sexta-feira, 29 de abril de 2016

O bicho humano



A espécie humana pouco se diferencia das outras. Como todos os mamíferos, ao nascer o homem depende da presença materna para sobreviver. Sem a capacidade de falar e sem nada compreender, passará toda a vida reunindo aos poucos informações que vão formar sua visão do mundo, suas crenças e pensamentos, emoções e o próprio entendimento da realidade.

Dependente do ambiente em que vive, o bicho humano sobreviveu porque soube se adaptar a seu árido planeta. Aprendeu como nele permanecer enquanto outros animais mais fortes sucumbiram e deixaram apenas a memória dos seus restos.

Como as abelhas, somos uma massa de indivíduos que se divide em tipos distintos de uma mesma organização social. No interior dela se desenvolvem territórios diferentes, crenças e modos de vida contraditórios que entram habitualmente em conflito uns contra os outros. Fazemos parte de uma espécie que procura a felicidade nos mitos que negam a condição humana.

segunda-feira, 25 de abril de 2016

Letargia



O sono se mistura a um desejo de nada. O mundo, paralisado, está sem lembranças e sem paisagem, sequer o movimento do vento na folhagem se mostra capaz de definir o instante. Os ruídos se manifestam distantes, ecos sem repetição, manifestações que o sono absorve e transfere para dimensões imaginárias.

Mergulho nas águas rasas da memória. Imensidão de oceanos primitivos em que  peixes se movimentam lentos, sem destino, vagas imagens que se perdem em horizontes sem cor. Mas as cores insistem, no princípio pálidas, incapazes de tingir o pensamento. Depois, quase se expandem para subitamente regressarem  ao desconhecido. O mundo torna a exibir de novo matizes ausentes de vermelho, de verde e de azul.

Uma vez mais o desfilar de sentimentos em que se vislumbram voos de pássaros noturnos. Memórias sem importância se insinuam para uma vez mais se perderem no esquecimento. Uma vivência despida de sabor, sub-reptícia, inútil, incapaz de despertar o desejo de descobrir o movimento ensaiado pela vida, ela própria.

sexta-feira, 22 de abril de 2016

O Cosmos



 Quando olhamos para o universo representado em imagens, temos noção de como somos frágeis, pequenos animais insignificantes. E vemos também a pouca importância do pequeno planeta que habitamos comparado com a infinita constelação de galáxias e da comprovada existência de outros universos diferentes, parecidos, talvez idênticos, distantes deste em que vivemos.

Somos uma partícula de poeira, milagre inexplicável, acidente fortuito numa infinita combinação de possibilidades nunca resolvidas. Não entendemos por quê existimos e a ideia de Deus não é suficiente para explicar o milagre da sobrevivência no cosmos, no caos e no enorme concerto dos elementos.


A inexplicável existência de outros universos, sistemas distantes que nossa imaginação não consegue realizar aprofunda nosso isolamento. Somos uma espécie de macacos que evoluiu num ambiente infinito que não conseguimos compreender. Olhamos para o céu e perguntamos se existirá algo parecido com a vida em outros mundos e esta pergunta torna ainda maior a nossa solidão.

domingo, 17 de abril de 2016

Desfile




Uma atmosfera quente, calor de verão que invade o tímido outono deste ano confuso. As pessoas andam suadas nas desorganizadas ruas de Copacabana e a multidão na praia tem permanecido até depois do crepúsculo de cores vermelhas que anunciam mais calor ainda. Existem sinais de ódio e desconfiança nos olhares que expressam também certeza e perplexidade, algo a ver com a política e seus desencontros.

As opiniões se perdem entre as emoções confusas. Uma multidão ocupa a orla do mar, os vendedores do mercado da sede buscam seus clientes e as crianças procuram entender e participar da brincadeira estranha. O ar mistura tensão, festa, gritos, exibição. Há sempre algo de loucura nas multidões. Algo irracional que se manifesta nos gestos, gritos e nos olhares.

As meninas fantasiadas num bloco amarelo desfilam embaladas em roupas muito justas, riem como convidadas de uma festa esperada. A música muito alta embaralha os sentidos, convida a uma exaltação sem causa nem finalidade. Marquinhos, o maluco da vizinhança, encosta-se na parede, observa como se fosse o único a entender tudo o que se passa, tudo o que ninguém mais se mostra capaz de compreender.

quarta-feira, 13 de abril de 2016

Infância



De sete para oito anos, costumava acordar muito cedo e os adultos o cuidavam, davam-lhe ordens e diziam o que deveria fazer em seguida. Detestava o banho e as lições, adorava o tempo em que, sozinho, comandava os pequenos bonecos de cera em improvisadas aventuras imaginárias. Havia conflitos entre os bonecos mas também passeios em paisagens extraordinárias, descobertas de monstros, companhia de duendes, risos e choro de ódio ou de desespero.

