sexta-feira, 28 de outubro de 2016

A síndrome


O bicho humano desenvolveu-se tal como é somando algumas características biológicas e intelectuais ao longo de muito tempo. Embora semelhantes, cada um de nós carrega sua própria identidade. Somos iguais e diferentes, temos padrões para pensar e agir como o fazemos. Quando alguém pensa e se comporta fora desses padrões, provoca surpresa e estranhamento.

Poderíamos no entanto sermos de outra maneira, bastaria uma pequena, simples alteração nos cromossomos, diz a biologia. E os padrões seriam outros. Poderíamos reagir diante do mundo de maneira mais simples, sermos mais felizes, irradiar mais otimismo e encarar a realidade com outro comportamento. Seríamos mais risonhos e mais alegres.


Foi assim que pensei ao ver a jovem mulher e o seu menino a caminhar na rua. A curiosidade dele, o olhar simples dos olhos amendoados, seu sorriso e a forma de caminhar descontraída, o ritmo tão atribulado quanto o das outras crianças. A mulher era tristonha, o menino era feliz.

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

A conquista



Um caso de paixão repentina. O rapaz que bebia numa cadeira da calçada deu um pulo quando viu a bela moça negra que ia atravessar a rua. Ela esperava que abrisse o sinal de trânsito, estava distraída e seu comprido vestido agitava-se com o vento. Ele se aproximou e disse quase ao ouvido da moça algo que a fez sorrir. E acompanhou-a na travessia da rua.

Os que continuavam no bar interromperam a conversa e passaram a olhar os dois que seguiam pela Paula Freitas, ele animado e falante, ela a sorrir. Um velho que bebia café elogiou a iniciativa do moço, disse que ela era mesmo linda e valia tanto o salto quanto o assédio. Seu companheiro de mesa afirmou que apostaria no sucesso da conquista.


Os amores à primeira vista costumam muitas vezes durar toda uma vida, alimentando-se da mesma surpresa e da paixão do primeiro encontro. Outros terminam com a passagem do vento. Uma mulher velha na mesa ao lado disse  que aquilo ia acabar em casamento. Foi quando o rapaz voltou e atravessou a rua de volta. Olhou para as outras mesas, sentou-se, apontou o polegar para baixo e bebeu calado e sozinho pelo que restou do final da tarde.

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

O gesto



Há em ti um gesto obscuro
que trazes sempre submerso
no movimento das mãos.

Está presente no espaço
que te cerca e onde constróis
o som de tuas palavras.

Está presente e no entanto
diverge do pensamento
como esta mão da outra mão.

Chegas ao teu gesto
como o telegrafista
que não dispõe mais de dedos.

É algo que aproveitas

do muito que te foi dado
e a seguir retirado.

sábado, 15 de outubro de 2016

Desfile



Sento-me ao botequim e um apanhador de latas se aproxima e pede para lhe pagar um refrigerante e algo para comer. Pouco depois uma criança procura me vender balas e, com a dispensa, pede algum dinheiro. Marquinhos, o maluco da vizinhança, passa tentando cantar alguma coisa que ouvia no rádio mudo que traz sempre ao ouvido. 

Passam as meninas na volta da praia, de pernas bronzeadas, vestimentas curtas. O calor parece se aproximar nesta primavera e depois mais uma vez desaparece. As praias estão cheias nos dias ensolarados e os turistas ainda não chegaram. Passa o homem gordo com seu filho que tem paralisia e anda com dificuldade. A velhinha vem depois, lenta, apoiada em sua bengala.


A mulher de meia idade também vem da praia. Deve ter sido bonita quando jovem. Tem a pele enegrecida e ressecada de sol, como costuma ser a pele das mulheres de meia idade em Copacabana. Começou a ventar forte, passa um pequeno grupo que comenta o tiroteio no morro do Cantagalo. A vida passa lenta antes da chegada do verão que se aproxima e será mais uma vez muito quente, incerto e violento

terça-feira, 11 de outubro de 2016

A viagem



Naquele tempo havia trens e crianças que olhavam pela janela procurando entender as viagens cheias de segredos. O mundo se revelava enquanto se ouvia o barulho das rodas sobre os trilhos. O menino distante abria os olhos e procurava mante-los abertos para nada perder da paisagem: ora campos vazios, casebres à margem da linha, bois sobre campos verdes, ora outros meninos ao lado dos trilhos olhavam a passagem dos trens.

A descoberta era a alegria da surpresa e o mundo desfilava suas formas que mudavam no decorrer dos minutos, o céu transformava suas nuvens enquanto pássaros negros passavam na velocidade do vento. As cidades pequenas, iguais, despertava a imaginação sobre quem nelas vivia, como era a vida em seus becos e vielas. As enormes fazendas exibiam suas terras.


O barulho do trem permanecia durante muito tempo depois da viagem. Ao fechar os olhos, ouvia de novo o barulho, o grito desesperado dos apitos que parecia continuar pelos ares. Como compreender toda a complicação do mundo? Como seriam os homens, mulheres e meninos naquela imensidão de recantos desconhecidos e quem sabe, até, se Deus?

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

1978




Não dá para ser feliz, dizia Doka enquanto bebia. Estávamos num dia chuvoso de nuvens negras, um vento cortante espalhava-se em rajadas e o tempo de cor cinza acentuava o pessimismo da frase. Ele se referia a algum pensamento ou episódio que eu desconhecia, pois costumávamos nos sentir felizes quando estávamos bêbados. Era um monólogo o que ele pronunciava, não parecia notar a minha presença.

Há muitos anos vivíamos tempos difíceis. Vladimir havia sido assassinado, o perigo andava nos ares e não sabíamos mesmo como poderia ser o dia seguinte. Havia o temor de falar sobre o que acontecia, sobre a censura, as prisões e o clima angustiado de medo. Sufocávamos nossas vidas, o respirar dava agonia e se pensava em sair do país, fazer a vida em outro canto onde fosse possível redescobrir a sensação de liberdade.


Não dá para ser feliz, dizia Doka para si mesmo enquanto bebia. Acendi um cigarro – naquela época eu fumava e bebia muito – enquanto olhava para a chuva e esperava que ele mudasse de assunto. Os sons faziam eco pelos ares, as cores apenas transmitiam a escuridão, botaram para tocar uma música que dizia amanhã há de ser outro dia. Não sabíamos bem o que poderia significar.

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Primavera


Como faz todos os anos, a primavera chegou com seu clima úmido e sua indecisão entre o frio e o calor. As estações se confundem em nosso país e muitas vezes o verão invade o inverno e um outono de chuvas atropela a primavera. Mas ela chegou, confusa, a primavera. Para nos lembrar da passagem do tempo nas estações que se sucedem e que avistamos da janela do trem da vida.

Copacabana sempre sofre a febre do verão, quando a agitação das praias acrescenta mais energia ao caos. Este ano o fervilhar dos domingos de sol parece ter se antecipado. Os meninos sem dinheiro começam a chegar da periferia em busca de espaço e marcam sua presença numa linguagem de violência e susto. O bairro tenta recusa-los e ergue barreiras de discriminação e ódio.


Como todos os anos, o calor se aproxima para construir a violenta paisagem. Os bares ficarão cheios, as mulheres semidespidas, os turistas suados e vermelhos do sol que tanto procuram. O velho no bar em frente é o sobrevivente do grupo dos quatro velhinhos gays que se reuniam na mesma mesa, aos primeiros sinais do calor, para ver a passagem dos rapazes queimados de sol na direção do mar que é azul na primavera.