sábado, 28 de novembro de 2015

Pelo mundo


Já falei aqui sobre aquele inglês, Taylor, que conheci como gerente de um barco-hotel no Rio Araguaia, durante os anos oitenta (http://tinyurl.com/pxfwoqb). Pensei que ele havia desaparecido para sempre da minha vida até esta semana, quando entrou em contato depois de ter descoberto o meu nome numa rede social. Contou que havia morado algum tempo no Rio, depois de ter sumido do Araguaia, voltou para Manchester, na Inglaterra, e hoje encontra-se na Italia. Dedica-se ao desenho e produção de azulejos. Mandou-me foto de alguns. São bonitos.

Mas antes perambulou por outros recantos do mundo. Tentou abrir um bar clandestino na Arabia Saudita mas foi descoberto e teve de sair do país. Em Chipre, inaugurou outro bar do qual também desistiu no prejuízo. Penso que contribuiu para isso o hábito de beber muito do produto que ele próprio vendia. Andou também pela África, tentou o comércio em Lagos, na Nigéria, e Porto-Novo, no Benim, mas desistiu porque, disse, o tédio venceu o desejo de lucro.


Penso sobre a compulsão que o domina e a possível angústia que o faz consumir diariamente enormes quantidades de gim e o conduz a estar sempre em movimento, incapaz de fixar-se em algum lugar do mundo. O negócio de azulejos em Ortonovo, pequena vila perto de Carrara, onde hoje se encontra, não deve também durar muito tempo, considerado o histórico de Taylor. Ele disse que sente saudades do Brasil e de vez em quando pensa em abrir outro bar numa praia chamada Buzios que, lhe disseram, fica no litoral sul do Rio Grande do Norte.

terça-feira, 24 de novembro de 2015

Pertencimento


Entre as palavras em moda, pertencimento é de formação erudita, não surgiu espontaneamente da linguagem viva, falada pelo povo e consagrada pelo uso. Por isso é tão feia, arrogante e de feição esnobe. Mas define adequadamente um sentimento humano que está presente em nossos tempos conflagrados. Há um desejo angustiado de pertencer a um grupamento maior do que o próprio indivíduo, de não ficar à margem dos outros, de fazer parte da festa ou do gesto coletivo.

As grandes torcidas de futebol que se unem em torno de um time tem origem na necessidade individual de fazer parte daquele grupo que sofre unido com as derrotas e comemora as vitórias. Assim como nos exércitos, nas manifestações e nas competições de desfiles de carnaval. Ficar à margem, recusado pelos outros ou pela incapacidade de pertencer ao grupo, provoca sofrimento e revolta.


O ressentimento dos marginais leva à condenação do grupo que os recusou. Cresce então o sentimento de vingança, do ódio capaz de levar ao paroxismo do massacre de inocentes, do gesto terrorista de explodir a si mesmo para também matar o maior número possível de circunstantes. O marginalizado une-se a outros, passa a pertencer a núcleos inspirados pela ideologia ou pela fé. O objetivo é a vingança difusa, encarniçada, insana, que procura simbolizar-se nas grandes tragédias sem sentido.

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

A palavra


Cada palavra traz consigo todas as formas e os diferentes sentidos que teve em sua evolução. Elas não foram sempre como hoje as pronunciamos e nem sempre significaram a mesma ação, objeto ou sentimento. Mudam com o uso e com o tempo. Desde a origem remota são representações criadas pelo homem no esforço de entender e expressar o significado do mundo que habita. A compreensão das coisas representa a vitória humana sobre as trevas absolutas do começo da vida no planeta.

Uma criança pequena pouco se diferencia dos filhotes de outras espécies mas a descoberta da palavra irá torná-la diferente. Quando conquista o poder da expressão começa então a compreender e estabelecer relação com o que vê e sente. A linguagem articulada atribuiu importância e poder ao frágil macaco nu que poderia ter desaparecido junto com tantas outras espécies que nem memória deixaram na superfície da Terra.


