sábado, 27 de setembro de 2014

Amor materno

Até o século XIX as mães não amavam os filhos. A idealização do amor materno é muito recente. Antes, as mulheres tinham muitas crias que morriam ao nascer e elas procuravam se distanciar das sobreviventes. Seria preferível mantê-las longe de si, às vezes pagando a uma ama de leite, do que sofrer com sua morte precoce. As crianças morriam muito cedo numa época em que uma vida longa não passava dos trinta anos.

As que não morriam cresciam solitárias, às vezes criadas por mulheres sem os laços da maternidade, numa atmosfera propícia à infelicidade. Esta solidão levou Freud a investigar o inconsciente e formular sua teoria, uma das grandes construções da inteligência humana.


O desamor está na raiz do ódio, do desprezo profundo, do sofrimento e da vingança cega. O bicho humano tinha desde sempre necessidade do amor que lhe foi negado pela mãe, pois ela própria se defendia da dor de amar uma criança que nascia estigmatizada e condenada à morte.

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Leo


Este é um poema sobre o tempo quando Leo estava vivo.
É sobre despedidas, acenos de afogados
no horizonte das águas.

Cansáramos de amar as coisas simples.
O interesse da vida refletia apenas
indiferença em face do destino.

As lembranças haviam-se perdido no silvo
das locomotivas dos trens da Great Western.
Enredaram-se nas cercas,
apagaram-se no corpo adolescente.

Em noite construída pelo vento,
um rosto nos olhava da janela.
A chuva espraiava tédio e náusea,
o pensamento envolto na memória.

O mundo conduzia seus atores
- dupla face de comédia e drama-
em palcos instalados sobre a vida
em busca da palavra.
  
Rente aos aveloses,
aveludado pelo vento ao fim da tarde,
o mesmo rosto ainda olhava
e se entregava a seu tormento.

A tarde, revolvida pela noite,
construía formas de esperança.
O inconsciente resvalava a eternidade
e o breve instante da vida

se enlaçava em seu momento.

sábado, 20 de setembro de 2014

A morte

Shakespeare pensava que morrer seria como dormir, talvez sonhar, quem sabe? Foram pensamentos verbalizados por Hamlet, o angustiado príncipe de uma das mais consagradas tragédias que escreveu. A morte é um dos enigmas que o homem jamais conseguiu decifrar, a não ser através das fantasias das teorias religiosas.

Embora seja um tema recorrente da literatura e de todas as artes, a finitude da vida não costuma povoar as conversas sociais. Sócrates, fundador de uma das mais profundas correntes do pensamento, falou na imortalidade da alma mas a vinculou ao conhecimento, principalmente ao auto-conhecimento. Dizia que os verdadeiros filósofos estavam prontos para morrer porque assim poderiam conhecer a essência da vida.


Platão, discípulo e divulgador das idéias socráticas, sugeriu que os vivos deveriam sempre pensar na morte, porque assim aprenderiam a valorizar todos os instantes da vida. Haveria, portanto, uma arte de viver que é negada pela morte, restando apenas uma certeza, a de que a morte só pode existir onde existe a vida.

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Mulheres no espelho

Tenho admiração pelas mulheres que eternizam a própria beleza. O tempo modifica sua aparência apenas para os outros, pois para elas mesmas nada muda, vêem-se sempre na juventude, com a mesma aparência da adolescente que foram. Reinterpretam o espelho que insiste em mostrar uma face que não reconhecem.

Muitas se vestem como se vêem. A moda feminina é uma mensagem aos outros. Transmite a forma como uma mulher deseja ser vista, é também o seu modo de estar no mundo. Querem dizer que não se rendem diante da injusta passagem do tempo.


As mulheres gostam do que vêem nos espelhos e para eles se vestem, pintam-se, fazem poses. Na rua, examinam-se diante de tudo que reflete uma imagem. Um profissional da moda feminina me observou certa vez que as mulheres brasileiras talvez sejam as únicas no mundo que se olham de costas nos espelhos.

sábado, 13 de setembro de 2014

À espera do verão

A primavera mostra seus caprichos enquanto o bairro espera pelo verão. As frentes frias começam a rarear, alguns dias são quentes e a praia se enche dos desocupados de sempre. Copacabana aguarda a sua gloriosa estação, pois regurgita de vida nos últimos meses do ano, numa vilegiatura que se estende até depois do carnaval.

Setembro é um dos meses mais agradáveis do ano numa cidade de calor insuportável a partir de novembro. Quase nos faz esquecer da temperatura que surpreendeu os termômetros no dia 4 de fevereiro passado, quando a sensação térmica ultrapassou os 57 graus. E se manteve assim por mais alguns dias, fazendo a alegria dos turistas e nos conduzindo quase ao desespero.


Já começaram a chegar, os turistas, neste setembro de sol e pouca chuva. Estão ainda muito brancos e se destacam no meio da população morena. Em breve estarão vermelhos e vão começar a perder a primeira pele. Quando novembro chegar, estarão em festa nos botequins. Eles adoram o que para nós parece um inferno porque podem esquecer a humilhação do frio que os castiga em seus países a cada fim de ano.