Contemplava o mundo, imaginava e se divertia. Os adultos, ao vê-lo silencioso e quieto, o chamavam filósofo e interrompiam seus momentos de paz incentivando brincadeiras, fazendo pilhérias, ditando o que ele deveria fazer em seguida. Outras crianças o divertiam mas também o irritavam, faziam-no calar ou rir mas na verdade preferia ficar sozinho e criar um mundo com os bonecos de cera.

Estudava no princípio da tarde e no começo da noite ainda explorava os cantos do quintal, até ser chamado para comer e em seguida dormir um sono de sonhos esquisitos. Voava e também caia mas nunca atingia o chão, era um abismo sem fim, uma vertigem de queda veloz até acordar e dormir de novo. Só muito tempo depois, adulto, pensou na solidão que abriga a alma das crianças.

sábado, 9 de abril de 2016

Passos



Uma aurora incendiada parece a chaga
de um crepúsculo sangrento,
como se a noite antecipasse o dia.

Os passos na rua são ritmos antigos,
maré de ventos soprando do deserto.
Os sonhos nadam numa argila escura,
espécie de lama a se espraiar nas plantas
transformadas em brasas encarnadas.

A fumaça exala brumas, a paisagem
descobre uma vez mais o rosto esmaecido.
A maré avança sobre os ritos, um altar
feito de galhos queima e o sacrifício
é como o respirar de quem morre
agonizando no nascer do dia.

Nem cânticos ou lamentos nem o pranto
consolarão a noite e seus tormentos.

terça-feira, 5 de abril de 2016

Nabuco




Quatro milhões de africanos vieram escravizados para o Brasil. Chegaram a representar praticamente a metade da população e os senhores viviam com medo da revolta. O que os tornava ainda mais cruéis. O Brasil foi o último país a abolir a escravidão. Sua economia dependia do trabalho dos escravos e também o modo de vida, o conforto e as relações sociais. Joaquim Nabuco, um dos melhores brasileiros do seu tempo, dizia que a escravidão estava tão entranhada na vida da Nação que muitos anos haveriam de passar até que essa mancha se apagasse.

Passaram-se mais de cem anos, o que é muito pouco quando pensamos na História. E um olhar no entorno nos mostra como Nabuco tinha razão. Somos uma sociedade hierarquizada, poucos senhores dominam o país e olham para baixo com o desprezo da mentalidade escravagista que de alguma forma ainda está presente. A população negra continua dominada através da pobreza e das poucas oportunidades de superá-la.

Nabuco disse que o regime escravista tomou conta do organismo do país e penetrou na sua alma. Enquanto a Nação não tivesse consciência do valor da liberdade para todos e não apenas para uma classe de senhores, a obra nefasta da escravidão iria adiante, mesmo quando não houvesse mais escravos. Ele viu antecipadamente como seria o futuro que vivemos hoje.



sexta-feira, 1 de abril de 2016

Os melhores



Allen Ginsberg diz num célebre poema que viu os melhores da sua geração, famintos e nus, arrastando-se pelas ruas de um bairro miserável em busca de uma droga violenta. Há quase sempre uma sina destrutiva liquidando os melhores, quando não os acorrenta na paralisia de um limbo que acaba também por destrui-los.

A brilhante geração perdida dos anos 1920 pagou o preço do seu destino nos exemplos de alcoolismo, suicídio e degradação dos seus expoentes. Nos anos sessenta/setenta, a nosso lado, vimos tantos que se perderam na droga enquanto outros, torturados, presos, violentados por terem sonhado em mudar o país e também o mundo. Alguns deles, em plena maturidade, renderam-se e vieram a negar tudo em que acreditaram.


Destinos trágicos rondam a vida dos homens e costumam acometer em primeiro lugar os expoentes de cada geração. Ernest Hemingway, o mais brilhante da chamada geração perdida, disse que “aos que trazem coragem a este mundo, o mundo precisa quebrá-los para conseguir eliminá-los, e é o que faz. O mundo os quebra a todos”. E acrescentou que aos que não se deixam quebrar, o mundo os mata. Mata os muito bons, os muito meigos, os muito bravos, indiferentemente. Seu suicídio parece ter confirmado o que dizia.