segunda-feira, 29 de junho de 2009

Marquinhos

Marquinhos é um maluco que ouve um velho rádio de pilha que não toca nada. Mas apesar do silêncio do rádio, ele dança assim mesmo. Balança as pernas, olha através dos edifícios para algum lugar do infinito e a expressão do rosto não denota qualquer prazer. Pelo contrário, a testa franzida demonstra mau-humor permanente.

Quando não está ouvindo o rádio encostado na orelha e dançando, xinga os passantes. Dirige a quem passa impropérios terríveis e impossíveis de se compreender, pois são proferidos numa algaravia complexa e não articulada. Mas o som e o olhar arregalado e raivoso em que são proferidas, não deixam qualquer dúvida de que são palavras que estão abaixo do baixo calão.

Marquinhos não respeita ninguém e, de um lado da Barata Ribeiro, esculhamba quem passa na outra calçada. As vítimas dificilmente percebem que estão sendo atacadas numa linguagem falada em outra dimensão porque o barulho do trânsito abafa os outros sons da rua.

Há dias que não vejo o Marquinhos, alí entre a Paula Freitas e a República do Peru.

sábado, 27 de junho de 2009

Dobradinha com Feijão Branco


Sábado frio de inverno, o que pede um prato de resistência, como o descrito aqui em mais uma receita do livro 50 Sonetos de Forno e Fogão.

Ingredientes:
1/2 quilo de tripas. 1/2 quilo de bucho. 1 colher de sopa de banha de porco. 2 dentes de alho. 1 cebola grande. 1 folha de louro. 2 limões. 1 colher de sopa de vinagre. 6 tomates grandes e maduros, sem peles nem sementes. 1 paio grande. 1 cálice de cachaça. 1/2 quilo de feijão branco, cozido em água e sal, sem caldo, com os grãos macios e inteiros. Sal. Pimenta-do-reino.

O soneto

As tripas com o bucho vão de molho
por uma hora em água com limão.
Depois corte em quadrados e tempere
com sal, limão, pimenta e cheiros verdes.

Em banha quente doure alho e cebola,
refogue a dobradinha até ao ponto
de quase frita. Flambe com cachaça.
Ponha louro e tomates amassados.

Acrescente vinagre, água fervendo
e deixe cozinhar em fogo brando.
Junte mais água, caso necessário.

Ponha o paio em rodelas, escaldado,
o feijão branco e mexa lentamente.
É bom comer tambem com pouca pressa.

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Copacabana


Depois de inaugurado o Túnel Novo, em 1906, Copacabana começou a se urbanizar e receber seus primeiros habitantes. O enorme areal transformou-se num bairro independente e populoso que se estendeu na direção de Ipanema e do Leblon. Esta sequência na ocupação das praias tem a ver com a idade dos seus habitantes. Copacabana, a primeira a ser ocupada, tem hoje a população mais idosa.

E foi aquela também a sequência em que esses bairros estiveram na moda. Cada um foi chic a seu tempo. A ocupação da Barra transferiu para lá os grandes investimentos imobiliários, a população mais jovem e o aparecimento de um estilo de vida mais próximo de Brasília ou, como querem os seus habitantes, de Miami.

Copacabana, a mais velha, mantem seu estilo de vida próprio, que mistura decadencia com tipos humanos de grande diversidade e com a multidão de turistas que se aglomeram à borda do mar.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Proibições


O homem aspira à santidade e vive em busca de transpor as limitações do seu próprio corpo. Talvez tenha sido esta a grande descoberta dos profetas que fundaram religiões e dos aproveitadores que estão periodicamente criando novas seitas promovendo a salvação das almas.

O desprezo pelas limitações da matéria de que somos feitos é o que inspira os místicos e também os super-atletas que buscam superar a condição humana. A sociedade inteira se une em torno do Estado, cujo poder se caracteriza pela capacidade de nos obrigar a fazer algo mesmo contra a nossa vontade.

E somos obrigados a parar de fumar para que nos seja permitida a entrada em qualquer edifício. A nos manter abstêmios para dirigir um automóvel. E, a seguir as recomendações do Ministério da Saúde, usar preservativo para fazer sexo até com a própria mulher. Sem esquecer a enorme lista de alimentos que não se deve comer.

Proibição total aos prazeres humanos, é a palavra de órdem gritada em nossos ouvidos.

sábado, 20 de junho de 2009

Bacalhau à Leda


Sábado, dia bom para ir à cozinha fazer este bacalhau com receita do livro 50 Sonetos de Forno e Fogão:

Ingredientes: 1 quilo de bacalhau. 1/2 quilo de batatas miudinhas, descascadas e lavadas. 1 cebola grande em rodelas. 5 ou 6 tomates bem maduros, sem peles e sem sementes. 2 pimentões medios . 2 dentes de alho em fatias. 1/2 xicara de azeitonas pretas. Sal. Pimenta do reino. Azeite.


