domingo, 27 de janeiro de 2013

Surtado



Depois de algum tempo em que desfilou de terno branco e gravata, compenetrado e pensativo, Marquinhos surtou. Estava ontem na esquina de Barata Ribeiro com República do Peru. Sujo, barba a fazer, olhos esbugalhados, fones nos ouvidos escutando o rádio mudo que carrega nas mãos.

Tentava organizar o trânsito confuso de Copacabana. Em sua linguagem confusa, xingava motoristas e quem atravessava a rua. Bem de perto do rosto delas, jogou com as duas mãos, ocupadas com o rádio, beijos para as moças fantasiadas que se dirigiam para algum bloco desses que desfilam por toda esta semana. Elas correram assustadas. Quem o conhece do bairro, ria. Os outros mudavam de calçada; alguns, como as duas moças, corriam amedrontados.

Fiz a foto, fui ao bar, pensei como é dificil separar a lucidez da loucura e como uma se confunde com a outra. Marquinhos, louco, expressava seu desejo de ordem para melhorar a vida de todos. Expressava também sua ternura atirando beijos a pessoas desconhecidas e todos procuravam evitá-lo.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Pequeno (novo) poema



Uma criança nos olhava e adormecia


Releio confissões e percorro o labirinto
de um louco despertar do dia.
Os olhos, no entanto, a pressentir a noite,
o entardecer assinalando a madrugada fria.

Lembrávamos desse dia, seus segredos.
Uma mulher acenava na distância,
um lírio crescia em sua boca,
uma criança nos olhava e adormecia.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Bandeira


Comecei a escrever quando era muito jovem e triste e arrogante como são os jovens. Lí um poema de Manuel Bandeira e disse para mim mesmo que aquilo eu também poderia escrever.

O poema dizia

“Quando hoje acordei, ainda fazia escuro
(embora a manhã já estivesse avançada).
Chovia.
Chovia uma triste chuva de resignação
como contraste e consolo ao calor tempestuoso da noite.
Então me levantei,
bebi o café que eu mesmo preparei,
depois me deitei novamente, acendi um cigarro e fiquei pensando...
- Humildemente pensando na vida e nas mulheres que amei.”

Desde aquele dia já escrevi muitos poemas, mas nunca consegui escrever um só que chegasse ao menos perto desse poema que Bandeira dedicou a Jaime Ovalle.

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Considerações sobre o Nada



Não se tem passado quando se é muito jovem. Só com o tempo uma poeira de memórias vai se acumulando e uma visão cada vez mais nítida surge das brumas dos momentos vividos. Cada um desses instantes corresponderia a uma experiência acumulada na nuvem da vida? Este momento determinado já foi mesmo vivido ou só agora é que está a acontecer? E por que vem carregado de recordações?

Algo indefinido nos acompanha de perto, desde tempos sem lembranças, quando olhar o mundo trazia paisagens, cheiros, cores e uma incompreensível e trágica vivência de cada minuto.

Algo de novo sempre se anuncia como se viera trazido pelas águas de um rio  que sofre a influência das marés numa praia estranha. Um espaço assombrado de fantasmas da vida, palco onde eles riem, te observam e te provocam para uma vez mais tentar entender a existência e os mistérios que nela habitam e nunca foram enunciados, muito menos revelados.