segunda-feira, 28 de março de 2016

Outono



 
O outono ainda não disse a que veio mas o calor deixou de ser tão agressivo e humilhante. Copacabana logo começará a hibernar até que novos turistas, como um bando de andorinhas, comecem a chegar anunciando o próximo verão. O bairro vive com intensidade as estações mais quentes, quando regurgita e se agita com as multidões em busca do mar e de algum tempo de prazer.
Na expectativa das Olimpíadas, ainda se respira certa tranquilidade. Os botequins enchem-se nos fins de semana mas não se vê o azáfama constante, as enormes mulheres seminuas de nádegas imensas, as lindas adolescentes que desfilam na volta da praia. Estrangeiros louros ainda passam de mãos entrelaçadas com suas namoradas negras, romances que os surpreenderam na viagem em um país dificil de compreender.
Marquinhos, o maluco da vizinhança, passou ouvindo seu rádio que não toca nada. Dirigia-se com pressa a lugar nenhum, olhava fixamente o horizonte, ignorava quem passava a seu lado. Sente como todos que uma vez mais Copacabana inicia o recomeço do seu eterno ciclo de cada ano. Com seus contrastes, contradições e a violência saturada de ódio contaminando o ar.

quinta-feira, 24 de março de 2016

os rostos





as faces na multidão se dissolvem
são emoções intangíveis

os corpos se misturam
as calçadas exalam passos e odores
e ruídos e calor
tudo perpassa a escuridão dos tempos

as crianças olham
com olhos de ódio neles não se vêem
olhos de meninos

insones criaturas no final de um dia
de véspera em que a morte
espreita uma vez mais os inocentes

domingo, 20 de março de 2016

Os loucos


Malraux disse que toda arte é uma revolta contra o destino do homem. E Woody Allen, em uma de suas tiradas, diz que a vida não imita a arte, como queria Oscar Wilde, mas imita, sim, os maus programas da TV. Na discussão infinita sobre a utilidade da arte, nem sempre prevalece a razão, pois ela é uma expressão da loucura humana evitando que os homens enlouqueçam.

Perguntar a qualquer artista por que ele escreve, pinta, compõe, esculpe, enfim, por que exerce sua arte, ele dirá que não conseguiria viver se não o fizesse. Alguns dirão que é para não enlouquecer. A presença da loucura, além de vícios que sinalizam desequilíbrios emocionais, têm sido constantes na história dos artistas.

Alcoolismo, ópio, haxixe, heroína e outras drogas pesadas não estão longe do seu universo e da sua revolta contra o destino do homem. Muitas vezes apenas a arte não basta como ato de coragem capaz de transcender a condição humana. A impotência do artista diante de sua própria arte é a sua condenação.

quarta-feira, 16 de março de 2016

Fantasmas


Podemos ver o mundo em diferentes dimensões porque a realidade depende de perspectivas, situações, lugares e estados da alma, dizia Doka. O mundo é diferente quando se está sóbrio ou quando se está bêbado. Afirmava que o maior problema filosófico da humanidade é que Deus não existe mas o diabo existe. Dizia não ter medo de Deus ou do diabo, mas temia os seus fantasmas interiores.

E onde residiam esses fantasmas que nos assombram e, de um modo ou de outro, nos acompanham pelo traçado das nossas vidas? O mundo é um lugar sombrio, incompreensível e ameaçador e os fantasmas se alojam nas emoções, nos medos sem origem, nos passos noturnos que silenciosamente se aproximam, imperceptíveis, de onde as crianças dormem.


Ele também não acreditava no destino nem na vocação superior dos santos pois nem a vida, nem o sonho, nem sequer a esperança acalentam a náusea que acompanha os infantes e os adultos enquanto vivos. Pouco antes de desaparecer para sempre, Doka disse, já meio bêbado, que viver é como um breve raio de sol numa praia estranha. Citava Conrad, que assim se referiu à juventude.

sábado, 12 de março de 2016

Memórias





Não existe passado quando somos jovens. Só com o tempo uma poeira de memória vai se acumulando, uma visão mais nítida vai surgindo das brumas de momentos vividos. Cada um desses instantes corresponderia talvez a uma experiência acumulada na nuvem da vida. Este momento foi realmente vivido ou só agora está acontecendo? E por que vem carregado de recordações?

Algo indefinido nos acompanha de perto, desde tempos sem lembranças, quando olhar o mundo trazia paisagens, cheiros, cores e uma incompreensível vivência de cada minuto. Momentos despidos da consciência obscura dos homens depois de morta a inocência.

Algo de novo então se anuncia como se fora trazido pelas águas de um rio sob influência das marés numa praia estranha. Um espaço assombrado de fantasmas da vida, palco onde eles riem, te observam e te provocam para uma vez mais tentar entender a existência e os mistérios que nela habitam mas que nunca foram enunciados.

terça-feira, 8 de março de 2016

Andar


Andar por andar – somente. Quase noite, o verso de Cecília se repete em minha memória enquanto ando pelas ruas de Copacabana. Um velho amparado numa bengala olha para o espaço à sua frente. Como se estivesse sozinho na multidão que se desloca ao longo do espaço entre a parede e o meio-fio. As lojas abertas e iluminadas procuram transmitir alegria a quem passa com um otimismo planejado para vender mercadorias. As calçadas são fluxos humanos infindáveis.

Os garis varrem os limites da rua. Eles são invisíveis, despercebidos como os velhos que transitam quase rentes ao bloco dos edifícios. Uma mulher negra, magra, com o ventre inchado pela gravidez, corre apressada levando uma criança nos braços e outra pela mão como se estivesse assustada, olha seguidamente para trás. Uma sirene da polícia superpõe o seu som irritante ao barulho dos motores.

Os homens e mulheres que distribuem folhetos de propaganda insistem com os passantes. Poucos são os que concordam em recebê-los. Mais adiante um deles, muito sujo, muito magro, veste um cartaz onde se destaca em letras maiores “Compro ouro”. Está separado do grupo que exibe vários desses cartazes. E os versos de Cecília se repetem: “Andar... – enquanto consente Deus que seja a noite andada”.

sexta-feira, 4 de março de 2016

Fugas



Desde a antiguidade o homem aprendeu a fermentar e depois a destilar frutos e plantas para alterar o modo de ver o mundo. A bebida como fonte de embriaguez e fuga. As sociedades primitivas descobriram um modo de acelerar a fermentação mastigando os frutos e depois plantaram a vinha, que marcou um estágio mais avançado na civilização.

A bebida destilada significou o domínio da tecnologia que veio com a industrialização e o resultado foi a descoberta de um produto mais concentrado do que o vinho ou a cerveja, mais forte, com maior quantidade de álcool, de efeito mais rápido sobre os sentidos. Depois vieram as drogas e sua economia clandestina dirigindo o crime, a violência e a morte.

O homem, estranho animal condenado à consciência, descobriu que havia uma maneira de mudar a percepção da realidade. E de fazê-la parecer melhor, ao mesmo tempo em que encarava as tragédias em volta da sua vida. Entre elas a do seu próprio destino.