultos que sofrem da síndrome de pânico. Nenhum poder o detém, a não ser a visão da cruz, o cheiro de cebolas ou uma estaca cravada no seu peito.

sábado, 11 de setembro de 2010

Políticos


Marquinhos estava ontem na rua com seu rádio nas mãos, longe dos ouvidos. O rádio é mudo mas ele não se importa e costuma postar-se na esquina de Barata Ribeiro com República do Peru escutando o que deve ser música, pois dança balançando as pernas.

Marquinhos estava seletivo, na tarde de ontem. Não xingava todos os passantes, como costuma fazer, nem se dedicava a dirigir o trânsito caótico daquela esquina. Concentrava-se nas pessoas que seguravam cartazes de propaganda política e disparava sua algaravia, de olhos esbugalhados, na direção das fotos dos candidatos.

Nas campanhas eleitorais, os políticos contratam pessoas muito pobres para se postarem em locais de grande tráfego empunhando sua propaganda. Marquinhos, indignado, ignorava os que seguravam os cartazes em frente à estação do metrô e se dirigia aos políticos que se exibiam nas fotos, esculhambando os rostos sorridentes, para os quais apontava o dedo gritando palavras que não existem. Mas era fácil imaginar o que diziam.

domingo, 5 de setembro de 2010

Ava e Frank


A história de amor e um casamento fracassado entre Ava Gardner e Frank Sinatra alimentaram as colunas de futilidades dos anos 50. Ele abandonou a mulher por ela mas, juntos, não tiveram um momento sequer de felicidade fora do sexo, se for verdade o que ela disse: “os problemas começavam entre a cama e o bidê”.

Talvez Ava fosse bela e independente demais, a ponto de virar a cabeça de homens como Mickey Rooney, Howard Hughes, Artie Shaw, Luis Dominguin e o próprio Sinatra. Ela se banhou nua na piscina da casa de Ernest Hemingway e ele deu ordens para nunca mais esvaziarem a água.

Sinatra nunca se recuperou da separação e recrutou amigos para, juntos com ele, comporem I’m a fool of want you, um verdadeiro hino à dor de corno. Vale a pena ouvir. Clique aqui.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Na escuridão

O homem estava sentado numa mesa próxima, o restaurante estava cheio e ele estava só. Olhava para a frente sem mirar ninguém, o olhar era parado, o pensamento absorto, longe do burburinho. Em seu prato havia uma salada de folhas verdes. Uma taça de vinho branco, ao lado, permanecia intocada. Ele remexia as folhas com o garfo e não comia.

Era um tipo moreno de cabelos pretos e pele bem cuidada que revelava cuidadosa exposição ao sol. Os dedos que pegavam o garfo eram de unhas bem tratadas por manicure e sua roupa cinza com paletó e uma gravata discreta traduziam equilibrio e bom gosto.

Mas ele estava só, talvez como nunca estivera. Digo isto porque seu pensamento distante franzia sua testa em um vinco que parecia uma cicatriz de angústia. Ele permaneceu assim durante todo o tempo em que fiquei por ali e depois pedí a conta e saí para a rua movimentada.

sábado, 28 de agosto de 2010

Mulheres


Tive um amigo a quem causava certa surpresa o modo das mulheres do Rio. Dizia que elas desfilam com tal auto-confiança que até as feias de cara e corpo se comportam como divas e andam como rainhas da rua. Porte altivo e bunda arrebitada, dizia, é a marca da mulher carioca, cujo caminhar pelas calçadas é como se estivesse se exibindo para admiradores deslumbrados com sua beleza.

As mulheres que consideramos feias, em seu modo de ver, são apenas as tristes e deprimidas, porque se entregam a emoções sombrias e isto se reflete no semblante e no modo de andar. E algumas que vemos como muito bonitas, senhoras de si mesmas, talvez não resistissem a um observação feita com frio distanciamento crítico.

Há verdade no que dizia. Elas se comportam como se todas fossem belas, embora tão poucas o sejam. Parece existir, no entanto, uma forma de olhar para dentro de si mesmas que se reflete no porte e na atitude. Um tipo de beleza que se origina na auto-estima das mulheres desta cidade.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Grades


O medo acompanha os habitantes da cidade porque a violência ameaça cada vez mais perto. Os condomínios buscam proteção por câmeras encarregadas de vigiar a vizinhança. Algumas são falsas câmeras, mais baratas, com o objetivo de apenas intimidar. Junto com as grades, instaladas em todos os edifícios, elas transmitem uma fraca sensação de segurança e paz, pois os jornais noticiam assaltos, praticados por atacado, em vários apartamentos numa mesma ação.

