domingo, 27 de novembro de 2016

Utopia


Sem a utopia, o que é o homem? Talvez nem o cadáver ambulante que procria, como definiu Fernando Pessoa. Em sua miséria interior, na sua violência animal, desprezo pelos semelhantes, insegurança e atração pelo crime, o bicho humano sonha ao mesmo tempo com a transcendência, a virtude, a justiça e um mundo melhor. Em sua miséria e nas contradições da sua alma sombria, busca desesperadamente a redenção.

Há muito desistimos de um mundo perfeito mas não de sonhá-lo.  Os que ainda não desistiram procuram ecoar alguns valores que precisam ser constantemente veiculados para não se tornarem esquecidos: a tolerância, a busca da verdade, o direito humano ao fracasso, a solidariedade e a justiça.

Testemunhar a ferocidade dos homens leva à desesperança. Há quem desista para se lançar à margem do caminho. Outros, como dizia Paulo Mendes Campos,  resolvem não pensar mais na ferrovia, mas no homem que se consumiu na ferrovia. E concluir que, se multiplicou sua própria dor, multiplicou também sua esperança.

quarta-feira, 23 de novembro de 2016

A partida



A partida


Na terra onde cactos, palmas
e malacacheta brotaram seus espinhos,
foi construído um muro de silêncio
cercado pelo medo e o arrepio
das noites cheias de pressentimento.

Foram anos que formaram décadas,
vertigem de tempo e do refluxo
do ódio derramado pelas ruas,
nas cidades visitadas pela sombra
anunciando a dor dos torturados.

Visitamos com fome estas cidades,
vadeamos com sede os seus rios,
ouvimos o gemido e a gritaria
pelas suas largas avenidas,
vimos o sangue sobre a alvenaria.

Além das cercas de arame, o querosene
usado nas feridas do rebanho
provocava o ar e o cheiro
de um tempo tecido em pesadelo
e na humilhação dos oprimidos.

Um tempo descrito nos contornos
da escuridão dos cegos,
na contemplação dos velhos,
no andar dos aleijados
e no murmurar dos condenados.

Havia um sinal marcando o rumo
da nossa leva de emigrantes,
que não sabia para onde ir.
O orgasmo doía nas entranhas
e também o ato de existir.


sexta-feira, 18 de novembro de 2016

O morro


Do branco areal do século XIX sobrou uma praia em forma de tripa que já não é tão branca. Cercada de morros, Copacabana abriga as contradições de um país contraditório. Na Avenida Atlântica, os ricos escutam o barulho do mar enquanto os pobres se espremem nas favelas dos morros dos Cabritos, São João e Santa Marta, os que se avistam daqui de onde estou, no Morro do Inhangá.

Este morro tinha antes uma enorme pedreira que foi demolida para abrir a Nossa Senhora de Copacabana e construirem o Edifício Chopin, ao lado do Copacabana Palace. O morro permanece, escondido por uma cerca de edifícios.

Dizem que a palavra Inganhá vem do tupi-guarani Anhangá e significa espírito ruim. Era em cima daquela pedreira que os raios caiam durante as tempestades.


domingo, 13 de novembro de 2016

Sobre astros



Sombras esquisitas, sons disformes, figuras estranhas numa noite como todas as outras mas contudo diferente. Há uma super lua nos céu com aparência de estrela morta há milênios, antes mesmo de se formar a via láctea onde nasceram os planetas sem luz. Corpos celestes escuros onde a vida depende do calor de fontes que deixaram há muito de existir.

Os viventes aspiram o ar viciado da noite com a respiração silenciosa dos enfermos. Há um tédio enorme em todas as manifestações da vida e este silêncio vem acompanhado da fúria que as nuvens escuras anunciam. Animais se movimentam, homens se protegem, a noite em que dormem os pesadelos mais uma vez se estende sobre o dia.


Qual a origem dessas sombras, a criança pergunta a si mesma em pensamentos inquietos e lança o olhar sobre a planície dos sonhos, onde o vento sempre antecede as tempestades. Neste silêncio ouve-se o roçar das esferas que habitam o espaço infinito. Os bichos escondem-se nas mesmas nuvens que cobrem os corpos inermes atormentados pela fúria da noite, prenúncio sombrio do inesperado choque das manhãs.

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

O inferno



José dizia que o inferno existe, sim. Ele não está nos outros, como pensava Sartre. Está dentro da alma humana que nele mergulha pelo sentimento de culpa, o sofrimento que não passa. Torna-se perene, atravessa todos os sentidos, bloqueia os sentimentos e nem o amor é capaz de o redimir. Às vezes conduz ao suicídio.

A Igreja católica criou o sacramento da confissão por considerar que, ao reconhecer a culpa e pagar leve penitência, o crente sentiria alívio pela absolvição em nome de Deus. No entanto, dizia José, o sentimento de culpa continuará no coração das almas condenadas. Não será esquecido.

Sofrimento, tristeza e pensamentos sombrios são a definição do inferno das almas pela culpa às vezes inconsciente. O arrependimento é apenas mais uma forma da punição que só não vai durar pela eternidade porque oferece a libertação pela morte. Dizia José.

sábado, 5 de novembro de 2016

O cão amarelo



À noite, o cão amarelo está sempre na companhia de um morador de rua velho e silencioso. Durante o dia costuma andar sozinho pelas ruas de Copacabana. No fim da tarde encontra-se com seu companheiro, o velho, e ambos se abrigam para dormir sobre caixas de papelão desmontadas, debaixo da marquise de um edifício de esquina na Rua Barata Ribeiro.

O velho tem uma carroça carregada de sacos, embalagens usadas, panos velhos, latas, caixas vazias. Ele e o cão vivem segundo um acordo nunca discutido em que um cuida do outro. O cão precisa da companhia de quem o proteja como se fosse seu dono e o mendigo precisa do cão para velar seu sono numa rua cheia de ameaças, onde moradores de rua já foram queimados durante a madrugada, enquanto dormiam.

O cão tem aparência bem tratada, pelo brilhante, e afasta-se do homem nas primeiras horas da manhã. Anda pelas calçadas com a determinação de quem vai a algum lugar. Desvia-se dos transeuntes, espera abrir o sinal para pedestres e atravessa a rua no seu andar ritmado e constante. De noite, eles tornam a se encontrar e juntos se recolhem a seu canto habitual, debaixo da marquise da loja de colchões.

terça-feira, 1 de novembro de 2016

Desafios



O homem, dizia Doka, só se revela diante da derrota. Os vencedores deixam-se dominar pelo delírio e sentem-se como escolhidos pelas divindades. Afastam-se de si mesmos, ao contrário daqueles que conhecem a realidade e seus caminhos sem retorno. Os que se sentem vencedores esquecem-se de que a vida é uma guerra sem fim. Há momentos em que assume aparência de vitória, em outros conduz ao espelho que reflete apenas os conflitos e as esperanças perdidas.

Dizia ele, Doka, que às vezes levantava-se com o sentimento otimista dos que ganharam a luta contra os desafios da vida. Mas em outros momentos não conseguia libertar-se do sentimento trágico que afinal acompanha todos os viventes. O sentimento de desesperança que antecede o mergulho dos afogados. E citava um texto de Hemingway que ele próprio traduzira:

“Aos que trazem muita coragem a este mundo, o mundo quebra a cada um deles e alguns ficam mais fortes nos lugares quebrados. Mas aos que não se deixam quebrar, o mundo os mata. Mata os muito bons, os muito meigos, os muito bravos – indiferentemente. Se você não é um deles, fique certo de que o mundo também vai lhe matar, mas sem nenhuma pressa especial.”