segunda-feira, 26 de abril de 2010

In illo tempore


Estropiados depois de um dia de marcha a cavalo, nádegas feridas, costumavamos dizer entre nós “imagina se um dia vamos lembrar disso e dizermos bons tempos aqueles”. Nosso corpo tinha o cheiro do suor das montarias, um cheiro tão forte que penetrava nas unhas e demorava meses para sumir.

Os oficiais faziam questão de parecerem o que eram na verdade: oficiais de cavalaria. E se comportavam na velha tradição da mais antiga das armas dos exércitos. Eram duros, grossos, cuspiam palavrões, exigiam que fizessemos as proezas que eles faziam nos obstáculos dos exercícios exteriores. Com a diferença de que eles montavam cavalos árabes ou ingleses e nós os pangarés mal treinados da cavalhada militar.

Os exercícios em picadeiro serviam para divertir os alunos das outras armas. Eles também tapavam o nariz quando passavamos, por causa do nosso cheiro. Noventa por cento da nossa turma levavam quedas espetaculares no movimento de terra-cavalo, que consistia em passar a perna direita por cima da sela, com o cavalo a galope, saltar no chão e no mesmo impulso tornar a montar. Só não caia quem não tinha coragem de saltar. E o quartel inteiro gargalhava.

À noite, não nos deitávamos. Caíamos na cama, num sono tão profundo que era impossível sonhar.

Bons tempos aqueles.

sábado, 24 de abril de 2010

Uma surpresa


A industria põe na rua tal quantidade de produtos das suas fábricas que foi preciso desenvolver técnicas para garantir que esses bens fossem vendidos na proporção em que iam sendo produzidos. Para isso foram criadas e desenvolvidas as técnicas que os americanos chamam de marketing, palavra que adotamos porque não encontramos outra melhor para definir este processo de produto, embalagem, preço, distribuição, publicidade e vendas.

Com a ajuda da pesquisa, as técnicas de marketing chegaram a conhecer profundamente o consumidor: suas preferências, hábitos, emoções, seus pensamentos profundos. A tal ponto que vender um produto transformou-se em equações matemáticas: para entrar num determinado mercado, uma empresa deveria aplicar um volume de dinheiro correspondente aos seus objetivos, comprando dessa forma participação nesse mercado. Era assim que as coisas eram.

De repente, com a pulverização dos meios de comunicação trazida pela internet, vem a surpresa que a McKinsey & Co., uma das maiores na área da consultoria, detectou em seus estudos: dois terços da economia do mundo sofre a influência direta das recomendações pessoais. Ou seja: o boca-a-boca, direto ou eletrônico, funciona melhor do que a mídia tradicional.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Carlos Pena Filho


Carlos Pena Filho morreu com trinta anos de idade, deixou quatro livros, o último deles com sua obra completa: Livro Geral. Quando reuniu tudo o que havia escrito num derradeiro volume, será que teve a intuição da morte, dali a pouco?

Conheci-o no Bar Savoy, uma instituição do Recife que hoje não existe mais, desapareceu junto com a deterioração do centro da cidade. Eu tinha dezoito anos, dez a menos do que ele. Adorava a boemia do Recife, pensava que ali era o meu lugar. Sobre o Savoy, ele escreveu o refrão no poema Chopp:

São trinta copos de chopp,
são trinta homens sentados,
trezentos desejos presos,
trinta mil sonhos frustrados.


Dos poetas de Recife, ele foi um dos maiores entre tantos que marcaram presença na melhor poesia: João Cabral de Mello Neto, Joaquim Cardoso, Mauro Mota, Ascenso Ferreira e o próprio Manuel Bandeira.

Leia neste link alguns dos seus belos poemas: http://www.interpoetica.com/carlos_pena_filho.htm

sábado, 17 de abril de 2010

A cidade do futuro


Há cinquenta anos, quando Brasília foi inaugurada, a imprensa mundial lhe dedicou grandes matérias, pois era a capital de um país construida moderna, exibindo uma arquitetura surpreendente. Vista contra a paisagem do imenso planalto, a linha do horizonte recortava os edifícios e projetava uma grande beleza principalmente ao por do sol.

Sua construção conquistou o interior de um país colonizado no litoral e os governos militares que vieram depois lhe dedicaram grande prestígio, pois era um centro de poder longe do povo, a salvo, portanto, de manifestações de desagrado.

Há quem diga que Brasília é a maior cidade do interior de Goiás. Mas foi saudada como a cidade do futuro e o futuro é hoje. Estariam depositadas neste futuro as esperanças de cinquenta anos atrás?

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Rodízio e quilo


Parece que tanto os restaurantes de comida a quilo quanto as churrascarias em rodízio foram invenções brasileiras. Representam uma solução de marketing que leva em conta a fome sem medidas da clientela pois, ao invés do comerciante, quem determina o preço ou o tamanho do prato é o freguês.

