domingo, 29 de janeiro de 2017

Amanhecer

-->

Às sete da manhã, nesta época do ano, ainda faz escuro no Norte de Portugal. O tempo é frio e chove, às vezes. Ouço o canto das gaivotas do Rio Douro e os pingos de chuva na vidraça da janela acentuam a indecisão da paisagem que ainda se mantem mergulhada na densidade da noite. A gata chamada Preta acompanha meus passos e segue o meu olhar que busca enxergar no espaço escuro ocupado por árvores e construções antigas.

As gaivotas são um dos símbolos do Porto. São aves marinhas mas povoam também o Rio Douro. Dele se alimentam, nele procriam e formam suas colônias. Seu canto estridente soa sempre como um alerta, são mansas e não temem a proximidade humana. Seguem os barcos, povoam as margens do rio.

Enquanto a manhã avança, a aurora começa a aparecer e minuto a minuto ocupa lentamente o espaço da noite. A claridade tímida se embaralha nas nuvens de cinza escuro e há um ritmo próprio do sol que começa a ocupar todos os espaços, ilumina o que ainda restava sombrio, desponta sua luz dourada e começa a mostrar a beleza intensa das águas, dos velhos edifícios e da torre que se pode ver de qualquer ponto de onde se olhe pelos cantos desta cidade.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

Vivências


Quando sonhamos, dá-se o despertar da nossa vida inconsciente. Quando conseguimos nos lembrar do que sonhamos, nem sempre a lembrança é de conteúdo lógico, que possua um desenrolar capaz de ser contado, algo que tenha começo, meio e fim. São sensações, visões e emoções encadeadas que formam estranho painel refletindo essa misteriosa vida que existe por baixo da nossa vida consciente. Não há tempo nem espaço definidos, só vivências interiores, longas e extraordinárias, que podem ocorrer durante o cochilo que dura apenas um segundo, o tempo de um cabecear, mas onde se sucedem experiências que parecem prolongadas num tempo infinito.

Parece que sonhamos durante o sono mais leve, aquele que surge logo que adormecemos e que retorna pouco antes do despertar. Do sonho do sono profundo, nada fica em nossa memória consciente. Mas desconfio que muitas das nossas reações espontâneas, os rápidos reflexos que às vezes possuimos diante da vida, muitas das resoluções que nos ocorrem diante de problemas complicados, são todos construidos pelas vivências que sonhamos, em sua linguagem irracional e fora do mundo lógico.

Penso que se todos os nossos sonhos durante o sono profundo fossem lembrados, seríamos levados a confundir a realidade com o mundo onírico. Não é isto o que ocorre com os loucos?

quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

O amor



Depois de mais uma separação das muitas mulheres que amou, Doka me disse que não precisava dela para ser infeliz. O que não disse foi o que eu já tinha visto mais de uma vez, a profunda tristeza que lhe provocava o fim de cada romance. Ninguém se une a outra pessoa para uma ligação provisória, o amor traz sempre consigo e em suas voltas a aspiração do infinito.

Toda paixão é para sempre, dizia Doka, ninguém se apaixona imaginando o amor com data de vencimento. Mas algo existia que acabava por liquidar os amores eternos e o sentimento profundo voltava ao chão das coisas banais, às vezes se transformava em mágoa e ressentimento.

Divagando, bebendo e expressando seus pensamentos, Doka parecia falar para si mesmo. Acompanhei algumas das suas paixões definitivas. Eu sabia que provavelmente não iriam durar muito tempo, mas Doka se entregava inteira, apaixonada e profundamente. Até descobrir que não precisava de ninguém para ser infeliz.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

Calor



A temperatura alta do verão carioca, a umidade do ar e o sol forte desses dias me fazem lembrar um texto de Borges que fala da humilhação do calor. Acho que é isso: o calor humilha as pessoas, a roupa se cola ao corpo e o suor desce pelo rosto. Você se sente como se carregasse bolas de ferro amarradas aos tornozelos. Todos reclamam do calor, uma mulher se abana de maneira nervosa e um camelô vende leques na calçada.

Uma amiga que nasceu e vive na Europa me disse um dia que a lembrança mais forte dos dias que passou no Rio, durante um mês de fevereiro, era a de uma gota de suor que lhe escorria, permanentemente, espinha abaixo. No calor europeu do mês de junho, não há suor. A baixa umidade do ar provoca um calor seco e sufocante.

O Rio é uma cidade que vive o verão. É quando ela mostra sua face verdadeira, regurgita, festeja e, literalmente, põe o bloco na rua em desfiles carnavalescos que começam desde janeiro. De abril a setembro, a cidade hiberna, esperando estes meses quentes de praias cheias, asfalto amolecido, bares com todas as mesas ocupadas, mulheres seminuas, samba e calor humilhante.

domingo, 1 de janeiro de 2017

Saci



Na Cavalaria me designaram o cavalo 89. Não tinha nome, igual a todos os outros que eram conhecidos assim, por números. Dóceis, aprenderam a andar em fila, era difícil fazê-los se locomover fora dos alinhamentos organizados por um, por dois, por três ou por quatro, a depender da ordem que recebíamos gritada pelos oficiais.

Era um cavalo estúpido sem nome ou personalidade, como todos os outros. Acostumados à disciplina e às esporas, à violência dos cavaleiros que lhes impunham suas vontades. Obedeciam e seguiam aquele que estivesse imediatamente a sua frente. Eram animais escravizados e confinados em baias ou na ordem dos pelotões.

Havia apenas um que não se deixava dominar. E tinha um nome – Saci. Qualquer um de nós que recebesse a ordem de montá-lo sabia que era um castigo. Sofreríamos uma queda – às vezes violenta - que purgaria alguma falta cometida ou a simples antipatia do capitão. Era um cavalo orgulhoso, altivo, voluntarioso, nunca disciplinado. Todos sabíamos que Saci era um modelo, não para os outros cavalos, mas para nós mesmos. Na sua rebeldia ele nos mostrava que era possível desafiar os códigos e que isto sim era um gesto de liberdade.