Dessalgue o bacalhau, retire a pele,
as espinhas e corte-o em pedaços.
Em fôrma grande, junto com o peixe,
vão batatas, cebolas e tomates.

Acrescente azeitonas, pimentões
em rodelas, pimenta, sal e alho.
Regue com generoso e fino azeite
e coloque a seguir em forno forte.

Espere o bacalhau ficar macio
e as batatas tostadas, coradinhas.
Tire do forno e sirva muito quente.

Esta receita quem nos deu foi Leda,
famosa quituteira nordestina,
que reina soberana no Alecrim.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Três macacos


Assisti a alguns bons filmes, nas duas últimas semanas. Destaque para O Lutador (The Wrestler), de Darren Aronofski, com Mickey Rourke, e A Banda (The Band’s Visit), do diretor israelense Eran Korilin. São obras diferentes entre si. Enquanto a primeira exprime o drama individual de um homem que se perde no mundo e só consegue compensar suas perdas pela efêmera glória que vai matá-lo, a história da banda egípcia sem rumo é uma suave e delicada crônica sobre a ternura dos encontros.

No entanto, a maior impressão foi a provocada por Três Macacos (Üç maymun), do turco Nuri Bilgen Ceylan. Saí da sessão me dizendo que o filme era maçante mas as suas imagens não me saiam do pensamento. Aos poucos, fui me convencendo de que, ao contrário, tratava-se de um filme belíssimo, contado com precisão, sensibilidade e talento muito raros no cinema atual.

Acontecera que meus olhos, saturados do estilo americano, haviam de início estranhado aquele rítmo tão diferente, lento e tão intenso de contar uma história.

Às vezes ficamos como os três macacos – cegos, surdos e mudos – quando uma obra de arte nos surpreende.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

A Lapa


O prazer de passear pela Lapa, em suas ruas sombrias de casarões maltratados pelo tempo mas que ainda conservam certa nobreza, leva-nos a pensar como o Rio seria diferente, se a arquitetura original e o desenho da cidade tivessem sido preservados. Teríamos hoje uma cidade-monumento que daria inveja a Roma e a Paris, assentada sobre esta paisagem que até nós, que vivemos nela, não nos cansamos de olhar.

O esplendor do Rio na passagem do século XIX para o século XX tem sua memória ali, na Lapa, principalmente na área que fica depois dos Arcos, seguindo o eixo da velha Mem de Sá. O bairro vem dos anos 1700, já sofreu muitas mudanças, diversas intervenções nem sempre inteligentes mas conseguiu manter o carisma de lugar histórico e boêmio, e hoje começa a receber de volta o seu prestígio.

A ressurreição se dá por conta do clima que sempre caracterizou seu passado, criado pelos bares e botequins, um comercio fora de moda e a presença de gente de vida meio torta na busca da alma que a cidade perdeu.

sábado, 13 de junho de 2009

Labskaus à Maria Schaade


Era um pequeno restaurante que existiu na Rua Teófilo Otoni, aqui no Rio, e tinha o nome de Ficha. Mas ficou famoso como Labskaus, o prato de resistência da casa. Os donos eram um ex-marujo alemão e sua mulher Maria Schaade, que comandava a cozinha. Ambos já morreram, o restaurante desapareceu mas ficou a receita simples do prato neste soneto do livro 50 Sonetos de Forno e Fogão, que fizemos, Nei Leandro de Castro e eu, há quinze anos.

Ingredientes: 1 quilo de carne de peito defumada.700 gramas de batata.1/2 lata de viandada. 1 cebola. 8 ovos. Pepinos em conservas.

É um prato de marujos europeus,
aventureiros louros que singraram
vastos oceanos, mares tão distantes,
comendo labskaus meses a fio.

Se o leitor perguntar qual a razão
da presença de um prato da Alemanha
num livro de sonetos culinários,
faça o prato e terá boa resposta.

Basta moer a carne e a viandada,
cozinhar as batatas, espremê-las,
cortar uma cebola picadinha

e com colher de pau misturar tudo.
Para cada porção, dois ovos fritos
e pepinos inteiros ao redor.

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Velhice


A cada leva de tempo, uma nova geração atinge a velhice. E começa uma fase da vida que, longe de ser a melhor idade inventada pelo marketing, tem as suas vantagens e, principalmente, desvantagens. Mas penso que é um período da vida bem melhor do que aquela que é seu contraponto - a adolescência. Ao contrário do adolescente, que se vê perdido num mundo para ele indefinido, o velho já conhece as regras do jogo.