Dessas duas fórmulas bem sucedidas de vender comida, o rodízio, invenção dos gaúchos, já existe até na Russia e faz o regalo dos americanos, que esbugalham os olhos e enchem a barriga nas bem sucedidas churrascarias de Miami e Nova Iorque. A carne é um produto caro, nesses países. Quanto ao quilo a preço fixo, penso que ainda não conseguiu sucesso no exterior porque os empresários do ramo de restaurantes temem perder dinheiro nesse negócio. Em Paris, cidade orgulhosa das suas casas de pasto, anunciado como “à volonté”, faz sucesso o buffet a preço fixo. É o que há de mais parecido.

Já em Copacabana, há um restaurante a quilo e uma farmácia em cada esquina. Não existe muita relação entre esses dois negócios, mas ambos são do agrado dos velhinhos do bairro, que garantem a saúde pagando apenas pelo que comem, sem maior desperdício. E dão sempre uma passada na farmácia.

domingo, 11 de abril de 2010

Depois da chuva


A atmosfera lavada abre um céu limpo e azul depois da trágica semana de abril. A amena temperatura substituindo os dias de forte calor inaugura finalmente o outono no Rio mas esta é no momento uma cidade triste. Impossível dar boas vindas com alegria a um céu azul e limpo depois da notícia de tantos mortos.

Uma cidade construida sobre pântanos e mar, crescendo sobre aterros, soterrando rios, avançando sobre os lagos. As enchentes de hoje são o movimento das águas na procura do seu espaço antigo sobre a terra improvisada.

Um amigo me diz que o Morro do Bumba, em Niterói, é uma metáfora perversa de como construimos a nossa sociedade. Uma vila sobre o lixo, construção precária tentando viver sobre detritos que se decompõem e se preparam para destruí-la.

O mar cresce, invade as praias. O limpo céu azul tomou o lugar das núvens negras que trouxeram consigo a destruição.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

O melhor livro do mundo


Sua figura curva sobre o cavalo magro ainda hoje é lembrada e a história dos seus feitos continua sendo lida e cultuada. Louco, de porte desengonçado e uma bacia de barbeiro sobre a cabeça servindo-lhe de elmo, completando a velha armadura feita de lata velha, o Quixote continua a povoar o imaginário das gentes.

A compulsão de corrigir as injustiças do mundo aliada ao delírio insano da demência nos encanta porque o mito do herói nos acompanha desde muito cedo. Impossível viver sem a esperança de que todo mal seja combatido e toda injustiça compensada, apesar da dualidade do mundo e da vida.

A história do Quixote contada por Cervantes foi indicada como o melhor livro de todos os tempos, por uma comissão de críticos literários de inúmeros países. Talvez por ter descrito tão bem como são difusas as coisas do mundo, dando razão a Erasmo, que escreveu em seu Elogio da Loucura, em 1509:

"Todas as coisas humanas têm dois aspectos... para dizer a verdade todo este mundo não é senão uma sombra e uma aparência; mas esta grande e interminável comédia não pode representar-se de um outro modo. Tudo na vida é tão obscuro, tão diverso, tão oposto, que não podemos nos assegurar de nenhuma verdade."

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Livros e e-books


O comércio eletrônico no Brasil cresceu 30 por cento no ano passado e nesta conta não foi incluída a venda de passagens aéreas. Os jornais continuam em queda, a televisão perde audiência e o crescimento dos e-books, nos Estados Unidos, foi de 261 por cento em 2009, na comparação com o ano anterior.

Para uns, o crescimento do livro eletrônico é assustador, pois ameaça a existência do livro. Como seria a humanidade sem livros? É a pergunta que se fazem os bibliófilos, os que amam as estantes carregadas de volumes, por onde passeiam, sonham, consultam e sentem-se felizes.

Hoje, são apenas 3 por cento do mercado de livros os leitores de e-books. Mas o crescimento é enorme e surpreende até os especialistas, que discutem e buscam novas formas de comercialização. Os autores se indagam como irão escrever no futuro, quando o livro poderá não existir mais, ou ter sua importância relativizada.

O livro, como plataforma para leitura, substituiu o papiro, copiado por centenas de escravos que, em Roma, tornavam possível difundir a obra de Virgílio, Horacio ou Ovídeo. Gutemberg trouxe uma revolução que substituiu o papiro. Estaríamos diante de outra, que substituirá o livro?

No dia do Natal de 2009, a venda de e-books na amazon.com superou pela primeira vez a venda de livros.

sexta-feira, 2 de abril de 2010

As dúvidas do embaixador


Um diplomata que passou mais de vinte anos fora do país disse na volta que ainda não se reacostumara com duas manias dos brasileiros. Para protestar contra o atraso do trem, os brasileiros quebram o trem; e não havia como entender o hábito dos homens de coçar em público a genitália.
Também o impressionava o culto da Índia e do hinduismo por um segmento da classe intelectualizada, num misticismo alternativo que busca entender o mundo e a si mesmo com a importação de uma religião exótica. Quando voltou da Índia e passou pelo complexo da maré, disse ele, viu como aquelas construções eram melhores do que as casas da classe média de Deli. Pensou que o hinduísmo poderia ter tomado, naquelas favelas, o lugar das seitas evangélicas dominantes.
O embaixador morreu sem entender por que o homem brasileiro usa gravata no clima tropical do país, por que quebram os trens para protestar e por que não cultivavam o hábito lavar a genitália.