domingo, 25 de novembro de 2018

Dois testamentos


TESTAMENTO

Alda Lara
(BenguelaAngola 1930 - Cambambe, Angola 1962)

À prostituta mais nova,
do bairro mais velho e escuro,
deixo os meus brincos, lavrados
em cristal, límpido e puro…

E àquela virgem esquecida
rapariga sem ternura,
sonhando algures uma lenda,
deixo o meu vestido branco,
o meu vestido de noiva,
todo tecido de renda…

Este meu rosário antigo,
ofereço-o àquele amigo
que não acredita em Deus…

E os livros, rosários meus
das contas de outro sofrer,
são para os homens humildes,
que nunca souberam ler.

Quanto aos meus poemas loucos,
esses, que são de dor
sincera e desordenada…
esses, que são de esperança,
desesperada mas firme,
deixo-os a ti, meu Amor…

Para que, na paz da hora,
em que a minha alma venha
beijar de longe os teus olhos,

vás por essa noite fora…
com passos feitos de lua,
oferecê-los às crianças
que encontrares em cada rua…





TESTAMENTO

Deolindo Tavares
(Recife 1918 – Rio de Janeiro 1942)

A meu pai deixo minhas dívidas,
e a guarda da mulher amada que nunca me foi fiel
um só minuto de sua vida;
a meu irmão deixo minhas roupas e sapatos,
e que ele nunca anda pelos caminhos que eu andei;
a minha irmã deixo a dentadura da pianola, para que ela se alimente pelo resto da vida
com a ilusão de que é uma grande artista;
a meus amigos deixo meus travestis de palhaço.
porque os seus já estão bem estragados;
às tias solteironas deixo minha memória
que elas imortalizarão num monumento de lágrimas histéricas.

Agora que dei tudo e só possuo meu corpo inútil,
peço que sobre ele plantem madressilvas e gerânios vermelhos
da cor dos gerânios vermelhos como sangue, de Lawrence.
E já que vivi deste céu, deste mar e deste mundo,
deixo a este céu, a este mar e a este mundo,
a estas paisagens que encheram meus olhos e que muito amei,
uma gaveta onde estão trancados poemas imortais.
Não esqueçais de plantar sobre meu corpo perfeitamente inútil
Madressilvas e gerânios vermelhos
da cor dos gerânios vermelhos como sangue, de Lawrence.

segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Os sonhos e a chuva



O velho ainda traz consigo alguns sonhos da infância. Não aqueles de futuro e de fantasias que se sonha acordado com olhos abertos. Mas sim os de voar contra o céu cinzento ou então cair num abismo sem fim, incapaz de agarrar-se em paredes ou em galhos inexistentes. Há também nesses sonhos a presença inesperada de homens e mulheres que morreram e foram seus amigos.

O sono transforma-se numa vida paralela. Há também indecisões, transformações de desejos, algo distinto das coisas da realidade, como se o sonhado fosse em si mesmo a concretude da vida sem impedir a existência de sonhos dentro dos próprios sonhos. Chuvas insanas, deitadas sobre terrenos que permanecem secos em estranhos desertos a formar grandes lagos salgados.

As lembranças também se juntam nos grandes lagos da memória, pensamentos loucos, delírios insensatos. Aproxima-se a chuva que o vento transforma em temporal com a violência de antigos sentimentos esquecidos, quem sabe. E algo muito próximo da tristeza, passo a passo, transforma o desejo do pranto na contemplação de coisas infinitas.