quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Escrever

Quem exerce uma atividade criativa, a literatura, por exemplo, é perseguido por um pesadelo: o de secar e não ser capaz de voltar a escrever. Todos os escritores escrevem porque sentem necessidade. Não é para ganhar a vida, mas para dar-lhe um sentido, justificá-la e compreendê-la.

O medo de secar convive com outro que é permanente, a dúvida sobre o que escreve. Será que é bom? Tem alguma qualidade? Mas assim mesmo inseguro o escritor prossegue em seu ofício. É como disse o colombiano Juan Gabriel Vásquez: um verdadeiro escritor seguirá escrevendo apesar da rejeição, da incompreensão, da crítica destrutiva e de qualquer outro obstáculo porque não pode não escrever.


Dizem que Hemingway matou-se ao sentir que não voltaria a escrever, depois do grande esforço para terminar “O Velho e o Mar”, sua obra-prima. Edgar Allan Poe, sem conseguir escrever, consumiu-se na bebida, sobrevivendo dos trocados que ganhava declamando “O Corvo” nas tabernas americanas. São dois, entre tantos, vítimas da maldição do destino que perdeu seu sentido e a razão de ser.

sábado, 27 de dezembro de 2014

Fim do ano

O sol envolve os desatinos do bairro. Parece não se importar com as sementes de violência ampliadas pelo verão. Praia cheia, ruas apinhadas, turistas e pivetes disputam espaços, uns vigiando os outros num país onde se tem medo das crianças.

As estações do metrô desaguam multidões suadas portando cadeiras de praia, pranchas e isopores carregados de cerveja, comida e água. O trânsito confuso antecipa o resto deste verão, os botequins estão ocupados por gente ensopada e barulhenta. À noite, as garotas e garotos de programa encostam-se nos automóveis à espera dos clientes.


Dezembro com seu sol. As altas temperaturas parece que enlouquecem as pessoas, elas começam a esperar o réveillon aglomerando-se na faixa de areia, serpenteiam movimentos. Tudo é motivo de festa e comemoração, mesmo o fim de um ano inútil, violento, trágico, sub-reptício. Não tenho tanta certeza, mas me dá a impressão de que as mulheres estão mais gordas.

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

O gato negro

As crenças medievais e a perseguição religiosa às heresias foram responsáveis por crimes em nome da fé, violência em nome de Deus e desastres provocados pela ignorância e o medo. A caça aos acusados de bruxaria, queimados nas fogueiras da Inquisição, levou ao quase desaparecimento dos gatos nos países europeus, pois acreditava-se que eles eram os animais de estimação das bruxas e por isso deviam também ser mortos.

Ainda hoje há gente que odeia ou tem medo de gatos, um resquício da mentalidade que reinou na Idade Média. A superstição violenta e cega cobrou no entanto seu preço com uma tragédia. A matança dos gatos fez crescer o número de ratos e a peste bubônica se espalhou pelo continente. Chamada de peste negra, matou mais da metade da população da Europa.


O gato negro foi o mais perseguido, torturado e sacrificado. A ignorância associa a cor preta ao mal e à escuridão que assusta. Rituais de magia e religiões primitivas continuam a sacrificar gatos negros nas sextas-feiras sombrias da estupidez humana, incapaz de compreender sua misteriosa beleza.

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

O peru de Natal

Hernán Cortez descobriu o peru nos mercados astecas, durante a impiedosa conquista do México. Levou-o para a Europa, onde substituiu o ganso que era servido à época nos grandes jantares de comemoração. Mas foi a partir da ceia do Dia de Ação de Graças, nos Estados Unidos, que a imponente ave passou a fazer parte do Natal de vários países, entre eles o nosso.

Na origem do hábito de comer peru na ceia de Natal encontra-se o ritual do sacrifício de vidas aos deuses das religiões. A mesa farta do dia 24 de dezembro compensaria também as dificuldades vividas durante o ano.
O sacrifício do peru obedece também a uma espécie de rito. No Brasil, a tradição do interior mandava começar com o ato de lhe dar um gole de cachaça. Poderia, assim, morrer descontraído e mais ou menos feliz, capaz de oferecer uma carne mais tenra.


Doka, meu velho amigo, recebeu da mãe a tarefa de sacrificar o peru na véspera do Natal. Foi para os fundos da casa, armado de uma faca amolada, deu ao peru um gole de cachaça, tomou outro e repetiu o gesto mais algumas vezes. Apareceu depois com o peru ainda vivo nos braços. Informou à mãe e a todos que estavam na sala que aquele ali era seu amigo, bebia em silêncio, bem comportado e não lhe atanazava o juizo. Não merecia morrer.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Sonhos

No meio da noite, a cadelinha emite sons de agonia, acorda e demora algum tempo para voltar a dormir. A gata, em sono profundo, às vezes desperta, pula e abre os olhos como se algo tivesse de repente a ameaçado. Os animais sonham como os humanos? Existe uma área em seu mundo onírico onde a vida continua a assustar com seus fantasmas, íncubos e súcubos da existência adormecida?

Nossa vida não é única, ela muda algumas vezes em fases que permanecem conosco como se fossem vidas passadas. Há coisas que vivemos e que pensamos ter esquecido mas continuam a nos acompanhar. Sem a consciência da razão, certas angústias nos surpreendem, talvez motivadas por atribulados momentos vividos e que continuam a nos atormentar.


Durante o sono, as defesas se recolhem no inconsciente e brumas misteriosas envolvem o horizonte do pensamento adormecido. Retornam imagens da infância perdida, de momentos intensos, vastas emoções, conforme a definição de Freud.  Isto aconteceria também à pequena cadela, à gatinha gentil?  O homem compartilha êxtase, alegria e caos com os bichos que o acompanham?