As grades de Copacabana começam a exibir algum estilo, como se as pessoas procurassem transmitir uma certa visão estética diante de um pesadelo. O amigo José Alberto, que mora em Belo Horizonte, foi quem me chamou a atenção. Seu olhar descobriu formas diferentes, desenhos originais e traços diferenciados nas grades aqui do bairro.

Da mesma maneira como a cada dia mais nos acostumamos a conviver com a violência da cidade, vamos também perdendo a capacidade de descobrir o belo nas coisas simples que simbolizam o nosso modo de ser prisioneiros.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Prostíbulos

A velha profissão sofreu um baque com o fechamento da Help mas outros supermercados do sexo se espalham nas ruas, termas e boates de Copacabana. De noite, a Avenida Atlântica continua no comando do trotoir feminino e masculino, embora estas noites de frio tenham prejudicado o movimento. A pouca roupa necessária à exibição do corpo inviabiliza a amostra mas dá uma chance maior às mais feias ou muito magras, que podem assim disfarçar a desvantagem na concorrência com as mais exuberantes.

As jovens expulsas da Help foram para a rua enfrentar o frio. Penso que são poucas as que puderam ser aproveitadas nas arenas de alto luxo como La Cicciolina ou Scotch Bar, a maioria ficou mesmo nas calçadas.

Existem mulheres – e homens – à venda em locais muito caros ou muito baratos, em qualquer faixa de preço. Todos jóvens. O garçon de um botequim certa vez observou que não existem mais prostitutas velhas como antigamente, porque hoje as drogas tiram delas a chance de envelhecer.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Discépolo


O pessimismo cético de Enrique Santos Discépolo pode ser resumido nos versos que escreveu em um dos grandes tangos que compôs, “Qué vachaché”: o verdadeiro amor se afogou na sopa, a pança é a rainha e o dinheiro é Deus. Talvez nenhum outro compositor tenha melhor representado a alma argentina do que este artista versátil, misto de ator, diretor e músico que definiu o século 20 em que viveu como um cambalache.

Discépolo é o maior poeta popular argentino. Deixou sua marca na música do seu país, pois todos os outros compositores que vieram depois dele foram de uma maneira ou de outra influenciados pela sua maneira de ver o mundo:

Verás que todo es mentira,
verás que nada es amor,
que al mundo nada le importa...

A interpretação de Gardel em 1930 para Yira, Yira, de onde tirei estes versos, é um dos grandes momentos da história do tango.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Fausto


A primeira vez em que percebi a sua presença foi num restaurante chinês que existiu na rua Bolívar. Escutei uma voz poderosa e alta dizer “Karl Marx era veado!” e me virei para olhar. Tratava-se de um sujeito muito grande, na companhia de uma loura muito bonita, a quem certamente queria impressionar.

Depois nos aproximamos por intermédio de um amigo em comum. Conhecí os seus livros, acompanhei suas crônicas nos jornais em que escreveu. Bebíamos juntos, de vez em quando. Discutíamos sempre porque eu era incapaz de acompanhar seu pensamento que contestava tudo.

Foi um dos maiores talentos da nossa geração. Nunca aceitou as coisas da forma como lhe foram apresentadas. Talvez tivesse vindo ao mundo para contradizer e agitar o marasmo medíocre que nos ameaça a todos numa vida devagar. Ele é um dos que fazem falta.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

O Morro do Inhangá


Do branco areal do século XIX sobrou uma praia em forma de tripa que já não é tão branca. Cercada de morros, Copacabana abriga as contradições de um país contraditório. Na Avenida Atlântica, os ricos escutam o barulho do mar enquanto os pobres se espremem nas favelas dos morros dos Cabritos, São João e Santa Marta, os que se avistam daqui do Morro do Inhangá.

O Inhangá tinha antes uma enorme pedreira que foi demolida para abrir a Nossa Senhora de Copacabana e construirem o Edifício Chopin, ao lado do Copacabana Palace. O morro permanece, escondido por uma cerca de edifícios.

