quinta-feira, 30 de outubro de 2014

A transgressão

A crueldade existente na alma das crianças reflete a essência do caráter do homem. As crianças torturam os animais, agridem umas às outras e desconhecem a solidariedade. Os contos infantis que elas amam são histórias de terror onde o bem é permanentemente ameaçado pelo mal absoluto representado por madrastas, fantasmas e duendes. Os ‘games’ de computador e os filmes prediletos são exercícios de assassinato.

Nascemos, como todas as feras, sem consciência moral e sem o sentimento do outro. Somos salvos – quando o somos – pelo contato com a cultura e a sensibilidade acumuladas ao longo da história das civilizações. A transgressão a esses valores pode sofrer punição severa porque ameaça o equilíbrio da organização social.


O estágio superior da sensibilidade humana se consubstancia na Arte, em cujo exercício o homem pode desafiar regras e afirmar assim a idealização de criatividade que a humanidade projetou para si mesma. O artista tende à melancolia pelo paradoxo da sua imperfeição, no qual se perde enquanto tenta transformar o próprio destino.

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Visita

Homens e mulheres que foram meus amigos
penetram no meu sono.
Estão mais jovens do que eram
na hora de sua morte.

Têm o mesmo rosto de quando
havia futuro nos seus dias.

Esses mortos foram meus amigos.
Conheço-os pelo nome, conheci suas almas
e o ritmo dos seus passos.


Agora eles penetram silenciosamente no meu sono.
Trazem algum mistério
que desperta e me convida
para um sono maior e mais profundo.

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

O cão amarelo

Acontece sempre às primeiras horas da manhã, quando as ruas se tranquilizam depois da noite agitada do bairro. Um silêncio feito de pequenos ruídos de uma cidade despertando, os botequins lavam suas calçadas e os andarilhos e corredores passam na direção da praia. O sol é ameno, nestes primeiros dias do horário de verão. É quando ele se espreguiça e se levanta, o cão amarelo que dorme ao lado do mendigo embaixo da marquise da loja de colchões.

Silencioso, quase solene, ele atravessa a rua na direção da praça do metrô e segue adiante. Mas antes aguarda o sinal verde da esquina, imóvel e digno. Creio que vai em busca da sobrevivência, depois de dividir a noite com o homem que ficou deitado no leito de cartolina e ainda vai demorar um pouco mais para ele próprio se levantar.


Eles têm este acordo, o homem e o cão amarelo. Dormem juntos numa mútua proteção contra as ameaças da noite para quem vive no perigo das ruas. E pela manhã separam-se, vão em busca de suas vidas, para voltarem a se encontrar mais tarde, depois que as lojas se fecham e é tempo de se prepararem para dormir. Há um curioso entendimento entre eles. Uma aceitação das coisas do mundo e das necessidades mútuas, numa linguagem que vai alem da compreensão.

domingo, 19 de outubro de 2014

Noite

Fugitivos de presságios, fantasmas, alucinações, os passos vindos da noite ecoam nas manhãs. Desde a infância dos homens o temor da escuridão representa cegueira, perdição e fronteiras fechadas para rotas de fuga inalcançáveis. O desespero dessa solidão conduziu o homem à procura de Deus, nos albores da sua história.

Fugir da escuridão em busca da luz criou a adoração do Sol, a primeira divindade, sublimação do resgate após uma noite sombria e absoluta. E a metáfora de um único dia como representação da vida: o nascimento como os raios de uma aurora sangrenta, a manhã radiosa e o entardecer da velhice anunciando a chegada da mortalha da noite.


A comparação entre morrer e dormir assinala a busca de entender o ciclo da vida em seu final. O corolário dos sonhos como franjas de felicidade em uma vida paralela e dos pesadelos como representações do horror que nos assombram. Após vencer as madrugadas, outro ciclo de vida recomeça, repete os dias e conduz na direção do eterno e do finito.

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Sons

Nosso universo emocional é dimensionado pelos sons, ao invés da matéria, como se imaginaria. O nascituro ouve o que se passa a seu redor desde sua formação no útero que o abriga. No momento em que nasce, o impacto dos barulhos invade seu silêncio e constitui o primeiro trauma da sua vida. Conduz ao choro mas também o instiga a reconhecer o ambiente em que passará a respirar e viver.

O mundo é feito de ruídos surpreendentes que muitas vezes se organizam em música, a arte das emoções que prescinde de palavras. Se cada palavra traz em seu conteúdo uma determinada compreensão das coisas que nos cercam, sua própria melodia contribui para o sentido das emoções existentes no som que elas carregam. É assim que o poema existe.


A viagem do homem na Terra é uma busca angustiada do sentido da sua própria existência. Não há resposta para a compreensão da sua lógica. Beethoven foi um dos que organizaram sons que no seu arrebatamento e em seu sentimento profundo nos ajudam a chegar perto do grande enigma.

domingo, 12 de outubro de 2014

O sono

Há um território do sono em que as imagens se sucedem sobre o vazio de um espaço infinito. Onde a vontade não atua e os sentimentos se movem opacos, não existe neles o sangrar das emoções impensadas, nem tempo presente, nem lembranças. Apenas uma paisagem em que os ventos revolvem restos da memória e anunciam monções,  tempestades, pesadelos.

Há uma profunda solidão nos amplos patamares, aves de agouro, sóis em crepúsculos vermelhos, baques amarelos, azuis devastadores. A pequena sombra de um fugitivo que procura ultrapassar os limites da fuga e mergulhar na imensidão do espaço. A música dos elementos desencontrados de um carrossel alucinado.


Um menino atônito. Criança de visões despedaçadas em caminhos encobertos. Corre, acena para alguém que o observa do alto e se mantém calado. Não há luz suficiente para revelar esta paisagem em que o imaginário se transforma na vida e seus recortes fugidios. Silêncio, fadiga e sobressalto.