terça-feira, 30 de março de 2010

O homem que bebia cerveja


Conheci gente que resolveu se matar bebendo. Uma forma de suicídio sem dor e talvez com algum prazer, apesar da destruição do fígado. Eram pessoas ternas, sentimentais, risonhas e de humor ligeiramente cáustico que não conseguia esconder o desencanto. Marcelinho Cachaça, Murilo, Gelon, Doka, Abílio, todos eles mergulharam sem desespero na escuridão, de onde jamais sairam.

A lembrança deles me vem por causa do homem gordo que bebia cerveja no botequim da Rua Inhangá. Chegava por volta das sete horas da manhã, quando o bar abria as portas, sentava-se e lá ficava grande parte do dia. Olhava os passantes com ar de ironia, os que iam à praia, os corredores, os atletas do calçadão de Copacabana.

Às vezes ele acompanhava o copo de cerveja de um cálice de bebida branca. Cachaça, vodka, um destilado qualquer para aumentar o teor da cerveja.

Há dias que não o vejo.

sábado, 27 de março de 2010

Opinião pública


Ela se apresenta em ondas, parecidas com aquelas que se formam quando se joga uma pedra na água. E, como o mar, tem correntes às vezes contraditórias. Os políticos a temem porque dependem dela tanto para ganhar quanto para perder votos. Os místicos lhe tributam adoração. A mídia a corteja, ambiciona manipulá-la. Ela é irracional, violenta, avassaladora.

Circula e age dentro e na dependência da massa que, como toda massa, não tem forma nem energia. Mas ultrapassa e transcende a massa, esmaga a individualidade, movimenta-se em busca de sentido e antecipa as grandes mudanças.

Todos a temem, ela não tem rosto e é cavalgada por lideranças que a manejam, por aproveitadores que a bajulam e pelos que lhe fazem promessas de salvação. Ela vai em qualquer direção, mas nem sempre naquela que lhe foi apontada.

A opinião pública é um estranho animal, às vezes devora seus domadores.

quinta-feira, 25 de março de 2010

Outono


O outono começou trapaceando, pois o calor com sensação de 46 graus é temperatura digna das mais quentes regiões da África. As praias continuam lotadas como no auge do verão, os bares de Copacabana batem recordes na venda de chope e as mulheres se vestem tão nuas como se vestiam para o sol de dezembro.

Não deveria ser assim, pois no outono as folhas deveriam cair e a estação chegar com suas chuvas, mas isto só acontece nos países que se encontram acima do equador, onde agora é primavera. No século XVI, as linhas da amizade dividiram o planeta. Ao norte, a origem da civilização e ao sul o território selvagem, terra de ninguém, livre de culpas, onde não existiria pecado, segundo o Papa Paulo III.

É bom saber que não existe pecado. Mas as estações do ano, com suas mudanças e diferenças, fazem falta. A quase inexistência delas não nos deixam perceber a passagem do tempo. Por que, então, os anos têm passado tão rápidos?

segunda-feira, 22 de março de 2010

Índios

Os índios carajás e os tapirapés têm aldeias vizinhas nas proximidades de Santa Terezinha do Araguaia. São muito diferentes entre si, a começar pela lingua que falam. Os carajás se expressam em língua do tronco macro-jê e a dos tapirapés pertence ao tronco tupi. Todos falam português de forma arrevesada e os carajás estão muito mais próximos dos brancos do que os tapirapés.

Os carajás exibem sua decadência deambulando pelas ruas de Santa Terezinha, pela dentadura estragada, a aldeia desorganizada e suja e o vício de beber. Adoecem com facilidade. Pagam o preço de terem sido seduzidos e abduzidos pela civilização dos brancos e suas aparentes facilidades.

