sexta-feira, 26 de maio de 2017

O bandolim



A música de um bandolim trouxe a poeira do tempo em que os sons misturavam-se a lembranças abandonadas. Meninos corriam contra o vento, espalhavam seus gritos pela chuva. Os olhos do poeta cego procuravam ouvir e compreender o que pudesse existir de beleza em volta. E de poesia, sim.  Entender o que faz uma criança incorporar na alma o fascínio da chuva e o que há de mágico numa ventania.

Mulheres de negro sentavam-se às calçadas e olhavam apenas o passar do mundo. Pouco havia de sons além da música do bandolim que era tocado por um velho de cabeça baixa, pernas cruzadas e ele também perdido nas fímbrias do seu próprio tempo. As nuvens tangidas pelo vento traziam também o coro das tempestades que tornavam a paisagem vazia como a solidão dos mortos.

Nenhum de nós conseguia entender além daquela música mas sabíamos que algo existiria acima de todas as coisas, mesmo dos sons das notas espalhadas pelo espaço do tempo incompreensível. A distância e as emoções despertadas faziam pensar em algo que estava além, muito além do coro das crianças que corriam contra o vento desafiando o som, a beleza de um bandolim sob as nuvens aziagas do final de um dia.

sexta-feira, 5 de maio de 2017

Noite



Aves mortas penetram no sono da criança. Ela se move entre os pequenos corpos imóveis de penas suaves agitadas pelo vento. Depois há um tigre com estrias vermelhas e olhos de fogo incandescente. A criança olha em torno e volta-se para o arco-íris colorido. Mais uma vez o vento se transforma na tempestade de tons negros, cinza e bordas escarlates.

As cores se transformam também nas sombras que avançam  vindas do horizonte e toda a paisagem se move na direção de um lugar que não existe. Somente o pensamento aproxima esta paisagem da vida que vai nascer em algum lugar distante, úmido de chuva, sombrio como a noite das paragens frias.

E mais uma vez renasce o desejo de ver o voo dos pássaros inertes que atapetam o chão com penas movidas pelo vento. Os outros animais aproximam-se lentos, curiosos, amedrontados. Ignoram o significado de tudo, o chão de vidro assume a opacidade dos ventos e a criança, uma vez mais, tenta vencer o assomo de lágrimas intensas e da noite que nunca mais terminará.