quinta-feira, 31 de outubro de 2013

A dúvida moral

Aos trancos morais, a humanidade caminha numa direção qualquer que ignoramos mas dificilmente vai ao encontro da entidade divina imaginada pelas religiões. Os deuses pagãos talvez representassem melhor a vocação humana ao vício, ao pecado, à violência e à iniquidade.

As dissertações bem intencionadas são desmentidas pela prática da vida e o mal tem prevalecido sobre o sonho das utopias humanas.


O sucesso do crime, a tortura como política de Estado, drones assassinos, crimes hediondos e diários, a pobreza e a criminosa miséria das populações vizinhas da opulência, máquinas de guerra destruindo e desorganizando nações, são todos sintomas da doença humana. Nada nos anima a acreditar no destino dos homens em busca da perfeição.

sábado, 26 de outubro de 2013

O ditador

No restaurante do Hotel Ouro Verde, em outra mesa, à minha frente, o general estava comendo. Um dos ex-ditadores. Sua companhia era um empresário poderoso, que eu conhecia por fotos de jornais. Conversavam. Eu encarava o general, por curiosidade e porque era a primeira vez em que eu me encontrava, face a face, com uma personagem tão importante da ditadura que colocara o Brasil de joelhos.

Foram anos sombrios de amigos presos, outros exilados, notícias de tortura, morte e desaparecimentos. Eu pensava nisso enquanto olhava o general e de repente ele me encarou de volta, franziu as sobrancelhas e desviou o olhar.


Algo acontecera ali, naquele instante. Percebi a preocupação no rosto do general, que a cada momento tornava a me olhar, me vigiar. E desviava os olhos. Ele estava com medo. Um desconhecido o observava num restaurante, com um tipo de curiosidade que ele julgava ameaçadora. E por isso teve medo. Chamei o garçon, paguei a conta e mergulhei no anonimato da rua. O medo é uma síndrome que pode atacar de repente o mais cruel e poderoso dos homens.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

O Araguaia

Os molinetes eram preparados antes de o sol nascer e às quatro horas da manhã já estávamos a postos no Xavantino, o generoso afluente do grande rio. O cacique José Miguel, da tribo Tapirapé, nos acompanhava mas preferia ficar em cima de uma pedra e pescar com arco e flecha. Com admirável precisão, raramente perdia um lance.

Nós também, embarcados, depois de alguns arremessos de treino, costumávamos acertar os tucunarés na sua hora de pasto, quando a aurora começava. Às dez da manhã, o sol já estava forte e abríamos as primeiras latas de cerveja. Ao meio dia, aportávamos na sombra e assávamos alguns peixes para o almoço. Só poderíamos voltar a pescar no fim da tarde porque o sol era forte e o calor imenso.


O Araguaia é um rio de paisagens belíssimas. Seu nome significa Rio das Araras Vermelhas, na lingua tupi. Nasce na divisa de Goiás e Mato Grosso e no Pará encontra-se com o Tocantins. Tem sofrido com a ocupação desordenada e com a Hidrelétrica de Tucuruí, que impede a desova dos peixes. Mas havia peixes, havia manhãs naquele tempo.

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

A fila

A notícia da morte de um amigo – mais um – traz de volta pensamentos sombrios sobre a fugacidade do tempo e da existência humana e a noção de que a fila andou. Posso ser o próximo, talvez existam outros na minha frente, mas é certo que vamos ficando cada vez mais sós.

Amor e morte. São estes os grandes temas da vida, da arte e dos sentimentos humanos. Um se entrelaça no outro para que surjam os fios de esperança que mantêm nossa ligação com o mundo diante da constante e ameaçadora presença da finitude. O homem é um animal triste por ser o único com a certeza do próprio fim.


Toda vida, ao final, é um fracasso, disse Miguel de Unamuno no soneto célebre e só o sonho acalenta a vida. Machado de Assis pensava que era a glória mas nem sonhos nem a glória explicam e muito menos compensam o melancólico e trágico destino de todos os homens.

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

No bar

No bar ao lado do mercado, na pequena cidade francesa, um casal está sentado a uma mesa, ela bebe vinho rosé, ele cerveja. É o princípio do outono, as folhas dos plátanos estão amarelecidas e já começaram a cair. Ambos passaram um pouco da meia idade, ele usa um pequeno brinco na orelha esquerda, ela não consegue disfarçar a dentadura e tem os cabelos desarrumados.

Ele acaricia as suas mãos e depois, com surpreendente agilidade, tira papel e fumo do bolso da camisa e faz um cigarro, como se fazia antigamente. Tem um nariz grande e vermelho, é magro e inquieto, bebe sem parar. Ela olha para ele apaixonadamente.

A tarde tem um tom cinzento, há pouca gente na rua. Os bandos de estorninhos negros e barulhentos já começaram a chegar e procuram entre as folhas das árvores um lugar para passar a noite. O bar está quase vazio, a mulher continua a olhar para o homem e de súbito começa a chorar discretamente, um choro constrangido, como se não quisesse chorar mas não podia evitar.


sábado, 12 de outubro de 2013

Galeão

Uma multidão de aflitos e mal dormidos cerca a esteira de bagagens na madrugada do Galeão. Alguns vão muito esperar pela mala perdida. É difícil não comparar a desorganização do nosso aeroporto com o funcionamento adequado de outros pelas cidades do mundo.

Tenho para mim que se trata de uma estratégia usada no processo de privatização dos serviços públicos. Primeiro, deixa-se que se deteriorem até que sejam despertadas a impaciência e a ira dos usuários. A privatização surge como solução para todos os problemas. Lembro-me do processo por que passaram as empresas de telecomunicações. Hoje, pagamos as tarifas mais caras do mundo e o serviço é alvo de queixas intermináveis.


Assim também ocorre com as empresas públicas. Passam por planejado processo de desmoralização, algumas chegam a apresentar prejuizos reais ou imaginários. E depois são vendidas a preço de ocasião.