domingo, 31 de agosto de 2014

Preta

Ela chegou curiosa, investigando os cantos da casa e procurando reconhecer o espaço imenso para quem viveu três meses numa pequena jaula, desde que nasceu. Aproximou-se das pessoas e subiu pelo corpo delas até que pudesse investigar seus olhos. Depois deitou-se no colo e dormiu profundamente. Acordou logo em seguida para voltar a olhar o mundo em sua volta.

Comeu muito pouco e ainda não aprendeu a usar o espaço higiênico das pedrinhas apropriadas. Está muito magra e um pouco desidratada, por isso bebe muita água. Criou rapidamente laços de amizade pois mostra algum sofrimento na solidão e acompanha os humanos entrelaçando-se em suas pernas, arriscando-se a chutes involuntários.


Veio para ocupar o espaço da outra que morreu faz algum tempo e deixou um forte sentimento de perda. Mostra sua alegria nos saltos  que atingem alturas seis vezes maiores do que seu pequeno corpo. Como se quisesse divertir a quem assiste sua exibição. Está eufórica porque encontrou a companhia de humanos ainda estranhos mas com quem parece que vai se entender e comprovar mais uma vez a bela amizade possível entre homens e animais.

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

A barbárie

O homem é o bicho mais feroz das espécies animais. Foi de certa forma domado pela civilização, que é produto da inteligência, da ética e do instinto de sobrevivência. Porque viveu em matilhas e depois em tribos, famílias, comunidades, cidades, países, a humanidade criou regras de coexistência para a vida gregária.

Mas a história do homem tem avanços e recuos, sístoles e diástoles e é também uma sucessão de tragédias que fazem contraponto às conquistas. O progresso científico, a arte, a revolução tecnológica, a cultura e a religião, nada disso consolidou a consciência moral ou controlou a ferocidade como estigma e caráter da humanidade.


A degola de inocentes, o genocídio, as agressões brutais, estupros, sequestros, guerras de conquista, a tortura metódica patrocinada pelo Estado, o roubo e a corrupção, o homicídio gratúito, o tráfico de crianças, são todos sinais da barbárie negando a idealização da fraternidade, da solidariedade e da dignidade da pessoa humana.

domingo, 24 de agosto de 2014

O acaso

Antigamente eu acreditava que a História é uma consequência de fatores sociais como a luta de classes, a ascensão da burguesia ou do proletariado determinando o andamento do mundo. Mas hoje penso que a História e a própria vida humana são produtos do acaso. Não creio no destino nem nos desígnios de Deus. Mas o acaso determina o futuro.

Mallarmé, no seu famoso poema, disse que “Un coup de dés jamais n'abolira le hasard”, em português "Um lance de dados jamais abolirá o acaso". O poema, escrito em 1897, é lembrado pela sua forma gráfica que subverteu o modo de apresentar a poesia no papel em branco. Mas é um verso que dá a verdadeira dimensão dos acontecimentos sem causa.


A ocorrência do acaso transforma a lógica dos acontecimentos. Da descoberta do Brasil, que teria sido um acaso, até um involuntário pênalti num jogo de futebol determinando a partida. A sorte e o azar, o nascimento e a morte, a doença e a saúde, o resultado das batalhas e mesmo a paixão amorosa são todos produtos do acaso.

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

A tarde, no futuro

A tarde redescobriu a sombra
alimentada pela noite
como faz todos os dias.

As gaivotas, no espaço
obstruido pelo vento,
voam no deserto.

Bicam o ar e a travessia
se faz sobre o naufragio
de arcabouços antigos.

Nesta moldura,
um vulto cai sobre o vazio
e paraliza o instante.

Na memória,
cresce a bruma
e um canto agudo,

envolto em teias,
escorre sobre o mar
a sua trama.

Uma pétala se move
na encosta de um monte
escalado pelo vento.

O frio envolve as palavras
e o futuro

cai no esquecimento.

sábado, 16 de agosto de 2014

Mulheres

Olho as mulheres. Não mais com o desejo capaz de mudar a vida e abrir destinos imprevisíveis, como foi antigamente. Copacabana, cada vez mais cosmopolita, cheia de meninas que vêm dos países do mundo, é um dos terraços privilegiados para a observação do comportamento delas. Todas em momentos de lazer, contemplação e usufruto da vida.

Olho como elas andam, pois o andar transmite uma mensagem aos outros que estão em volta. Reparo o caminhar das meninas louras estrangeiras. Elas balançam ritmicamente os seios, para cima e para baixo. As meninas morenas do bairro movimentam os quadris num ritmo sinuoso. São códigos diferentes da linguagem da sedução dizendo coisas semelhantes.


As fêmeas humanas na idade própria da reprodução caminham de forma a atrair a atenção do macho e assim garantir a preservação da espécie. A humanidade nunca desaparecerá, é o que diz o jeito de andar dessas meninas.

terça-feira, 12 de agosto de 2014

Cães noturnos

Os cães da razão atacam a alma dos loucos nas madrugadas sombrias. Eles vagueiam nas noites enluaradas e partem nas viagens sem destino certo. Como peixes, buscam as águas mais profundas, separam-se para depois juntarem-se novamente em cardumes incertos e sem forma definida.

Encontrei este parágrafo escrito num papel deixado em cima da mesa do botequim. Depois perdi o papel e reconstituí o texto de memória, não tenho então certeza se as palavras são exatamente aquelas. O sentido – ou falta de sentido – está mantido e as imagens que evoca depende do leitor, como acontece com todos os textos enigmáticos.


O texto literário, principalmente o texto poético, depende tanto do autor quanto de quem lê, para ter sentido. O entendimento pode variar de uma para outra leitura, na dependência de quão misteriosas sejam as palavras escritas. Tenho pensado no que se passaria nas emoções do autor daquele parágrafo quando escreveu que a razão possui cães que avançam sobre a alma dos loucos. Eles preferem as madrugadas sombrias.