sábado, 31 de março de 2018

Visita


Homens e mulheres que foram meus amigos
penetram no meu sono.
Estão mais jovens do que eram
na hora de sua morte.

Têm o mesmo rosto de quando
havia futuro nos seus dias.

Esses mortos foram meus amigos.
Conheço-os pelo nome, conheci suas almas
e o ritmo dos seus passos.

Agora eles penetram silenciosamente no meu sono.
Trazem algum mistério
que desperta e me convida
para um sono maior e mais profundo.

quarta-feira, 21 de março de 2018

O anjo


                                    L'Ange du Lazaret, Marc Petit, Cahors

Sem perdão, o anjo decaído vaga do lado de fora dos portões do Paraiso. Do lado leste, onde pássaros estranhos, escuros, rondam os passos notívagos dos condenados. Em sua volta eles voam, grasnam, levantam as asas e misturam sua penas com a linha de um horizonte onde as sombras se levantam e cobrem as primeiras manchas tingidas da aurora.

O rumo das serpentes, a viração doentia de um vento úmido prenunciam enchentes, destruições e palavras sem sentido de sacerdotes cegos de fúria clamando arrependimento. Só restam traços da caminhada em fuga da vingança.

Anjo negro destituído de aura, feio, olhos ausentes, rosto encovado dos vampiros, exibindo sua angústia do lado de fora das igrejas, mendigando nada. Traz consigo só meditação sombria, eterna indagação sobre o destino das coisas intangíveis e a surpresa dos que foram desprezados às margens do Aqueronte.


quinta-feira, 8 de março de 2018

A tarde (II)


-->

A tarde matizada de chuva, envolvida pelo vento frio, compõe uma paisagem debruçada sobre o rio, bela e sóbria, enquanto assiste a chegada da noite. O velho contempla a rua enquanto caminha pela calçada estreita em direção ao parque onde os faisões ensaiam seus curtos voos. Olha, lembra dos invernos não tão frios de antigamente. Mas sente-se melhor, aqui, sentindo o vento quase gelado a lhe bater no rosto.

A madrugada de silêncio e insônia trouxera lembranças confusas que não sabia dizer se eram mesmo de vigília ou sonho. Todas as noites silenciosas e insones trazem consigo memórias ruins, fracassos vividos, pensa o velho, pois a vida jamais é construída sobre vitórias, a perda e a dor vão construindo o arcabouço da vida.

Há uma presença de cinza não só nas ruas, mas também nas nuvens e na própria chuva que gaivotas atravessam, ouve-se o grasnar como um grito misturado ao som da rolagem dos automóveis. Um cenário perfeito para a tristeza, pensa o velho, que no entanto não se sente triste. E entra no bar que fica bem na esquina da rua, antes do jardim onde despontam as primeiras flores da primavera.