quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Fim de ano


Pássaros cegos ensaiam voos num firmamento carregado de nuvens de chumbo. São bandos sem rumo, enquanto multidões de fugitivos buscam abrigo em crateras abertas por bombas incendiárias. Sons enlouquecidos se cruzam no ar de chuva fina que assinala o intenso frio no rosto das crianças, entorpece o andar dos velhos, agudiza o desespero crescente no íntimo das mulheres.

Imagens se retorcem na paisagem em que um fantasma busca refugio nas sombras e um grito se abriga na garganta de um menino. Uma brisa doentia sopra sobre os corpos, uma gota qualquer de orvalho antigo desperta nuances esquecidas. Algo que procura existir se enlaça no pensamento, na arte dos muros, nas imagens lançadas no ar.


A fascinação se enlaça com as árvores do deserto, o vento simboliza sensações perdidas e a beleza se transforma na vítima do tempo. Nada encontra seu retorno nas encruzilhadas que, em labirinto, abrem-se em outros caminhos que se perdem nos horizontes de sombra. O tempo se encerra e se inicia, os verões encontram seu caminho e uma criança uma vez mais se lança no desconhecido.

domingo, 27 de dezembro de 2015

Inverno


O sol iluminado substitui a atmosfera sombria dos invernos passados. Não há sinal de neve neste canto da França que costumava se vestir de branco nas cercanias do Natal e do Ano Novo. As pessoas falam do aquecimento da Terra embora o frio de oito graus em Cahors não se compare ao calor do Rio, próximo dos 40 graus que são tradicionais nestes meses do nosso verão.

Por todo o canto se fala das mudanças no clima. E há medo de que o planeta se torne difícil de habitar. A consciência ambiental e alguma histeria constroem o temor que em algum momento ficará próximo do pânico. Os governos têm um discurso pronto sobre o clima mas os países se recusam a enfrentar o problema. Não imaginariam mudar o seu padrão de consumo.


Os resorts de inverno estão no prejuízo. Faltou neve para os esquiadores. Os produtores de vinho alertam para as alterações do clima que afetam a qualidade da safra. Os poucos moradores de rua de Cahors já viveram dias piores em outros invernos. No momento, está dando para suportar. As crianças reclamam porque este ano não se montou o ringue de patinação no gelo. O leve calor trazido pelo sol de inverno é festejado por quem se lembra dos dias impiedosos. Estaríamos todos dançando à beira do precipício?

quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Viagem


Uma criança de colo chora seu pranto intermitente. Ela está com medo, o barulho dos motores a assusta, está impaciente e não consegue dormir, igual a muitos outros passageiros do avião. Alguns passeiam pelos corredores, almas semoventes, procuram aliviar as dores nas pernas ou apenas passar o tempo interminável do voo de onze horas até Paris. Logo em seguida embarcar noutro avião para Toulouse, onde dormirei para depois pegar a estrada que me levará a Cahors.

Toulouse, antiga capital do reino visigodo, é uma cidade habitada por muitos jovens porque lá se encontra uma das mais antigas universidades da Europa. Exibe a descontração da juventude. Em sua bela Praça do Capitólio encontro uma animada feira natalina, exuberante e alegre, desmentindo o que se poderia esperar num país que se encontra de luto pela violência cometida em sua capital contra tantas vítimas inocentes.


Cahors é finalmente avistada, enlaçada numa quase ilha formada pelo rio Lot. Penso em como é longa a viagem até aqui. Quase vinte e quatro horas desde o embarque no Galeão. Revejo as velhas ruas da cidade antiga e os bares tranquilos onde vou beber e fechar este ano trágico e cheio de sangue que será lembrado pela morte de tantos amigos e do meu irmão. Não é verdade o que se diz. A vida não vai continuar como antes. Cada ano que passa fica em nossa memória arrastando consigo os fantasmas das suas perdas.

domingo, 20 de dezembro de 2015

Entreato



Há muitos e muitos anos,
quando nos encontramos numa rua do Recife,
viela de paralelepípedos irregulares,
estávamos lendo Folhas de Relva,
dissemos que a tradução de um poema
mantinha a vida um pouco mais serena.

Dezoito anos de vida nos pesavam,
naquela estreita rua do Recife.
As prostitutas jovens nos amavam,
a elas pretendíamos
dedicar poemas que transcenderiam
as suas e as nossas existências.

Éramos poetas, buscávamos palavras,
tínhamos ódio dos adjetivos,
tentamos dizer que a mudez é um poema,
o silêncio calmo,o mergulho uma serpente.
O mundo era um teatro, a nós cabia
representar o belo, se existisse.   

Refizemos palavras, entendemos que o sentido
das coisas é mutável; o ser, apenas existir
e permanecer no âmago da chuva
é receber no rosto a tempestade.
Compreendemos a força dos sentidos
que o amor traz consigo em suas voltas.

Nada nos confundia, no Recife,
pois aprendêramos a amar as despedidas.
Os poetas que líamos, Dylan, Whitman,
Calderón, Pessoa, Valery e Augusto dos Anjos,
todos nos dizendo que a paixão nos perseguia,
a memória não existia.

Quem soube do amor, naquele tempo?
Odiávamos os adjetivos, o poema
seria silente e seco, duro como um grito
solto na madrugada,
arrebentado pela fome dos aflitos.
Estávamos cansados, mirando a madrugada.

