quinta-feira, 30 de julho de 2015

Cotidiano


O garoto que pôs fogo no apartamento em frente tinha dezessete anos. Morava com a mãe viuva que se negou a lhe dar algum dinheiro para comprar drogas e ele cumpriu a ameaça de incendiar a casa. Na madrugada, os vizinhos acordaram com a sirene dos bombeiros, a rua de repente se encheu de gente.

Copacabana é um bairro onde se desenrolam esses dramas – grandes ou pequenos – típicos da tragédia urbana. Como o do pai proibido de ver a filha por ação da ex-mulher nos tribunais e que vai todo dia, clandestinamente, esperá-la na porta da escola e a leva até o ponto de ônibus. O tiroteio nas favelas do bairro e suas vítimas inocentes, crimes passionais, balas perdidas.


Episódios do cotidiano. Solidão dos dias, depressão dos velhos, meninos arrancados da vida. Os turistas, alegres, não percebem que há sempre um travo de violência e de tristeza no ar. As grandes cidades reúnem limites que ainda não foram alcançados pela imaginação de quem se dedica a escrever histórias.

domingo, 26 de julho de 2015

Doka


Doka bebia muito. Dizia que, lúcido, não conseguia entender o mundo. Existem tantas perguntas sem respostas e tantas indagações que os pensamentos se misturam e passam a pedir algo que possa controla-los, dizia. E os vícios são mais ricos que a virtude. Era assim que ele se destruia, por uma compulsão que o levava para fora da vida.

Pensava muito na infância, sem romantismo. Dizia que era uma fase de debilidade mental que, infelizmente, todos precisam passar por ela. Não tinha nítidas lembranças do seu tempo de criança, apenas de momentos muito rápidos, flashes de memória que não demoravam tempo suficiente para compreendê-los.


Não era um tipo de fácil convivência, o que talvez explique os quatro casamentos que ele próprio havia destruído. Todas as manhãs, quando se levantava, dedicava um tempo à meditação mas não chegava a lugar nenhum, achava que era um tempo que diariamente perdia. Doka era um gênio às avessas, que duvidava de tudo e nada compreendia. Dizia amar apenas o ruído das marés e as noites de tempestade.

quarta-feira, 22 de julho de 2015

Opinião pública


Os poderosos a temem, pois ela antecipa as grandes mudanças numa sociedade. Antes da queda da Bastilha, início da grande revolução na França, uma forte corrente de opinião formou-se contra o regime da aristocracia e os nobres acabaram decapitados. Não se sabe bem como ela surge às vezes com tanta força, quais os verdadeiros fatores que a regulam.

As correntes de opinião são como uma pedra jogada nas águas tranquilas de um lago. Vai formando círculos que se ampliam uns depois dos outros e se expandem pela força de cada um. Os políticos a cortejam, a mídia a alimenta, procura controlá-la e dirigi-la. Nem sempre se dão bem porque ela pode ser às vezes indomável.


É também volúvel, perigosa e injusta, porque pode dar suporte às piores causas e a projetos criminosos. Não é preciso dar exemplos como o do nazismo alemão. Pode gerar transformações para o melhor mas também para o pior. Os estudiosos tentam entendê-la e se deparam com a dificuldade de explicar um fenômeno que tem componentes irracionais, instintivos e é tão primitivo quanto um uivo.

sábado, 18 de julho de 2015

Adeus, amigo.
Na tua forma suave de viver,
foste do melhor que a humanidade poderia produzir.
Os homens são apenas o seu tempo, nada deixarão
após sua passagem, mas de ti ficam o sorriso suave,
o olhar terno, o pensamento solidário.
Em tua despedida,
vejo que a vida é apenas isso:
a forma do passado que vivemos
e os espaços vazios do futuro.
Palavras como amor vão se tornando inúteis

mas tu sabias que nunca deixaram de existir.

terça-feira, 14 de julho de 2015

O desafio

Quando tomou consciência do mundo, o macaco nu olhou em sua volta e em seguida voltou o rosto para o alto. Ao ver os astros, num céu brilhante, não conseguiu entender o universo mas teve o sentimento da solidão que até hoje o acompanha. A exploração do cosmos é a tentativa de obter respostas às profundas e primeiras indagações que nunca foram respondidas.

Na noite perene dos primórdios havia apenas ameaças escondidas na escuridão que só o sol amenizava. E o sol foi a primeira idéia de Deus porque significava calor e proteção contra os perigos que residiam nas trevas. A descoberta ou invenção de Deus veio da nossa fragilidade diante do grande enigma.


As viagens ao fim do mundo representaram o desafio ao desconhecido e ao mistério das sombras de além-mar. A partida em direção aos astros e aos novos horizontes do universo representam até hoje a perplexidade do pobre humano. Ele olha para o céu e indaga se está ou não sozinho diante do infinito que não pode entender.

sexta-feira, 10 de julho de 2015

A violência


Em Grande Sertão: Veredas, sua obra prima, Guimarães Rosa disse pela boca de um personagem que viver é muito perigoso. E acrescentou que  Deus mesmo, quando vier, que venha armado. Ele falava de tempos violentos em um mundo de jagunços e mandantes, bandos soltos num sertão onde a lei era a de quem ganhava o poder pelas armas. A história do mundo é a história da violência.

Houve um tempo em que o pensamento humano que se fundamentava na ética acreditou o contrário. O homem, naturalmente bom, seria corrompido pela sociedade e Rousseau divulgou o mito do bom selvagem. Distante dessa utopia, o espetáculo dos massacres, a tortura, os genocídios e linchamentos, o horror como contraponto da história da humanidade desmentiam Rousseau.


O palco moderno da violência encontra-se nas grandes cidades, em todos os países, nas regiões do planeta onde as guerras são fomentadas por razões de mercado e a civilização expõe o seu fracasso. O homem é sempre o lobo do homem e em qualquer tempo ou espaço do mundo, Deus, se aqui vier, que venha armado.