A angústia humana tem origem no desconhecido, na incapacidade atormentada de não compreender-se a si mesma e ao que se encontra em seu redor. O medo, a solidão, o ódio e o sentimento de amor existem nas palavras que lhe dão sentido. Tudo o que entra em sua percepção o homem tem necessidade de compreender e escolher uma palavra para lhe dar nome. Quando não consegue, nega sua existência. Foi inventando a palavra que a humanidade teve noção do destino que não escolheu para dar ou negar sentido a sua atribulada existência. 

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

A noite


No ano em que desapareceu e nunca mais voltamos a vê-lo, Doka disse, na mesa do bar, que o mundo caminhava para uma nova Idade Média. Argumentava com o crescimento das religiões e sua importância cada vez maior na vida das pessoas simples em busca de Deus. Multidões de crentes financiavam as igrejas que surgiam na febre mística e tornavam-nas ricas, com poder político, capazes de movimentar poderosas correntes de opinião. Radical em tudo que dizia, Doka apostava também que não haveria fim na luta de séculos entre os mundos de Deus e de Alá.

Estava seguro de que as ideologias haviam falhado. O ideal comunista, que representou a última das utopias, acabou não dando certo na prática e foi esta a causa principal de ter surgido um pensamento de massa carola e atrasado. Muito semelhante ao que prevaleceu no Ocidente entre os anos que vão do fim do Império Romano até o Renascimento. Uma noite de dez séculos coberta pelo manto da Igreja, sua doutrina e seus instrumentos de dominação.


Doka era um cético, dizia que até os quinze anos acreditara na Igreja católica, dos quinze aos vinte e cinco numa revolução popular que acabaria com as injustiças e, a partir de então, só tinha fé na loteria federal. Talvez porque pensava assim, ria com amargura, não reconhecia nada como verdadeiro até que, discreto como sempre, deixou de aparecer nos lugares que costumava frequentar. Seus parentes não souberam dizer onde andaria. Chegamos a procurá-lo vários dias pela cidade. Em vão.

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Um ano sombrio


Aproxima-se o fim de um ano em que a palavra crise foi a mais pronunciada. Desde os gregos antigos ela define o momento em que o doente vislumbra a possibilidade da morte ou da sobrevivência. Ficarão por muito tempo as marcas de várias crises. A tragédia dos refugiados aos poucos vai sendo esquecida pelos noticiários mas está presente e vai permanecer como sombra do fracasso da humanidade e dos governos do mundo. Vamos nos acostumando com a violência a nosso lado, como quem vive em países destruídos pela guerra.

A degola de prisioneiros exibida na rede mundial, os desastres naturais e os provocados pelo homem, lama tóxica destruindo pequenos vilarejos do interior, o tiroteio nas ruas da cidade com suas balas perdidas. São detalhes de um grande cenário  de horror. Não dá para crer na beleza da aurora nem no repouso anunciado pelo crepúsculo de cores esmaecidas.

Enquanto os negociantes decoram suas lojas com símbolos do Natal, há um latejar de sangue nas fímbrias do dia e um olhar sem ternura nos semblantes. Procuram-se sinais de sorriso no rosto dos passantes mas se vê traços de ódio. Alguém me disse que existem duas cidades no mundo em que as pessoas têm medo das crianças. Uma seria o Cairo, a outra é o Rio. A passagem do ano traz consigo o despertar de esperanças.Precisamos descobrir onde residem as esperanças e então, como escreveu Maiakovski, tomar emprestada alguma alegria ao futuro.


domingo, 8 de novembro de 2015

Cidades mortas


As cidades nascem, crescem e morrem como os seres vivos.Quem se lembra de Nínive? Sua memória existe apenas na História. Foi a mais importante entre todas, quinze séculos antes de Cristo. O Livro de Jonas a ela se refere como uma cidade excessivamente grande.Perdeu-se no tempo também Senaqueribe, seu construtor, que resplandeceu o mundo com sua glória. E de Tikal, quem se recorda? Orgulho dos reis maias, foi abandonada porque cresceu demais e virou uma cidade perdida entre as árvores da selva.

