sexta-feira, 28 de março de 2014

Inocência

Numa manhã como esta, há muitos anos, uma criança despertou do sono e olhou para fora de si para ver o mundo. Descobriu o acaso dos insetos, a curta vida que viviam e lhe disseram do perigo que representavam. Muitas doenças eram trazidas por eles. Se um dia a humanidade desaparecesse, lhe disseram, seria por causa das doenças que os insetos espalhavam.

Depois, viu os animais e descobriu que, para haver comida, era preciso matá-los. Todos os animais poderiam se transformar em alimento para o homem, inclusive o próprio homem, pois foi assim quando existiam canibais. Em situações de fome, o homem devora o próprio homem transformando em comida o semelhante.


Descobriu também, isso não precisaram lhe dizer, que a maior ameaça, o que representa maior perigo para a vida humana, é também o próprio homem. Pois a nossa espécie, entre os animais, é a única capaz de matar por qualquer motivo e não apenas para comer, como fazem os bichos. A perversidade, o prazer  com o sofrimento do outro, descobriu também, é um dos privilégios do universo dos homens.

sábado, 22 de março de 2014

Romance urbano

Abrigados da chuva que anuncia a chegada deste outono quente e úmido, o casal dormia debaixo da marquise do prédio. Ambos negros, meio sujos, abraçados. Ele com o braço esquerdo sobre os olhos, ela virada de lado apoiava a cabeça em seu peito e lançava o braço direito sobre o corpo do homem. Ainda havia movimento nas ruas, os automóveis aspergiam gás carbônico sobre a paisagem da Barata Ribeiro.

Meio escuro, o lugar tinha apenas a caixa de papelão desarmada e transformada em dura esteira para os dois amantes jogados à margem da calçada. Passavam por eles os que iam para os apartamentos dos enormes edifícios que compõem a paisagem deste bairro estranho, nesta cidade estranha, onde a solidariedade desaparece no tempo em que nunca existiu.


Era uma improvável cena de amor. Um casal jovem abraçado, dormindo à margem da calçada de uma cidade onde somem os rastros humanos.  Alguém reclamará da presença deles sujos, naquela calçada suja. Amanhã não estarão mais ali, terão ido à procura de outro lugar para dormir até serem mais uma vez expulsos. A cidade não permite amor entre miseráveis.

terça-feira, 18 de março de 2014

Doka

Doka, depois de muita bebida, foi censurado pelo filho e respondeu que o mundo não merece a lucidez. Ele queria dizer que, bêbado, era capaz de enfrentar os conflitos e o absurdo da realidade. E seria capaz de aceitá-la em seus abismos. Doka costumava falar da ilusão do amor e da dificuldade humana em compreender a falência das relações sentimentais.

Ele ia além na sua recusa à lucidez, pois era capaz de justificar o suicídio como forma válida de protesto diante do fracasso da humanidade. E concluía erguendo um brinde à estupidez dos homens.


Doka não morreu de doenças causadas pelo alcoolismo nem chegou ao suicídio como protesto, como fez Mishima, de maneira ritual e espetacular.  Ele simplesmente vestiu o terno branco que sempre usava, beijou a mulher, dirigiu uma piada ao filho, saiu de casa e desapareceu.

sexta-feira, 14 de março de 2014

Memória

Quando revisitamos alguns lugares da infância, eles nos parecem menores, bem mais acanhados do que nossa memória havia registrado.  Reaparecem despidos da majestade que nossa lembrança lhes atribuia. Isso ocorre também com quase tudo que fantasiamos: paisagens, pessoas, incidentes e percalços. Foram menores, na realidade, quase insignificantes diante do que provocaram de medo ou deslumbramento.

No legado da nossa miséria, a bela metáfora de Braz Cubas, segundo Machado de Assis, estão misturados fatos vividos sem a certeza de que foram mesmo daquela forma que ficou presente na memória. Revisitados, reaparecem como lembranças ínfimas.


A memória é a matéria que nos resta dos  conflitos. Traz consigo também a dúvida de se o que foi vivido foi real, reflexo de sonho ou apenas a surpresa de uma criança diante do espanto e das descobertas da vida.

segunda-feira, 10 de março de 2014

Sem horizonte

Nos quadros antigos da cidade, está sempre retratada a presença de alguém a beira-mar, com o olhar perdido sobre o oceano. O Rio é uma urbe marítima e assim foi concebida, mas em algum momento começou a perder sua identidade. Os aterros e construções exóticas afastam cada vez mais o mar e sua brisa.

Vai-se de Copacabana ao centro sem se notar a presença das águas. Uma muralha de quiosques, arenas esportivas, palcos e estranhos alambrados roubam a paisagem que sempre emoldurou a cidade. Aos poucos vão escondendo o horizonte sem fim que outrora trouxe ao homem a sensação de liberdade e o sentimento de um olhar sem limites.


Hoje, a manhã começou disseminando claridade sobre os edifícios, invadindo a copa das árvores plantadas sobre as calçadas. Raros passantes, poucos automóveis, um sorveteiro atravessa a rua e alguns atletas se dirigem à Avenida Atlântica para começarem a correr, caminhar ou apenas para ver o mar. Mas um dia não existirá o mar.

quinta-feira, 6 de março de 2014

Quaresma

O céu cor de chumbo desmente as cores solares esperadas num balneário. Copacabana espreguiça-se depois do agito dos últimos dias, o mar tranquilo exibe ondas com menos de meio metro e os velhinhos começam a sair para as compras, retomam sua rotina. Eles estavam recolhidos, na espera de que os ruidosos foliões lhes devolvessem as calçadas do bairro.

Há uma leve sensação de tristeza no ar, talvez por causa do tempo, das ruas sujas com a greve dos lixeiros e porque vai terminar o verão. Começou também o Tempo da Quaresma e em breve virá o outono, que lembra chuvas e transmite um certo sentimento de solidão.


A Quaresma sucedendo o carnaval, o outono substituindo o verão, esses dias chuvosos e o mar silencioso, tudo para lembrar que dias de euforia precedem dias de depressão. É a lei universal de sístoles, diástoles, caos e harmonia.