quarta-feira, 24 de novembro de 2021

A música das esferas


Os gregos antigos imaginaram a existência de uma música das esferas, quando tentaram compreender o enigma do universo. Essa harmonia que rege os planetas e todos os objetos estelares, entre eles as próprias estrelas onde ela começa e nunca terminará. São elementos que não se entendem no caos porque se não houvesse harmonia nada haveria para testemunhar as coisas criadas no território da imensidão azul. Nem os sinais que a vida transmite aos recantos do que existe e mesmo àqueles que um dia existirão. Porque as invocações do mistério escondem-se à vista de tudo, quem sabe até de Deus.

Estes sons que não existem, apenas aparentam tocar nas fímbrias da imaginação, nas inclinações que fazem limite ao que se esconde e se aninha na alma dos viventes. Sempre a lembrar o que não se compreende porque não têm fronteiras e só existirão, ao fim de tudo, nas cicatrizes deixadas pelo sofrimento humano.


quinta-feira, 14 de outubro de 2021

Diante do desastre



A manhã levantou-se nas franjas de um vento muito frio para esta época do ano e o grasnar das gaivotas acentuou o sentido da solidão do dia. Pouca gente nas ruas, o distante barulho de motores parecia o ressonar dos últimos dias de verão no Norte de Portugal. O velho que vive um desastre sentimental mas tenta sobreviver dirigiu o olhar para a conhecida paisagem agora misturada em cores de azul e cinza.


O pensamento  voltou-se para o passar  das nuvens pesadas que lembravam mais um outono saudoso da primavera. Palavras soltas pareciam descrever o ritmo do tempo passando, a passar como o próprio vento que lhe emprestava sua moldura visível no farfalhar das folhas, no movimento das flores do jardim coberto pela neblina leve.


Vieram também sons desencontrados povoando a manhã, entre eles o que parecia ser o soluço de uma criança tímida. E veio também com eles a memória a perseguir o tempo, a lembrança de outros dias, quando as crianças corriam ao encontro dos ventos do verão chuvoso. E de quando se falava de esperas e esperanças. E também da imensidão da vida diante dos limites do mundo.

quinta-feira, 16 de setembro de 2021

Aquela que não foi vencida

Viajou nos porões lotados dos navios negreiros vindos da África entre corpos feridos e castigados. Escondeu-se nos cantos, entre as frestas, conduzida por quem havia perdido tudo. Ponto de fuga, sonho, refúgio da resistência que não poderia morrer porque a vida tinha que prevalecer, afirmar o que possui de absoluto. Escapou das perseguições, das buscas e da repressão dos capitães-do-mato. Viajou de mão em mão, conquistou meninos burgueses e afirmou-se entre os ladrões. Virou mercadoria, fugiu dos policiais e resistiu nas prisõesnas masmorras em que toda dignidade é vencida e escorre pelos esgotos junto com fezes e sangue. 



Foi saudada em passeatas, discutida nos parlamentos, transformou-se na química de medicamentos para aliviar a dor dos desenganados. Foi às vezes tolerada e continuou perseguida. Continuou a exibir a natureza do que não pode ser vencido porque vem compensar a triste natureza humana que precisa das promessas do sonho para continuar a ter vida.