Há dois anos, Detroit declarou a própria falência. Foi uma das mais ricas cidades americanas. Quando passar o tempo dos automóveis, que fizeram sua riqueza, talvez cumpra o destino de Nínive. Ainda abriga mais de quatro milhões de habitantes. Mas está morrendo. Hoje, javalis pastam no centro da cidade de Chernobyl, que foi grande e representou o poder atômico da União Soviética.


Todas vibravam sua energia e expandiram seu poder pelo mundo. Não resistiram aos desastres que amadureceram sob os pés dos seus habitantes. Algumas foram soterradas, em seu lugar surgiram outras cidades diferentes, muitas vezes com outros povos e falando outras línguas. As grandes metrópoles alimentam o mito de que são eternas mas o tempo não reconhece eternidade no que as civilizações humanas construíram.

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Meu irmão


Sua agonia foi com a mesma coragem do menino com quem compartilhei a infância e foi meu amigo durante toda a vida. Comportou-se até o fim sem medo do confronto, afirmando sua humanidade perante o desconhecido.

Seu rosto de criança se revela na minha memória. Os cabelos de fogo, a face sardenta, o olhar inquieto e a curiosidade diante da vida. Seus embates e os meus cuidados de irmão mais velho. Ele me ensinou que a vida não é absoluta, pode ser desafiada e nisso reside a nossa vitória.


Agora o vejo partindo sem lamento, silencioso e grave. Suas palavras estão nos livros e nos textos que publicou mas o melhor se perdeu: o humor inteligente e ferino, o riso aberto e contagiante, o jeito de olhar com ironia para a tristeza da vida, o encanto da sua presença. Vejo, na névoa do tempo, o adeus da criança pequena que já compreendia o mundo. Descansa, meu menino, meu amigo, criança valente, pela última vez enfrentaste sem medo a escuridão.

terça-feira, 3 de novembro de 2015

Atividade


Iniciou muito cedo a sua jornada e de repente apareceu com um beija-flor preso na boca. Consegui resgatá-lo depois de algum trabalho para convencê-la. A pequena ave, em minhas mãos, com o coração disparado, demorou um pouco a acreditar que estava de novo em liberdade até partir num voo confuso, sem rumo, desesperado. Como costuma ficar sempre por perto, acompanhando meus movimentos, pulou para a mesa do computador, desorganizou os objetos que estavam em cima, pouco depois conseguiu acionar o grampeador e cravar um grampo na pata dianteira, que removi com cuidado. Ela permitiu essa operação talvez dolorosa com tranquilidade embora um pouco trêmula.

Passou alguns minutos lambendo o local ferido, atividade interrompida pelo salto veloz na direção de um pombo que pousara no muro da varanda. O ataque falhou e mais uma vez seu miado de decepção prometia futuras retaliações contra qualquer outro pássaro que se arriscasse em seus domínios. Sobrou para um bem-te-vi descuidado que espantei com um grito e por muito pouco não teve o mesmo destino do beija-flor. Ela passou a me olhar com desprezo e algum ressentimento.


Aceitou as pazes depois de uma guloseima mas mesmo assim marcou seu protesto correndo na direção de qualquer coisa que se movesse, fosse pássaro, planta, inseto ou papéis tocados pelo vento. Deu algumas corridas, acompanhou com o olhar um ruidoso bando de maritacas que passou ao longe e, como eram apenas sete horas da manhã, acomodou-se em minha mesa de trabalho, fechou os olhos e fingiu que dormia, sem deixar de me vigiar. Acompanha o movimento dos dedos no teclado. Disfarça. Como um dos seus divertimentos é me pregar sustos, espera que eu me distraia. A qualquer momento vai atacar.