O quadro que ilustra a postagem é de Luiz Christophe, um artista de talento que nasceu no Rio, em 1863, e morreu em data desconhecida, depois de ficar cego e se retirado da vida artística. É a paisagem do Leme olhada da perspectiva do Morro do Inhangá. Dizem que a palavra Inganhá vem do tupi-guarani Anhangá e significa espírito ruim. Era em cima da pedra que os raios caiam durante as tempestades.

sábado, 7 de agosto de 2010

Na fila dos idosos


A velha senhora se dirige à outra e reclama de ver escrito no cartaz que aquela fila é para pessoas da melhor idade. Melhor em que? pergunta ela, pois a fila é longa e demorada. Um senhor de cabelos brancos e tez queimada de sol, de ar altivo, também reclama. Os amigos estão lhe esperando na praia para o jogo de peteca e a fila não anda.

Lá adiante, um outro identifica a causa de tanta demora: uma velhinha esqueceu de comprar dez pães que o filho encomendara, pediu para o caixa esperar e foi buscá-los no fundo do supermercado, onde fica a padaria.

A senhora que reclamou do slogan da melhor idade diz com ar pensativo que as outras filas, nos outros caixas, estão mais longas. E comenta que nelas estão muitos idosos que evitam a caixa preferencial e preferem esperar nas outras, mais demoradas, pois não acreditam que estejam vivendo a melhor das idades.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Andar por andar somente


Suas roupas são limpas e pobres, ela não se veste como as mulheres da sua idade, em Copacabana, que se vêem como jovens e desfilam em apertadas roupas esportivas. Seu cabelo é grisalho e não pintado de louro, como é costume por aqui. Nem sua pele é queimada pelo sol do último verão e agora, no inverno, começa a adquirir um tom meio acinzentado.

Ela também não se pinta em cores vermelhas. Passaria praticamente despercebida, em sua tonalidade de vestes escuras. Não teria chamado a atenção se não caminhasse todas as tardes, em volta do mesmo quarteirão, todos os dias: o quadrilátero formado por Barata Ribeiro, Paula Freitas, Nossa Senhora de Copacabana, República do Peru e novamente Barata Ribeiro, continuadamente.

Fuma sem parar, olha sempre para o chão. Alheia ao movimento das ruas, às pessoas que passam a seu lado, ao trânsito louco do fim do dia.

domingo, 1 de agosto de 2010

Pandora


Pandora, a primeira mulher, foi enviada por Zeus para casar-se com o titã Epimeteu, a quem desejava punir. Levou com ela de presente para o marido uma caixa que continha as maldades que os homens até então desconheciam.

A velhice, a doença, a tristeza, a loucura, o vício e a fome estavam dentro da caixa que Pandora, curiosa, acabou por abrir, espalhando no mundo todo o seu conteúdo.

A caixa de Pandora trazia também algo diferente dos males do mundo, colocada pelos deuses – a esperança. Ava Gardner, outro mito, mais bela do que nunca, interpretou uma misteriosa Pandora. Encontrei aqui uma cena do filme.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Cena no aeroporto


No restaurante do aeroporto, vôo atrasado, observo a moça que sentou-se numa das mesas do canto e pediu uma garrafa de vinho. O garçon serve-lhe a taça, ela dá sua aprovação e fica batucando na mesa com os dedos enquanto bebe em pequenos goles.

O rapaz chegou cerca de dez minutos depois, sentou-se e recusou o vinho, preferiu cerveja e ambos pediram os pratos que escolheram no cardápio. Comeram vagarosamente, conversaram pouco, trocaram de vez em quando algumas rápidas palavras.

Depois ele levantou-se e, com o celular, tirou bem de perto uma foto do rosto da moça. Em seguida pegou sua bolsa e tomou a direção da porta de embarque. Ela continuou sentada, até terminar a garrafa de vinho. Então pagou a conta e, na porta de saída do restaurante, levantou os dois braços e saiu dançando num alegre requebrado.

domingo, 25 de julho de 2010

Fortaleza



No lugar onde foi construido em 1649 um forte holandês, surgiu Fortaleza, hoje uma metrópole regional com a força e os problemas de uma grande cidade. O transito é intenso e problemático, o povo se queixa da violência e a indústria dos imóveis ocupa os espaços com seus espigões.