Deixo vocês, hoje, com as reflexões de Paulo Maldonado sobre o assunto. Veja aqui.

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Mar ausente


Faz uns vinte anos, lí numa entrevista do comandante Jacques Cousteau que não existiriam mais praias de areia branca em nenhum lugar do mundo. Em outra ocasião, assisti uma conferência do Almirante Paulo Moreira da Silva, então presidente da Fundação de Estudos do Mar e ele chamava a atenção para o fato de que os oceanos tinham se transformado na lixeira do mundo.

Eram ambos estudiosos, homens que amavam o mar e eles tinham razão. O desprezo pelo mar e pelas praias é evidente e paradoxal na forma como o mar se distanciou das pessoas, numa cidade marítima como o Rio de Janeiro.

Em sucessivos aterros, na construção de arenas esportivas temporárias, nos shows musicais que reunem multidões, tudo se faz para afastá-lo e torná-lo distante. Em gravuras antigas, mesmo aquelas que representam o centro do Rio, há sempre alguém sentado numa pedra, contemplando a beleza das águas. Hoje, vai-se de Copacabana ao centro da cidade e não se vê o mar.

sábado, 6 de junho de 2009

Agnus Dei


Há 15 anos, Nei Leandro de Castro e eu escrevemos e publicamos pela Editora José Olympio um livro de receitas de cozinha em forma de sonetos decassilábicos. Chamou-se 50 Sonetos de Forno e Fogão. Para nós foi um prazer redobrado fazer os pratos, comê-los e depois escrever os sonetos.

Hoje, sábado, dia de ir para a cozinha, eis o Agnus Dei, soneto retirado do livro e dedicado a um saboroso cordeiro.

Ingredientes: 700 gramas de carne de cordeiro, cortada em tiras. 50 gramas de banha de porco. 100 gramas de presunto. 1 cebola. Farinha de trigo. 1 cálice de vinho branco seco. 1 xícara de caldo de carne. 1 gema de ovo. Suco de 1 limão. Sal. Pimenta-do-reino.

Temperado o cordeiro com pimenta
e sal a gosto, passe-o na farinha.
Corte o presunto em cubos, a cebola
em rodelas e frite até dourar.

Depois ponha o cordeiro na fritura,
regando com bom vinho branco seco
e deixe evaporar. Neste momento,
junte o caldo de carne e mexa um pouco.

Cozinhe em fogo lento e, quando pronto,
pouco antes de servir, fora do fogo,
misture a gema e o suco de limão.

Tenro cordeiro que, sacrificado,
se transforma num prato que redime
os pecados da gula e nossa fome.

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Chegada ao Galeão

O pior momento de um turista que chega ao Rio se dá logo no Galeão, pensa o amigo Carlindo Costa. Ao desembarcar, se o viajante tiver sorte, vai encontrar um carrinho de bagagem com todas as rodas em funcionamento. Depois de passar pelo crivo das autoridades, que estão sempre em busca de brinquedos eletrônicos – armas e drogas seguem outro caminho que não tem filas - vai ter de se desvencilhar do assédio das vendedoras das cooperativas de taxis.

No passo a seguir, novo assédio, agora dos carregadores oferecendo cambio e dos agentes de taxistas piratas que pretendem levar o turista incauto para seus carros. Depois, vem um sight-seeing por obras primas do urbanismo carioca, tais como a Linha Vermelha e seu entorno, o Caju e São Cristóvão.

Os hotéis da orla, os agentes de turismo, taxistas falsos, camelôs, mendigos, abordagem de traficantes, prostitutas, travestis, assaltantes e vigaristas de toda órdem, estes são personagens de um outro capítulo no romance de um turista no Rio.

terça-feira, 2 de junho de 2009

AF 447


Na volta de João Pessoa, domingo, o vôo da Gol em que eu me encontrava deve ter cruzado nos céus com este da Air France que desapareceu no mar pouco depois. Os passageiros estariam se preparando para o longo trajeto que deveria durar onze horas, grande parte do tempo na travessia do Atlântico e dentro da noite.

O AF447 é o vôo no qual tenho embarcado para a França, nos últimos anos, desde que a Varig deixou de operar essa linha. Nele sempre fiz viagem tranquila, apesar do avião sempre lotado, mas com tripulação de cabine bem treinada, capaz de dar conta do recado e atender sem reclamações a enorme quantidade de passageiros.

Pensei neles, nos ocupantes do vôo 447, onde as nacionalidades se misturavam, as famílias se transferiam de um país para outro e os casais se preparavam para uma temporada de prazer e sonho nas atrações de Paris. Pessoas que desapareceram num trágico mergulho dentro da noite ao encontro do mar profundo, de onde provavelmente seus corpos jamais serão resgatados.