terça-feira, 30 de novembro de 2010

Monicelli


Mario Monicelli é um dos maiores autores do cinema italiano em sua melhor época. Deixa obras-primas do quilate de Os Companheiros, O Incrivel Exército Brancaleone e suas sequências, Meus Caros Amigos, Parente é Serpente, Os Eternos Desconhecidos. Dirigiu 68 filmes e escreveu 106. Todos merecedores de qualquer cinemateca.

Com a morte dos seus grandes diretores – Fellini, Visconti, Bolognini, De Sica, Pasolini e, agora, Monicelli – o cinema italiano fica órfão, práticamente moribundo, incapaz de competir com a produção de outros países da Europa e, principalmente, com a enxurrada americana.

Nesta segunda-feira, 29 de novembro, o Mestre levantou-se da cama do quarto do Hospital San Juan, em Roma, dirigiu-se à janela e atirou-se do quinto andar. Tinha 95 anos. Não teve paciência de esperar que o câncer o vencesse e resolveu ele próprio encerrar o assunto.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

A guerra


Os dois soldados gordos com divisas de sargento foram tirados de detrás das mesas e colocados na rua. O porte desajeitado e o acentuado volume dos ventres revelam que há muito perderam o costume de ficar em pé, vigiando a rua. Procuram um encosto confortável nas paredes da esquina de Copacabana, as ruas estão mais vazias.

No twitter, alguém escreve bem cedo “good morning, Vietnam!”, outro se diz surpreendido com o bom trânsito da Barra para o centro da cidade e um terceiro pergunta como é possível separar os fatos dos boatos. E circulam notícias sobre mais ônibus e mais automóveis incendiados.

Alguém manda um recado aos traficantes: “senhores, favor queimar apenas os carros dos seus clientes”. A cidade está com um clima abafado, o sol encoberto por núvens e névoa, a temperatura é de 30 graus e o verão está chegando. Ainda é primavera.

domingo, 21 de novembro de 2010

Gerentes


O mundo gerencial criou um tipo humano que confronta sua própria humanidade na busca de resultados. Tanto nos escalões da empresa privada quanto na gerida pelo estado, a psicologia dos executivos não tem diferenças, pois eles procuram desesperadamente agir com a razão e a lógica da objetividade.

Creio que a frieza lógica e o desejo de decidir sem perda de tempo tem sua origem na linha industrial fordiana de montagem. Cada peça precisa se encaixar em segundos e não há tempo para pensar, pois qualquer reflexão pode significar um acidente ou, pior, prejuizo financeiro.

Eles têm uma tarefa difícil, ao interpretar o mundo com a lógica que aprenderam. Os alvos humanos são móveis e não esperam, por isso decepcionam. Os executivos procuram desesperadamente não errar, não têm dúvidas. São personagens trágicos, de vida angustiada. Como heróis da tragédia grega, seu destino não pode ser evitado.

sábado, 13 de novembro de 2010

Poesia

Há muitos anos, lí um poema com o título “Testamento”, do qual decorei os primeiros versos:

Ao meu pai, deixo as minhas dívidas
e a guarda da mulher que nunca me foi fiel
um só momento de vida.
Ao meu irmão, deixo minhas roupas e meus sapatos
e que ele nunca ande pelos caminhos que andei.
A minha irmã, deixo a dentadura da pianola,
para que ela passe a vinda inteira
com a ilusão de que é uma grande artista.
Às minhas tias solteironas, deixo a minha memória
que elas soerguerão num monumento de lágrimas histéricas.


Esqueci o nome do poeta, fiz várias pesquisas no Google e na minha própria memória e nada encontrei.

Mas topei com um belo poema, com o mesmo título, da poetisa angolana Alda Lara, que nasceu em 1930 e morreu em 1962:

Testamento

À prostituta mais nova
Do bairro mais velho e escuro,
Deixo os meus brincos, lavrados
Em cristal, límpido e puro...
E àquela virgem esquecida
Rapariga sem ternura,
Sonhando algures uma lenda,
Deixo o meu vestido branco,
O meu vestido de noiva,
Todo tecido de renda...
Este meu rosário antigo
Ofereço-o àquele amigo
Que não acredita em Deus...
E os livros, rosários meus
Das contas de outro sofrer,
São para os homens humildes,
Que nunca souberam ler.
Quanto aos meus poemas loucos,
Esses, que são de dor
Sincera e desordenada...
Esses, que são de esperança,
Desesperada mas firme,
Deixo-os a ti, meu amor...
Para que, na paz da hora,
Em que a minha alma venha
Beijar de longe os teus olhos,
Vás por essa noite fora...
Com passos feitos de lua,
Oferecê-los às crianças
Que encontrares em cada rua...

sábado, 6 de novembro de 2010

Recordações de Paris


No fim da tarde, os quatro velhinhos gays tomavam chope na mesa do botequim. Olhavam os rapazes que vinham da praia, alguns com pranchas de surfe, e falavam de Paris. Todos conheciam bem a cidade e os lugares que um dia estiveram na moda. Citaram os nomes do La Coupole, Café de Flore, Les Deux Magots, Brasserie Lipp...

Paris já foi a capital gay do mundo mas parece ter sido destronada por Berlim e o Rio de Janeiro tem aparecido como um dos destinos turísticos preferidos por essa comunidade sempre atenta a novidades.

Os quatro velhinhos falavam com nostalgia, suas vozes denotavam o sentimento que acompanha recordações antigas e boas. O que se apóia numa bengala e anda com dificuldade acendeu um cigarro e se dirigiu em voz alta para os outros “nós eramos muito felizes, vocês concordam?”

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Dores de corno


Muito da inspiração do cancioneiro popular vem do sentimento do amor perdido. Traição, ódio, dor, despeito, vingança e culpa misturam-se para produzir belas canções que são a catarse de uma frustração amorosa. Se não existisse o amor perdido, a música popular seria mais pobre em todos os países do mundo.

Sobre o tumultuado amor entre Ava Gardner e Frank Sinatra, já escrevi aqui. As traições dela deram origem a “I’m a fool to want you”, uma obra-prima do sofrimento transformado em canção.

O tango é um gênero que não teria a força que possui se não existisse a melancolia e o desespero dos amores perdidos. Um dos seus maiores cantores, talvez o maior depois de Gardel, foi Julio Sosa. Quando gravou “En esta tarde gris”, de autoria de J. M. Contursi e Marianito Mores, dizem que chorou ao fim da música e disse que jamais seria capaz de repetir aquela interpretação.