Mas é uma cidade rica, organizada e limpa, de feição moderna. Os bares estendem-se na orla das praias e permanecem abertos pela noite a dentro. O turismo se destaca entre as atividades econômicas.

Ao contrário do Rio, que esconde o mar do olhar de seus habitantes, Fortaleza expõe suas águas azuis.

terça-feira, 20 de julho de 2010

O destino


Quando tomou consciência de si mesmo, o homem fez as três perguntas que nunca deixaram de persegui-lo: quem sou, para onde vou, qual minha origem? Foram estas indagações sem respostas que fizeram surgir os mitos e as religiões, a ciência e a filosofia.

Ao descobrir que habita um pequeno planeta de uma enorme galaxia e que se encontra só num universo infinito, o homem sofreu a angústia da existência e e se refugiou nas suas crenças e superstições.

Hesíodo, um poeta que viveu em Ascra, na Grécia, há dois mil e oitocentos anos, acreditava que a origem do homem é um mistério mas seu destino é o seu caráter. A ilustração do post é a foto da estátua do poeta.

sábado, 17 de julho de 2010

Sob a chuva


A manhã chuvosa esvazia as ruas, Copacabana perde seu ar praiano. Nos bares, as mesas de calçada protegidas de cortinas plásticas estão ocupadas por clientes vestidos com roupas de inverno. Bem diferentes daqueles outros seminus que fazem o agito do verão.

Os quatro velhinhos gays tomam chope, só um deles está diante de um copo de vinho. Olham os passantes, trocam pequenos comentários com um jeito irônico e divertido.

Na feirinha da minha rua, uma menina me dá uma receita de sopa de banana verde: cortá-la em fatias finas, fritá-las e depois misturar em caldo de carne. Na Barata Ribeiro, em frente a uma academia de ginástica, um conjunto nordestino formado de sanfona, zabumba e reco-reco, toca uma música cujo refrão repete se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. As pessoas dançam.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

A indústria pornográfica


Definindo-se como erotic house, a loja fica numa esquina da Nossa Senhora de Copacabana, ironicamente situada entre uma Igreja e um supermercado. Os clientes entram lá disfarçadamente, num rápido movimento, quase um pulo. Na maioria são turistas em busca de sensações.

A pornografia acompanha o homem desde antigas eras, como testemunham as paredes de Pompeia. Há pouco, arqueólogos encontraram na Alemanha uma imagem de 7200 anos sugerindo um ato sexual. A figura masculina foi batizada de Adônis von Zschernitz.

Nos tempos modernos, transformou-se numa indústria lucrativa e multinacional, movimentando alguns bilhões de dólares, com sistemas próprios de distribuição, canais de TV e grandes lojas em redor do mundo. Com o advento da internet, calcula-se que o negócio aumentou seu faturamento mais de vinte vezes, desde 1980. Os movimentos feministas protestam, dizem que a pornografia gera violência contra as mulheres e trata-se de um jeito sórdido de lidar com a sexualidade. Mas a indústria não para de crescer.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

As utopias


Depois da Segunda Grande Guerra, o Ocidente respirou aiviado e os jovens dos anos 50 acreditaram na vitória do Bem sobre o Mal. A juventude vive de utopias. Muitos adotaram o socialismo como idéia política. Ao lado da democracia como sistema de governo, seria capaz de trazer felicidade aos povos do mundo e assim marcharia a História. A fé na bondade inata do ser humano foi cultuada, uma herança do cristianismo.

O tempo encarregou-se de enterrar todas as crenças. As cruéis ditaduras militares neste sub-continente, a permanência das guerras cada vez mais destruidoras em todo o mundo e a perversa realidade dos países comunistas finalmente revelada vieram mostrar que nada daquilo era verdadeiro.

A fé na bondade dos homens foi confrontada com os crimes impiedosos que ocorrem todos os dias, com a violência, a corrupção e a morte. Nada permaneceu de pé. As utopias eram meras utopias.

terça-feira, 6 de julho de 2010

Na Lapa


Depois do almoço no Bar das Quengas, Julio pega um taxi para Botafogo e eu resolvo perambular um pouco pela Lapa. Desço vagarosamente a Rua do Rezende. Muitas lojas de antiguidades e uma de serviços funerários onde dois homens sentados em volta de uma mesa dão gargalhadas.