Os tapirapés são arredios, raramente vão à cidade, cultivam as tradições tupis e vivem da caça e da pesca na pequena reserva que conseguiram delimitar. No princípio dos anos 90, fui mais uma vez ao Araguaia. Estive com os tapirapés em sua aldeia, organizada e limpa. O cacique José Miguel – seu nome em língua portuguesa – agradeceu por todos um livro que encontrei num sebo do Rio e lhe dei de presente. Era o estudo de um antropólogo da USP sobre aquela mesma aldeia, realizado na década de 30. Tinha fotos dos antepassados e a relação de seus nomes. Os tapirapés não gostam de exibir sentimentos porém os mais velhos não esconderam sua emoção.

sábado, 20 de março de 2010

Beleza

De vez em quando as vejo, as divas de outrora. Algumas guardam algo da beleza de antigamente, outras são hoje belas ruínas. Umas são muito tristes, outras conseguem viver o tempo presente e de alguma forma se recusam a continuar na ilusão de que coninuam belas, poderosas e desejadas.

A passagem dos anos é muito cruel para as mulheres bonitas que investiram toda a sua vida na esperança de que assim seriam para sempre. A fugacidade as surpreende na esquina da vida. Compreender e conseguir viver este encontro com o futuro é privilégio de poucas.

A mesma coisa ocorre também com os homens bonitos. Os galãs que arrasaram corações femininos não conseguem compreender por que não são mais olhados, admirados e desejados pelas mulheres com quem hoje cruzam nas ruas. E sentem-se perdidos na tempestade do tempo.

Esta reflexão me ocorre agora, depois de ver, na rua, uma das mulheres mais belas do meu tempo.

quarta-feira, 17 de março de 2010

A Ilha do Medo


A atmosfera de pesadelo e de mistério perpassa o filme e lhe transfere o rítmo que captura e prende a atenção do espectador até o fim. O que é um bom filme? Aquele que diverte, transporta a vivência de quem o assiste ou o que faz pensar? A magia do cinema situa-se dentro desses limites e A Ilha do Medo (Shutter Island), apesar de algumas teorias discutíveis sobre a doença mental, chega muito perto, talvez seja mesmo um grande filme.

Martin Scorsese é um dos expoentes da geração de cineastas que revitalizou o cinema amaericano, da qual também fazem parte Francis Ford Coppola, Brian de Palma, George Lucas e Steven Spielberg. É cineasta em tempo integral: estudou na escola de cinema da Universidade de Nova Iorque, mantém uma fundação para a preservação dos filmes mudos, é fã do neo-realismo italiano e de Glauber Rocha. Quase teve de encerrar a carreira depois do escândalo causado por um dos seus melhores filmes, A última tentação de Cristo.

Em A Ilha do Medo, Scorsese volta na sua melhor forma e dirige Leonardo de Caprio numa excelente performance. Os atores americanos ficam bons na medida em que envelhecem, como acaba de também provar Jeff Bridges em Coração Louco (Crazy Heart).

segunda-feira, 15 de março de 2010

A Tríade

Os chineses desapareceram das ruas de Copacabana. Eles eram muitos – homens e mulheres jóvens – e vendiam bugigangas eletrônicas pelos bares e ruas. Poucos falavam algumas palavras em português mas todos sabiam dizer o preço das mercadorias, contar dinheiro e fazer o troco.

Eram imigrantes ilegais. Sob o rosto impassível dos orientais, não conseguiam disfarçar uma certa preocupação ao verem um policial. Eles sumiram depois que Law King Chong, que dizem ser o maior contrabandista do país, foi preso em São Paulo. Uma coincidência.

A entrada ilegal no Brasil é organizada pela Tríade, nome pelo qual é conhecida internacionalmente a máfia chinesa. Ela não é tão bem organizada quanto a italiana mas está presente em todas as comunidades chinesas extorquindo comerciantes. Sua principal atividade é o tráfico humano. Hong Kong é o centro das suas atividades.

sábado, 13 de março de 2010

Galinha mourisca

Sábado, dia propício à cozinha, eis aqui uma receita portuguesa da forma como se fazia no século XV, antes, portanto, da descoberta das novas terras por Pedro Álvares Cabral. Os mouros ainda influenciavam Portugal.

Tome uma galinha crua e faça-a em pedaços.

Em seguida prepara-se um refogado com duas colheres de manteiga e uma pequena fatia de toucinho. Deita-se dentro a galinha e deixa-a corar.

Cubra-se a galinha com água suficiente para cozê-la, pois não se há de deitar-lhe outra. Estando a galinha quase cozida, tome-se cebola verde, salsa, coentro e hortelã, pica-se tudo bem miudinho e deita-se na panela, com um pouco de caldo de limão.

