quarta-feira, 28 de junho de 2017

Retirantes

                                                                                                                                     Portinari

Deponho aqui com palavras
o pensamento assim cristalizado
entre colunas de ódio, de amor
e sentimentos tortos de abandono.

Sobre ilhas, sobre a multidão
de retirantes que há cem anos
passam em frente a esta casa
e trazem marcas do sertão.

O sertão da Paraíba: fuga
e cansaço entre os arbustos,
areia fina, cactos sangrentos
e sede e fome nauseada.

A cara amarelada dos defuntos,
o deformado corpo das crianças,
o riso desdentado dos doentes,
o opaco olhar de cegos e aleijados.

A vida insistindo longe dos tapetes,
da decorada sala de escritório,
da mesa posta para a ceia
de tâmaras e nozes e maçã assada.

São estes rostos sem boca, olho
e nem toque remoto de esperança
a dizer que as tardes são manhãs
de noites penetradas de agonia.

São ecos impotentes entre o som
das caixas eletrônicas, do ritmo
batido dos surdos, das guitarras
e da voz dos amplificadores.

A encardida, grossa pele
das prostitutas de catorze anos
no trotoir das ruas do Recife,
as suas pernas cobertas de feridas.

Está aqui, no ar das avenidas,
o que restou da dor destas meninas:
o seu sorriso de gengivas podres
pelas calçadas do Capibaribe.


quarta-feira, 14 de junho de 2017

A vida



Um escritor expõe suas entranhas. Procura iludir seus leitores, assume uma postura distante, às vezes cínica, como se não fosse dele o sofrimento, a angústia que desponta na ficção que produz. Flaubert dizia que Madame Bovary era ele próprio. Esta divisão da própria personalidade em tantas vivencias é o que faz de um autor o escravo dos seus próprios fantasmas.

Dos poetas, então, as almas se dilaceram, às vezes. Poe, alcoólatra, viveu os últimos anos a ganhar um pouco de dinheiro para beber recitando O Corvo, seu poema mais célebre, nos botequins de Baltimore. Ginsberg emitiu um lancinante Uivo de angústia existencial, Alvares de Azevedo, tuberculoso, morreu com 21 anos. Maiakovski se matou, assim como seu amigo Essenine.

Doka, que era um bêbado, insistia que toda esta sina tinha raízes no mito da felicidade dos homens. A insistência em ser feliz, contrariando o destino da vida, conduzia à decepção e à própria infelicidade. Ninguém nasceu para ser feliz, ele dizia, pois se contentava em retirar da vida apenas a vida, ela só.