sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

A festa

Um céu leitoso reverbera a notícia do calor que vai emoldurar os dias de carnaval. Parece que estão previstas algumas chuvas, poucas, mas os serviços de meteorologia não merecem crédito no Hemisfério Sul. O tempo aqui muda sem aviso prévio e os cientistas perdem a confiança nos sinais que a atmosfera lhes envia.

A esquizofrenia do bairro parece entrar em surto, nesses dias. Às vezes vem a impressão de que as ruas começaram a se esvaziar no êxodo dos feriados mas os engarrafamentos trazem um desmentido no momento seguinte. Os turistas louros e vermelhos de sol, inquietas andorinhas do verão, já ocupam as calçadas e os  quiosques da praia.


Instalaram os banheiros químicos e as grades de proteção nos mirrados jardins das praças contra a animação destruidora dos blocos. Marquinhos, o louco, fazia hoje um discurso diante da porta de um dos banheiros desocupados. Parecia furioso, talvez por se lembrar de como foi no ano passado, quando um terrível fedor das profundezas invadiu Copacabana a partir do sábado de carnaval.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Vigiados

Estamos sob vigilância e nenhum dos nossos gestos e ações passarão despercebidos pelo olho que tudo vê. São câmeras escondidas, vigias e seguranças nas ruas, lojas e prédios da cidade. A vida perde sua singularidade  e recato e se transforma no objeto em que tudo é revelado.

O anonimato permitido pela grande cidade, em que vivem e transitam multidões sem rosto, cedeu lugar a uma rede de imagens armazenadas sobre os movimentos de cada um. A comunicação entre as pessoas passa por controle de um interesse difuso na internet, no telefone ou na conversa das esquinas.


A própria escuridão onde se escondiam os fugitivos foi desvendada pelos instrumentos de visão noturna. Nenhum disfarce é capaz de proteger as sombras e o homem pós-moderno sente-se incapaz de se refugiar em sua própria solidão.

sábado, 22 de fevereiro de 2014

Evoé, Baco!


 A volta do calor torna a despir as mulheres no bairro e triplica a venda de cerveja. Há um tumulto sob controle nas ruas e  a chegada do carnaval excita o pessoal. Amplia a atmosfera de verão numa cidade que se promoveu internacionalmente sob o slogan “sex, sun and sea”, os três elementos que mais comovem o viajante que vem do frio.

Os blocos começam a se mover pela cidade. Eles se chamam Geriatria e Pediatria, Perna de cobra, Vem ni mim que sou facinha, Suvaco do Cristo, Xupa mas não baba, Imprensa que eu gamo, Mulheres de Chico, Se não quer me dar…me empresta, Cutucano atrás, Se me der eu como.


Vão desfilar também Rola preguiçosa, Que merda é essa?, Spanta neném, Berro da viuva, Eu sou eu e jacaré é bicho d’água, Bengalafumenga, Nem muda nem sai de cima, Gargalhada e do babaçu abunda e cerveja também, Bafo da onça, Bloco dos cachaças, Bagunça meu coreto, Meu bem volto já, Concentra mas não sai, Empurra que pega, Barangal, Senta que eu empurro e Vai tomar no Grajaú.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Madrugada

Andar, passear nas ruas de madrugada, quando diminuem os barulhos e as sombras dramatizam os recantos mal iluminados. Quase todos os botequins estão fechados, um ou outro ainda se destaca pela luz que jorra da porta escancarada. O Cervantes, na Prado Junior, lava o chão para encerrar às quatro horas em ponto o expediente do dia. Um único cliente está encostado no balcão diante de um copo de chope.

A praia está deserta, dá para enxergar aqui e ali, protegidos pelo calçadão, alguns moradores de rua que dormem na areia. Pequenos bandos de  crianças que se recolheram aguardando o dia seguinte. Com o retorno do sol, voltarão ao arriscado trabalho de assaltar os turistas.


As prostitutas quase todas já encerraram a faina da noite. Apenas uma negra, de saia muito curta e muito justa, acena para os carros e exibe o corpo bem torneado. Uma névoa se adensa pela praia, Copacabana exibe um ar de quietude, de distância e de erma solidão. O som das ondas de vez em quando quebra o silêncio, um vira-lata amarelo atravessa com tranquilidade a Avenida Atlântica e vai se aninhar debaixo de um banco. Tenho a impressão de que já o vi antes, na companhia de um mendigo velho e magro que anda desaparecido das ruas.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Jogadores

Loteria, Van Gogh, 1882

Quanto mais alto o prêmio acumulado, maiores são as filas pelas calçadas em frente às lojas da loteria. São os velhos e a gente pobre de Copacabana tentando a sorte duas vezes por semana. E há  também as lojas do Joquei, onde se assiste pela tv e se aposta nos páreos que poderão trazer o instante de alegria.

Jogar é viver decepções alimentadas de sonho. Milhares contribuem para o gozo de poucos, às vezes de um único vencedor que recebe o brinde do acaso. Alguns procuram descobrir leis que regem as incertezas e desenvolvem teorias e crenças  que compõem a complexa psicologia do jogador.


As apostas representam esperança no destino. Diante das inúmeras casas de jogo, as filas crescem sob o sol destes dias de grande calor, na crença de que a felicidade é possível. Pode estar oculta nas bolinhas do sorteio, nas patas de um cavalo ou no talão do bicho do cambista perseguido pela polícia e que está sempre sentado à porta do botequim.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Cordel

Exímios versejadores, os poetas do cordel improvisam a descrição de um mundo particular. Como dizem os argentinos sobre o tango, se algo existe que os poetas do cordel não cantaram é porque não existe. Herdeiros de uma tradição que vem do fim da Idade Média, os cantadores passaram por Portugal mas foi no Nordeste brasileiro que desenvolveram seu talento, encontraram seus temas e consagraram a  poesia do povo.

Os poetas eruditos não conseguem viver do que escrevem, mas os poetas populares do cordel, como Leandro Gomes de Barros e João Martins de Ataíde, sobreviveram do que produziram e divulgaram.

Os versos possuem regras rígidas a obedecer. Entre os vários estilos, o mais difícil, a meu ver, é o “galope a beira mar”. Tem onze sílabas e um ritmo de galope que desafia a criatividade do poeta. A estrofe tem de terminar dizendo “na beira do mar”.

Dois exemplos:
Cantor do lamento da água da fonte
que desce ao açude e lá fica a teimar
com o sol e com o vento, até se finar
no último adejo da asa sedenta,
que busca salvar-se da morte e inventa
cantigas de adeuses na beira do mar.

                        Eu quero nos mares viver e sonhar...
                        Bonitas sereias desejo pescar,
                        Trazê-las na mão pra Raimundo Rolim,
                        Pra mim e pra ele, pra ele e pra mim,
                        Cantando galope na beira do mar.

(José Alves Sobrinho)