Acabe de cozinhar a galinha muito bem.

Tome então fatias de pão e disponha-as no fundo de uma terrina, e derrame sobre elas a galinha.

Cubra com gemas escalfadas e polvilhe com canela.

quinta-feira, 11 de março de 2010

As pílulas da liberdade


Conversando com o amigo, ele diz que as mulheres e os velhos hoje são livres mas nem sempre o foram. Devem sua liberdade atual a duas pequenas pílulas: a anti-concepcional e o Viagra. Ele se referia, claro, à liberdade sexual, pois foi através daqueles comprimidos que as mulheres se libertaram da virgindade tardia e os velhos da castidade a que estavam condenados na última fase da vida.

O símbolo da liberdade, portanto, deveria ser a cobra da farmácia e não a estátua que se encontra na entrada do porto de Nova Iorque. Esta tem conotações políticas e representa uma noção de liberdade que faz os Estados Unidos invadirem outros países, enforcarem o presidente e obrigarem o povo a ser livre.

A liberdade, como se vê, tem seu preço. O crescimento da aids na terceira idade tem preocupado as autoridades da saúde pública, embora em contrapartida cresça também a quantidade de velhinhos com ar de felicidade.

segunda-feira, 8 de março de 2010

Mais um gôl argentino


O cinema argentino passa por um grande momento, não só pelo Oscar de melhor filme estrangeiro que O Segredo de seus olhos acaba de ganhar. A produção do país dispõe de excelentes atores, roteiristas e técnicos e com realizadores do porte de Juan José Campanella, o inspirado diretor que antes já surpreendera as platéias com O Filho da Noiva e Lua de Papel.

O Segredo de seus olhos é uma obra baseada num roteiro complexo, de grande riqueza em seus detalhes e na sutileza da sua linguagem. Passa em revista profundos sentimentos humanos, em um pano de fundo da recente história argentina, tão trágica como a nossa e como a de outros países nossos vizinhos.

É um cinema de qualidade. Uma narrativa em que se misturam paixão, mistério, amizade, riso e amor sem esperanças. Mereceu o Oscar. O prêmio talvez sirva também para mostrar a Hollywood que o uso do talento e da sensibilidade podem resultar num filme melhor e mais barato do que as produções grandiosas e sem imaginação.

sexta-feira, 5 de março de 2010

As brancas


Doka, velho boêmio, aconselhava a tomar cuidado com as brancas. Referia-se a gin, vodka, tequila, todas as aguardentes que à distância se parecem com água. Elas são perigosas, dizia, pois a embriaguês que provocam se confundem muitas vezes com a pura e simples loucura.

Doka foi dono de um bar que sofreu intervenção da família, pois ele era também o seu maior cliente e estava falindo a casa. Posto fora do balcão, foi obrigado a pagar pelo que bebia.

Quando se inscreveu nos AA, dizia que sua força de vontade prevalecera. Era capaz de sentir desprezo por qualquer bebida, só o cheiro de cachaça o comovia, a ponto de sonhar todas as noites com um cálice cheio dela, transparente e branca, cujo odor lhe penetrava e perturbava o sono.

segunda-feira, 1 de março de 2010

A pracinha do jogo


A pracinha tem o nome de Manoel Campos da Paz, sanitarista que fez campanhas contra a febre amarela, quadro do Partido Comunista, pelo qual foi eleito vereador no Rio de Janeiro. Um médico ilustre, humanista que merece a homenagem. A praça tem um ar tranquilo, algumas mesas de cimento e uma forte vocação para o jogo.

Talvez tenha começado com os motoristas de kombis de aluguel que lá faziam ponto. O baralho ajudava a enfrentar o tédio na espera de clientes e aos poucos a pracinha com o nome do bom médico foi se transformando numa área de jogo que se ampliou pela vizinhança.

Um ponto de jogo-do-bicho e uma inocente loja de venda de jogos eletrônicos, onde as crianças trocam figurinhas, convivem com as mesas ocupadas pelo baralho. Há um botequim frequentado pelos amantes do jogo de damas e, de vez em quando, a polícia perturba a tranquilidade da pracinha e intervém para interromper um veloz jogo de cartas onde o dinheiro troca de mãos com incrível rapidez.