quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Augusto


“Falas de amor, e eu ouço tudo e calo! 
O amor da Humanidade é uma mentira. 
É. E é por isso que na minha lira 
De amores fúteis poucas vezes falo.”

Quando Augusto dos Anjos escreveu estes versos, o mundo da literatura estava nas mãos dos poetas simbolistas e dos parnasianos, liderados por Olavo Bilac, eleito então o príncipe dos poetas. A inspiração da poesia pertencia às estrelas ou aos salões da alta sociedade. “Eu e outras poesias”, de Augusto, publicado em 1912, foi ignorado e sobre ele recaiu o silêncio.

Recebeu avaliações negativas dos críticos que lhe dedicaram um mínimo de atenção e dos outros poetas que só entendiam o poema como canto de amor e de amizade. Quando disse que o amor é uma mentira, Augusto quebrou os vitrais da catedral onde a poesia era definida como “o sorriso da sociedade”.

Augusto dos Anjos e sua poesia sairam do esquecimento pela consagração do povo e não pelo “establishment” literário. Foram as pessoas comuns, impressionadas com o poder das palavras, recriadas por um poeta diferente de todos os outros, que o consagraram e que ainda hoje se espantam com versos como estes:

“Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.”



sábado, 24 de janeiro de 2015

Um traço desenhado pelo vento

  
Deita o dia e a escuridão
define a silhueta de um retângulo.
Meninos assombrados investigam
as bordas do sono.

Tecido na vertigem,
o espaço dos bordados aparece
enquanto insetos se movem 
e o quarto absorve os movimentos. 

O relógio estende o próprio tempo
e revela seu segredo,
mastiga os minutos em silêncio
e acompanha o ressonar da noite.

O afogado respira, move-se no ar,
os gestos aproximam-se de um rosto
e a escuridão marca o ritmo da fala,
cerra seus olhos e toca sua boca.

Os meninos andam sobre as cores
que tingem o caminho das águas
e lambem as gotas de orvalho
represadas nas pétalas de um lírio.

Relêem confissões, a tempestade
os adormece, eles percorrem labirintos
enquanto assistem ao despertar do dia

num traço desenhado pelo vento.

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Janeiro

O sol tem nascido coberto por nuvens avermelhadas. Por volta das oito já se encontra a pino e se vê gente coberta de suor nas ruas. Ao meio dia, neste horário de verão, há uma expressão de angústia impaciente nos rostos de quem foi obrigado a sair de casa. Há também os que amam as altas temperaturas e vão com alegria se enturmar na praia cheia.

Os turistas suados, com a pele em tonalidades de vermelho e resquícios de branco, caminham em pequenos grupos na direção da Avenida Atlântica. São como andorinhas em todos os verões mas nesses últimos dias refletem um certo sofrimento de quem procura respirar e só o faz pela metade.


As pessoas reclamam, afirmam que nunca fez tanto calor na cidade. Esqueceram do verão passado e de todos os verões que castigaram, exauriram, desidrataram. As mulheres andam seminuas, os homens tiram a camisa e, de bermudas, andam meio curvados pelas calçadas quentes. Marquinhos, o maluco da vizinhança, passou apressado vestido em seu velho paletó, uma camisa suja e um cachecol de lã no pescoço. Cantava uma marchinha de carnaval cuja letra começa com “alá-la-ô-ôoô-ôoô...

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

A vida

O instinto vital e o de sobrevivência estão na origem do valor que atribuímos à vida. Pois não há nada senão a vida. Sentimos desde muito cedo que este é o valor supremo, por isso damos tanta importância à saúde do corpo e da mente. É o que  garante a possibilidade de ser. O contrário seria o nada absoluto.

Temos a intuição do ser porque a nossa ligação com a vida nos dá a compreensão do que somos, do que nos cerca, da fruição do prazer e da experiência da dor. Os suicidas, em sua rejeição do ato de existir, revelam tristeza tão profunda, tanto sofrimento da alma que são capazes de preferir o nada, algo que temos dificuldade em compreender. O que seria o nada?


O choque que experimentamos diante da violência extrema é a medida do valor que damos à vida. A morte dos inocentes, a decapitação, o estrangulamento, a crucificação de que temos notícia significam o horror porque são a negação de tudo. Não há possibilidade de nenhum valor se afirmar perante a obscenidade do homicídio.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Um velho e sua planta

Num pequeno apartamento do prédio em frente, mora um velho. Vive sozinho, como tantos velhos em Copacabana. Sai pouco de casa e às vezes cruzo com ele na rua carregando uma sacola de supermercado. Acho que é seu único motivo de caminhar pelas difíceis calçadas do bairro.

Prefere ficar em seu pequeno espaço dotado de uma varanda que é também muito pequena. Com ele vive uma planta exuberante de pequenas folhas verdes que brilham no bater do sol. De onde estou não consigo identifica-la. Talvez seja uma pitangueira, árvore que cresce e se dá bem nas proximidades do mar. Ela está num vaso de barro que ocupa metade da varanda. Todas as manhãs o velho cuida da planta, dá-lhe água, verifica as folhas e retira as que estão secas. Olha para ela, contemplativo, grande parte do dia.


Na noite do Ano Novo, quando a loucura toma conta do bairro, o velho estava de pé, pois não adiantaria tentar dormir diante da proximidade dos fogos da meia-noite. O calor era intenso, na temperatura em que estamos vivendo por esses dias. Na varanda, o velho sorria distraidamente e parecia dizer alguma coisa enquanto aspergia água nas folhas da sua planta, que de longe parece uma pitangueira.