Cansados como hoje,

nesta manhã
quando senti que tua morte interrompeu
o que deveria ser e  não foi,
não mais será porque jamais te disse:
o poema é um fruto podre da existência.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Rastros


A vida não possui um roteiro. Sem plano traçado, nela tudo pode acontecer. Mesmo as mentes fanaticamente disciplinadas, que planejam tudo e procuram antecipar todas as ações e reações diante do mundo são surpreendidas pelo acaso. O caos é o estado do mundo e há mais certeza num lance de dados do que na vida imaginada. O próprio universo confunde-se com o indecifrável destino de todas as coisas. Há mistério nos astros, nas plantas e no pensamento dos homens.

A busca desesperada pelo conhecimento distanciou a espécie humana dos outros animais e aprimorou sua inteligência. No vértice da pirâmide do mundo e do entrelaçar das múltiplas existências da Terra, os homens descortinaram seus limites e neles enxergaram o infinito; experimentaram a morte e inventaram a eternidade. Condenados ao pecado, construíram o perfil dos santos; ignorando o próprio destino, acreditaram na certeza vendida pelos demiurgos.


A consciência transformou-se em loucura, todos os momentos de um tempo imaginário transformaram-se e confundiram-se em trevas e claridade. Há uma luz negra que perturba as consciências enquanto toca uma música estranha e os fantasmas ensaiam a sua dança. Os profetas anunciam o fim de tudo mas as plantas brotam, as crianças nascem, os bichos correm, subitamente param e lambem as suas crias.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Trevas


Aos poucos os refugiados são esquecidos pela mídia. Os jornais se cansam das notícias e as abandonam enquanto as multidões sem abrigo são jogadas ao relento do frio inverno europeu. Deixam a sala de espetáculos em que foram exibidas. É assim como sempre foi, a comoção encontra o seu limite na mesa do jantar e os homens se cansam das emoções solidárias. Não se vê mais crianças mortas na tela e esquecemos que elas continuam a morrer durante o longo trajeto para onde são rejeitadas.

É no entanto contínuo o noticiário dos dias com suas balas perdidas no ar e o massacre dos inocentes nos subúrbios da cidade. As cidades fracassaram, os ajuntamentos humanos exibem suas tragédias nas calçadas, a rua é um desfilar sinistro em seus disfarces. 

Este ano que vai se arrastando ainda não se cansou dos matizes da miséria humana. Faltam poucos dias para a festiva comemoração do reveillon mas dois mil e quinze ainda não terminou. Outras crianças serão assassinadas até o último dia de dezembro, outros crimes estamparão o noticiário, estupefação, violência e o caos que sobrevive na ceva das cidades. O pranto de mães, esposas e maridos pelos que morreram aparecerá em close na TV. Durante a descida ao inferno, há quem vire o rosto para não encarar o horror e desviar os olhos dos olhos de Satanás.


domingo, 6 de dezembro de 2015

Uma aventura


Taylor pensa que sua tentativa de explorar um bar em Ryad, na Arabia Saudita, poderia ter sido um negócio rentável mas diz que antes de tudo foi um gesto de rebeldia e afirmação de liberdade diante dos preconceitos de um país reacionário. Acredita que seu comércio clandestino daria certo se permanecesse nas sombras, os riscos seriam contornados pela fidelidade dos clientes. Foi um deles que lhe advertiu da sua prisão iminente pela polícia religiosa. Teria sido condenado a milhares de chibatadas, se escapasse a uma sentença de morte.

Sua fuga no meio da noite em direção a Saná, no Iêmen, de onde atravessou para Djibouti e de lá para o Mediterrâneo pelo Canal de Suez, foi uma saga de milhares de quilômetros acidentados. Disse que um dia me contaria em detalhes. Tinha muito pouco dinheiro e para atravessar a fronteira contou com a ajuda de alguns iemenitas que se dedicavam profissionalmente ao contrabando. Fez amigos no grupo e prometeu que voltaria para pagar pelo transporte e proteção que recebeu. Não sei se voltou.


Ele procura sempre um sentido maior para o que faz e suas excentricidades lhe parecem simbolizar uma desafiadora viagem pela vida, uma provação que vai aos limites do entendimento, recusando-se a aceitar a mediocridade e o pouco valor que se possa encontrar na existência humana. Diante da minha pergunta se isto realmente valeria a pena, respondeu com o enigma de que nada, rigorosamente nada tem sentido diante de qualquer pergunta, a não ser aquelas que já trazem consigo sua inútil resposta.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Ruídos


A esperança perecera e nada havia no horizonte
a não ser bruma e lodo, estilhaços perdidos
em paisagens espremidas entre os muros.
Alucinações decalcadas de frutos
perseguiam rastros de pardais,
pássaros urbanos sobrevoando os monturos.

Cedo nos despimos de nossa nostalgia
e o tédio de existir nos relembrava
a sede, mais que fome; o ódio, mais que espera.
Guardei no pensamento uma palavra
que nada nos dizia e sempre a repetia
como um carrossel girando em rolamentos.

As palavras são ruídos, com pedras atiradas
que se chocam e sons que se propagam
no âmbito de quadros carentes de harmonia.
Misturam-se com as cores desenhadas
no caos de tons noturnos, na configuração

dos espaços violentamente limitados.