domingo, 31 de maio de 2015

Retorno


A janela mostra a rua

e no coro das calçadas

crianças desafinam

cânticos de medo.



O sol e a tarde mostram seu perfil noturno:

espumas poluídas, nuvens amarelas,

faca abrindo as vísceras das aves de agouro

e a face entorpecida de um céu parado.



Sonho inumerável, chão de moscas,

vermes te subindo os pés em busca do teu sexo.

Estás sòzinho em noite atribulada

e uma mulher te faz perguntas sobre a morte.



Caminhas em rota de abismos

perscrutando intemporais silêncios.

Indagas a ti próprio: até quando a escuridão

vai banhar a alma dos aflitos?

quarta-feira, 27 de maio de 2015

Encontro

Perto do meio-dia, encontro Marquinhos, o maluco da vizinhança, no botequim onde costumam lhe dar um pão e um copo de café. Com sua voz confusa me diz que estava vindo do enterro de um amigo. De longe, disse, tinha visto quando haviam jogado terra sobre o caixão do amigo.

Ele estava agitado, Marquinhos. Engasgava com o café, tossia. O rosto se tornava vermelho e os olhos se esbugalhavam. Disse que o amigo era diabético – tive muita dificuldade de entender esta palavra – mas não havia morrido disso. E apontou para o copo onde eu bebia, como a dizer que tinha sido aquela a causa da morte do amigo.


Enquanto apontava para meu copo, olhava diretamente em meus olhos, como a me provocar uma reflexão sobre o que eu fazia. Deu um prolongado gole no café quente, engasgou novamente, tossiu, cuspiu, me olhou fundo e foi embora andando rápido pela calçada, assustando os transeuntes que não o conhecem com a sua figura feia, estranha, mal vestida, e que nos faz pensar um pouco em nossa própria loucura.

sábado, 23 de maio de 2015

Um abismo

Existe a crença otimista de que caminhamos para um mundo melhor e no final o Bem e a virtude hão de prevalecer. Depois da primeira guerra mundial, a Europa e todos os países acreditaram que aquela tinha sido a guerra que acabara com todas as guerras. Quando terminou a segunda, todo mundo acreditou também que seria a última.

A miséria humana, no entanto, mostra-se infinita e presente nos conflitos, nas dolorosas fugas de populações, nos massacres e na perseguição dos aflitos. A humanidade expõe sua desumanidade no abandono dos desesperados que tentam a fuga do inferno e despencam no abismo além da condenação.


No teatro do absurdo, vaga a maré humana pelo mar na busca das fronteiras da salvação. Nenhum país a deseja. A Ásia lhe dá as costas, o Oriente a ignora e persegue, a Europa, herdeira da civilização, promove no mar a morte dos fugitivos e pretende metralhar seus barcos. Assistimos à falência da humanidade durante o café da manhã.

terça-feira, 19 de maio de 2015

A fome

Brillart-Savarin disse que, para a humanidade, a descoberta de um novo prato era mais importante do que a descoberta de uma estrela. Muitos pensam que se tratava de uma afirmação hedonista mas creio que ele queria falar da fome, um dos pesadelos que perseguem a humanidade desde a sua infância na pré-história.

O homem vivia para encontrar comida e assim continuar a viver. Mas não evitou as pragas de inanição que dizimaram populações em todas as épocas da História. Contingentes humanos têm de lidar até hoje com o fantasma da fome.

A Europa foi salva pela América, que lhe enviou a batata. Gunther Grass chegou a afirmar que isto significou a única e verdadeira revolução, pois salvou um continente que estaria condenado à morte pela falta de comida. Isto me faz pensar em que revolução poderia salvar os que até hoje morrem de fome nos sombrios recantos do mundo.

sexta-feira, 15 de maio de 2015

Um personagem de cinema

Chamava-se Eugenio Centenaro, era italiano. Em São Paulo, onde morou, dizia ser o Conde Eugenio Maria Piglione Rossiglione de Farne. Ao mudar-se para Campinas, apresentou-se como E. C. Kerrigan, nascido em Los Angeles e tendo trabalhado para grandes estúdios de cinema de Hollywood. Fundou a Escola Cinematográfica Campineira e a companhia de cinema APA Film. Produziu e dirigiu, em1923, o seu primeiro longa-metragem, Sofrer para gozar. Um fracasso.

Em 1925, realizou Corações em suplício. O filme, mais uma vez, foi um desastre na bilheteria. No ano seguinte, em Porto Alegre, tentou filmar o que seria seu quarto filme, Jóia do bem. Não conseguiu terminar. Depois se transferiu para Curitiba, onde fundou a Academia Cinematographica Paranaense. Mas o perseguia sua fama de falsário.


No fim da vida, afastado do cinema, foi acusado de envolvimento com tráfico de mulheres e de se passar por um guru indiano, lendo o futuro numa bola de cristal. Morreu de enfarte em Porto Alegre, em 1956.

segunda-feira, 11 de maio de 2015

Céu noturno

A poluição luminosa chama a atenção dos cientistas. Eles divulgaram uma Declaração em Defesa do Céu Noturno e o Direito de Ver Estrelas. Um céu não poluído que permita a sua contemplação, dizem eles, deveria ser considerado como um direito tão importante como todos os direitos pelos quais a humanidade tem lutado ao longo da sua história.

O homem se afasta do mar e do céu enquanto ergue cidades iluminadas e edifícios cercando e sufocando as praias. E vive a dificuldade de contemplar as estrelas. Só nos desertos e regiões isoladas é possível sentir a força e a beleza da infinidade de astros da galáxia da qual fazemos parte.


As praias estão cada vez mais sujas e mais distantes. Prédios, quiosques de mercadorias, arenas e tapumes obstruem a visão do mar. Vazamentos de óleo, lixo e dejetos transformam o mar urbano e todos os lagos e as águas numa feia e venenosa paisagem. Para o planeta nada é pior do que o homem.

quinta-feira, 7 de maio de 2015

Prostitutas

Elas estão sobretudo na Avenida Atlântica exibindo o corpo para os automóveis que passam. Os clientes as embarcam após rápida negociação e partem para a breve aventura. Mas também existem os supermercados do sexo como o Barbarella e a boate Help, que até há pouco existia no terreno onde surge o novo Museu da Imagem e do Som.

Os turistas e os negociantes que vêm ao Rio constituem a base da clientela. Eles chegam informados sobre os pontos onde elas estão, as mais caras e as mais baratas. As que trabalham na rua são as mais exploradas, pelo gigolô que lhes vende proteção ou pela polícia que as reprime e persegue.


Elas são muitas e são jovens, algumas são belas. Desapareceram as prostitutas velhas de antigamente. O garçom de um botequim me explicou porque hoje elas são tão jovens. Morrem muito cedo, me disse. As drogas as matam antes dos trinta anos de idade.