Tinhamos conversado, durante o almoço, sobre a decadência e a ressurreição da Lapa. Nos anos trinta, foi bairro boêmio vibrante e polarizador que o amigo, nascido na Argentina, comparou a Santelmo, na Buenos Aires da mesma época. Ressonou abandonada dos anos sessenta até os noventa, quando começou a se espreguiçar e despertar do sono da decadência. Hoje, é um lugar interessante.

Atravesso Inválidos, Gomes Freire, Lavradio. Mesmo nessas horas da tarde o comércio se movimenta. Os restaurantes estão meio vazios, esperando o fervilhar da noite. No Circo Voador, ensaia uma ruidosa banda. Em frente aos arcos, uma graciosa menina faz pose para um fotógrafo. Com o celular, aproveitei a cena e fiz a foto que ilustra o post.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Internaram Marquinhos


Já falei dele aqui. Marquinhos, que fazia ponto na esquina da Barata Ribeiro com República do Peru, onde disseminava sua ira contra automóveis e pedestres. Numa algaravia em que só os loucos conseguem se expressar, dirigia impropérios aos passantes enquanto tentava orientar o trânsito. Ou então ouvia um rádio mudo mas que emitia uma música que só ele ouvia, em cujo ritmo dançava balançando as pernas.

Era o idiota da pequena aldeia formada por aquele quarteirão de Copacabana. As crianças riem dos loucos inofensivos e o provocavam na saida do colégio para vê-lo enraivecido e depois corriam dos seus arranques.

Está desaparecido há meses. O garçon do botequim diz que foi internado, depois de uma crise em que manifestou seu protesto de maneira mais furiosa contra o trânsito caótico que não conseguia organizar e as pessoas que passavam a seu lado meio amedrontadas, fingindo indiferença.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Nordestinos


Vieram amontoados em caminhões para ganhar um salário miserável na construção de edifícios. A indústria imobiliária não é indústria, mas um artesanato de tijolos e argamassa de cimento e pedras. Eles vieram para fazerem com suas mãos a Avenida Paulista, os prédios monumentais de Brasília e as ofertas do marketing imobiliário de Copacabana, Leblon, Ipanema, Barra da Tijuca.

Foram importados como matéria-prima de baixo preço e alojados em moradia degradante. Fizeram crescer as favelas do Rio porque os incorporadores preferiam que ficassem próximos das obras, pois assim poderiam pagar menos pelo seu trabalho. Discriminados como minoria, são alvo de movimentos neonazistas em São Paulo.

Um deles chegou a presidente da república, outros voltaram para sua pátria, onde morrem afogados por enorme volume de água, depois de tantos anos de seca.

sábado, 19 de junho de 2010

Cristo fulminado


Na segunda-feira passada, a estátua de Jesus construida em Cincinatti, Ohio, por uma igreja evangélica chamada Solid Rock Church, foi destruida por um raio. O amigo Marcelo, que enviou a notícia, diz que foi um aviso. A sinceridade dessas igrejas que aparecem de repente como se fossem lojas comerciais está sempre sob suspeita, e não se deve nunca duvidar de certos sinais do sobrenatural.

O monumento, batizado como Rei dos Reis, na porta da igreja, tinha 20 metros de altura por 12 de largura. Os fiéis terão de multiplicar o valor do dízimo para pagar o prejuizo, calculado pelo pastor em 1,4 milhão de dólares.

Aqui em Copacabana, a Igreja da Multiforme Sabedoria de Deus, instalada ao lado do Bar e Café União, também anda no prejuizo. Enquanto o botequim está sempre cheio, a Igreja até agora não conseguiu firmar o seu prestígio. Quase dois anos depois de inaugurada, numa pequena loja da Barata Ribeiro, seus bancos ainda se encontram meio vazios. Talvez um monumento na porta, como fez a Solid Rock Church, ajudasse a propagar sua mensagem.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Correndo nu


A Copa do Mundo é um acontecimento mobilizador de enorme público em todos os países onde as pessoas estão ligadas no futebol. Significa grande evento promocional, capaz de mover as marcas e estabelecer recordes de vendas de produtos populares. Trata-se de oportunidade que os produtos de consumo de massa não querem perder e por isso exercitam a criatividade.

