terça-feira, 30 de agosto de 2016

A glória e o precipício




Um dos homens mais ricos do mundo foi um sueco chamado Ivar Kreuger, que teve o monopólio da fabricação e venda de fósforos em práticamente todo o mundo. Em seus escritórios localizados no prédio de número 7, na elegante Place Vendôme, em Paris, comandava várias empresas, entre as quais a poderosa Ericsson, e administrava o monopólio de fósforos negociado com chefes de estado em quase todos os países ocidentais.

Kreuger era também um boa-vida, dotado de grande charme pessoal, amante de belas mulheres que frequentavam sua garçoniere no andar logo acima dos seus escritórios. Era também amante dos bons vinhos, que guardava no subsolo do mesmo prédio. Sua adega despertou inveja até no banqueiro J.P. Morgan, seu rival no mundo dos negócios internacionais.

Como todos os grandes investidores, Ivar Kreuger amava os riscos do poker dos grandes negócios, que enfrentava com reconhecida inteligência financeira e dos quais saía ainda mais rico. Numa dessas jogadas, a fusão da Ericsson com a ITT americana, blefou e deu-se mal. Na manhã do dia 12 de março de 1932, Kreuger comprou uma pistola Browning automática de 9 mm e cem balas. Usou apenas uma delas para matar-se com um tiro no coração.

sexta-feira, 26 de agosto de 2016

Amar



Descobrimos palavras e emoções.
Visitamos o fundo das almas
e a essência onde elas habitam.
 Construímos em torno a face da doença.

Descobrimos o calibre das armas,
que não foram feitas
para o inimigo.
Elas são o que vemos e pensamos.

Um tiro é como o pensamento,
o punhal simples escolha.
Um tiro é uma sela que se monta
neste século obscuro.

segunda-feira, 22 de agosto de 2016

A língua mãe


Fernando Pessoa dizia que sua pátria era a língua portuguesa. As primeiras palavras ouvidas por uma criança começam a construir seu mundo emocional e vai ser nesta língua que ela vai compreender a realidade e viver os sonhos. Falar outra língua que não aquela que construiu a infância é como penetrar em território estranho. Por mais que dele se tenha intimidade algo permanece distante, talvez inalcançável.

Podemos aprender a pensar em outra língua mas nela os sonhos são raros. Há uma linguagem na qual sonhamos e será sempre aquela na qual aprendemos a balbuciar e depois a articular as primeiras palavras. O vocábulo mãe é o primeiro dito na mais tenra infância. A sílaba ‘ma’, dizem os linguistas, está presente na palavra que designa mãe em quase todas as línguas faladas no mundo.


Não nos sentimos necessariamente deslocados em paisagens estranhas, nas cidades de arquiteturas imprecisas, onde habitam povos diferentes. Há uma forma de definir as coisas, de falar e enunciar juízos que são próprios de cada linguagem que reuniu os sons articulados e modificados ao longo da sua história. Podemos ser exímios falantes de uma língua diferente da nossa mas algo sempre nos dirá que somos estrangeiros.

quinta-feira, 18 de agosto de 2016

O encontro


O homem ria mas seus olhos eram frios, não espelhavam a ternura comum aos sorrisos. A menina não o olhava, desviava o olhar para as outras mesas do restaurante. A mulher, mãe da menina, embora tímida, mostrava-se encantada com o que o homem lhe dizia. Parecia uma cena familiar num almoço de domingo. Mas havia entre eles um tipo de ansiedade que não é comum nos almoços de domingo.

Ele falava muito alto comparado com o tom de voz das outras pessoas naquele salão. Aos poucos, pelo que diziam, compreendi que haviam se conhecido pela internet. Parecia ser o primeiro encontro pessoal entre eles. A mulher levara a filha talvez porque não tivesse com quem a deixar. O homem ignorava a menina e fazia perguntas à mulher sobre a sua vida e o seu passado.

A mulher não tinha beleza, apesar da maquiagem em seu rosto triste. Percebia-se que maquiar-se não fazia parte dos seus hábitos de todo dia. O homem vestira-se com apuro e vaidade. Penteara com cuidado os cabelos negros e compridos e fazia perguntas enquanto sorria o seu sorriso estranho. Na rua, uma chuva fina molhava as calçadas de pedras portuguesas. O grasnar de uma gaivota lembrou a presença do grande rio que passava ali perto e desfilava suas águas tranquilas numa corrente infinita.



domingo, 14 de agosto de 2016

Direita e Esquerda



O pensamento político tem um conflito entre duas correntes que vem desde Roma antiga.  De um lado os conservadores, que buscam manter os valores que receberam pela tradição e do outro aqueles que defendem mudanças capazes de melhorar a experiência humana num planeta combalido.

Como os conservadores sentavam-se no lado direito e os reformadores do lado esquerdo, nas assembléias da Revolução Francesa, estas  posições marcaram as duas ideologias contraditórias: direita e esquerda. Hoje, muitos dizem que esta divisão não mais existe e quem afirma isso são,  habitualmente, os de posições conservadoras, ou seja, a direita. A esquerda reivindica sua identidade. A direita é uma só e as esquerdas são várias, separadas pelo  maior ou menor grau de mudança ou revolução que apregoam.

Para as desavenças humanas, a divergência política é tão fatal quanto a provocada pelo fundamentalismo das crenças religiosas. Ou até mesmo quanto as brigas entre as torcidas dos times de futebol. Todos esses conflitos têm origem, penso, na crença de que existe uma verdade. Mas o que existe é a luta eterna e trágica dos homens pelo poder de obrigar outros homens a fazerem ou deixarem de fazer alguma coisa. Mesmo contra a vontade. O filósofo Marcelinho Cachaça resumia: “quem está em cima bate, quem está embaixo apanha”.

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Amar uma cidade





Uma cidade tem alma e uma forma que a tornam diferente de todas as outras. Visitar uma cidade é como conhecer alguém de quem vamos nos tornar amigos ou quem sabe vê-la de maneira indiferente. É possível até vir a amá-la, como se amam os seres e as coisas que nos provocam deslumbramento. Mas é preciso desvendar o que nela existe e que não se revela ao primeiro olhar. Uma cidade é feita dos seus mais trágicos, marcantes acontecimentos, das suas crenças e da história de quem nela habita.

Não existem paraísos urbanos, pois os conflitos povoam os lugares onde as pessoas se juntam para viver. A paisagem escolhida, as águas dos mares ou dos rios que passam definem o olhar de quem os contempla. E de quem neles vive. As cidades oceânicas são abertas aos estrangeiros, as de ribeiras precisam ser decifradas. E nem sempre se revelam plenamente.

Podemos levar toda uma vida numa cidade e nunca ser capaz de entende-la. Mas existem algumas que absorvem e conquistam a quem lhes dedicar atenção, curiosidade e fascínio. Sua alma transcende os edifícios e as praças, ilumina as águas, reflete mesmo o olhar curioso de uma criança que parecia ter-se perdido no passado, na bruma e no esquecimento. Uma cidade é um coração, um punho, como disse o poeta.