segunda-feira, 27 de abril de 2015

Anjo negro

Sem perdão, o anjo decaído vaga do lado de fora dos portões do Paraiso. Do lado leste, onde pássaros estranhos, escuros, rondam os passos notívagos dos condenados. Em sua volta eles voam, grasnam, levantam as asas e misturam sua penas com a linha de um horizonte onde as sombras levantam-se e cobrem as primeiras manchas tingidas da aurora.

O rumo das serpentes, a viração doentia de um vento úmido prenunciam enchentes, destruições e palavras sem sentido de sacerdotes cegos de fúria clamando arrependimento. Só restam traços da caminhada em fuga da vingança.


Anjo negro destituído de aura, feio, olhos ausentes, rosto encovado dos vampiros, exibindo sua angústia do lado de fora das igrejas, mendigando nada. Traz consigo só meditação sombria, eterna indagação sobre o destino das coisas intangíveis e a surpresa dos que foram desprezados às margens do Aqueronte.

sexta-feira, 24 de abril de 2015

Enlace

Dormi entre assassinos,

o pensamento atirado

perto do horizonte.



Crianças suicidas,

a noite cobriu as nossas almas

com o latido dos cães.



O choque das goteiras

excitava a marca das paredes,

a sombra era um mergulho.



Um vulto vomitava

no vácuo do silêncio

palavras de agonia.



Ouvíamos silentes,

a morte com a vida se enlaçava

e nela adormecia.


domingo, 19 de abril de 2015

A morte

Desde suas origens o homem tenta acostumar-se com a idéia de que vai morrer. O fim da existência está presente em toda a destruição que tem cercado a humanidade. Tudo nasce, cresce e morre, inclusive os povos, as culturas e suas realizações e todas as construções humanas.

Convivendo com a certeza do fim de tudo, em seus paradoxos o homem aspira à eternidade no mito da alma imortal incentivado pelas religiões. Embora seja um animal triste, pois sabe que vai morrer, cultiva também a possibilidade de se eternizar, de voltar à vida com outro corpo em outras encarnações.


Essa angústia que faz o homem se sentir um “cadáver adiado”, no dizer de Fernando Pessoa, mantém no entanto acesa a chama da permanência porque, mesmo ciente da inevitabilidade do seu destino, sabe que a morte só existirá onde existir a vida.

quarta-feira, 15 de abril de 2015

Um louco

Marquinhos, já falei dele por aqui, é um maluco que ouve um rádio velho que não fala nem toca nada. Mas apesar do silêncio do rádio, ele dança ao som de uma música imaginária. Balança as pernas, olha através dos edifícios para algum lugar do infinito e a expressão do seu rosto não denota qualquer prazer. Pelo contrário, a testa franzida demonstra mau-humor permanente.

Quando não está ouvindo o rádio encostado na orelha e dançando, xinga a humanidade. Dirige a quem passa impropérios terríveis e impossíveis de se compreender, pois são proferidos numa algaravia complexa e não articulada. Mas o modo de falar e o olhar arregalado e raivoso não deixam qualquer dúvida de que são palavras de ofensa e condenação.

Marquinhos não respeita ninguém e, de um lado da Barata Ribeiro, esculhamba quem passa na outra calçada. As vítimas dificilmente percebem que estão sendo atacadas numa linguagem proferida em outra dimensão pois o ódio de Marquinhos é abafado pelo barulho da rua. E também porque as pessoas nunca enxergam os que são feios, velhos ou diferentes.

domingo, 12 de abril de 2015

Sombras



Era o instante da memória que vivia
o tempo das mudanças
e das sombras refletidas nos estios.

O tigre da memória e a sua sombra.
No lugar dos jardins, bosques sombrios
e onde foram caminhos, retinas assombradas.

Vou retirar da fonte o alívio das pegadas
e o esmorecer das tardes encobertas
pelo jorrar do pó das semelhanças.

Ali se deitarão nossos delírios
junto ao sereno, ao clamor e às despedidas,
vigília das noites espelhando seu cansaço.


quarta-feira, 8 de abril de 2015

A atracão dos abismos

Há nos humanos uma atração dos abismos. Impulso que os conduz a escolhas fatais, opções que levam ao desastre, à infelicidade e às vezes à morte. Uma negação do instinto de sobrevivência, renúncia da auto-preservação.

Está presente na paixão por coisas e pessoas que revelarão seu poder de condenação e levarão a vida a contemplar o caos.  É a supremacia de Tânatos sobre Eros, quando o impulso da vida é vencido pelo da morte e nesta contradição encontra-se toda a condição humana.


Os gregos acreditavam que Eros, o deus do amor, adormeceu numa caverna e, ao perder suas flechas, misturou-as com as de Tânatos, o deus da morte. A partir de então as flechas do amor misturam-se com as da morte mas as flechas de Tânatos permaneceram para sempre como um atalho para o destino dos homens.