Aproveitando a onda, a Pepsi lança esta semana na Argentina nova campanha na qual afirma que vai imitar Maradona, que prometeu sair nu pelas ruas de Buenos Aires se o seu time for campeão. O refrigerante diz que também se despirá e será distribuído sem rótulo para comemorar o sucesso da seleção. Maradona sem roupa e Pepsi sem rótulo. Ambos pelados numa festa de arromba.

Os argentinos dizem que seria bem melhor se a moda fosse adotada por Eugenia Tobal, Florencia Bertotti, Veronica Varano e Sabrina Rojas, consideradas destaques entre as melhores mulheres do país.

sábado, 12 de junho de 2010

Arroz de Braga


A cidade de Braga, a mais antiga de Portugal, é famosa pela sua velha igreja, a Sé de Braga, que vem dos anos 1000, mas também pelo arroz que leva o seu nome. Fim de semana de fria temperatura, bem indicado para se fazer este prato. Vamos à cozinha.

Ingredientes

2 xícaras de caldo de carne
2 xícaras de água a ferver
150g. de linguiça
1 paio
100g de toucinho defumado picado
2 colheres de óleo
4 sobrecoxas de frango
1 cebola picada
2 xícaras de chá de arroz
½ repolho pequeno
1 tomate picado
sal a gosto

Modo de fazer

Corte a lingüiça e o paio em rodelas e reserve. Aqueça o óleo, frite nele o toucinho e junte o frango, fritando até ficar bem dourado. Acrescente o paio e a linguiça e frite mais um pouco. Junte o arroz previamente lavado e seco e deixe refogar durante alguns minutos. Despeje o caldo e a água fervente e, quando levantar fervura, acrescente o repolho cortado em pedaços grandes e o tomate. Diminua o fogo e deixe cozinhar durante aproximadamente 15 minutos, até que a superfície apareça seca. Abafe a panela embrulhando-a em jornais e deixe descansar 10 minutos antes de servir.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Mar ausente


As cidades foram erguidas junto aos rios ou junto aos mares. São as águas que criam as paisagens urbanas e o tom do seu traçado, organizam os transportes e lhe dão personalidade. Onde não existem rios, longe do mar, crescem aglomerados tristes e destituídos de alma, como Las Vegas.

O Rio é um presente do mar, como o Egito é uma dádiva do Nilo, pela inspirada definição de Heródoto. Nas praias do Atlântico, de frente para a África e na rota das Índias, o Rio teve o seu destino e a sua glória por sua ligação com o mar que, junto com as montanhas, constroem a sua beleza.

Por que razão o Rio odeia o mar, que é sua origem e do qual depende como parte da sua essência? Nas imagens antigas, gravadas pelos artistas europeus que vieram atraídos pelo novo mundo, vê-se como a cidade era tão próxima do mar. Há sempre figuras de pessoas olhando para o mar, que pouco a pouco foi afastado pelos aterros sucessivos e pelas construções que se fazem nas praias: arenas para espetáculos, palcos, estádios, arquibancadas.

Hoje, caminham-se quilômetros pela orla e não se vê o mar.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Uma nova religião


O publicitário francês Frédéric Beigbeder foi demitido da Young & Rubican por falta grave, depois que publicou seu livro 99 francs (rebatizado como 14,99 €, depois da chegada do euro). Ele escreveu que a publicidade é uma nova religião pela qual nós somos manipulados e condicionados. Sobre seus colegas de profissão, ele diz que são embrutecidos, superpagos, totalmente cínicos e niilistas, que só pensam em lucro e jamais refletiram sobre o poder que detêm.

Beigbeder diz que os métodos de trabalho das agências são obsoletos e consistem em reuniões onde as boas idéias são destruídas. A maneira de fazer anúncios é a mesma dos tempos de David Ogilvy e Bill Bernbach e a liderança encontra-se cada vez mais com o cliente. As agências passaram a ser meras executantes.

As marcas deixaram de falar do produto e passaram a vender estilos de vida, impondo um universo imaginário ao qual crianças e adolescentes são vulneráveis e permeáveis.

Ele propõe que exista nas escolas uma matéria destinada a criar resistência à publicidade e ensinar que felicidade não é aquilo que se vê nos anúncios.