terça-feira, 29 de julho de 2014

O Herói

Em O Herói de Mil Faces, Joseph Campbell nos mostra como todas as histórias que têm o herói como protagonista se repetem. O herói é um só e a sua saga é a mesma: lança-se na aventura, enfrenta inimigos, experimenta enormes provações e volta para casa depois de transcender a existência comum. Este é o roteiro repetido da vida dos heróis.

Assim como na trajetória do herói de Campbell, o roteiro da vida humana, qualquer vida, se desenrola repetindo-se. Um suceder de eventos que vão do nascimento à morte marcam a existência e sua medida na qual incidem sucessos e fracassos, sentimentos vários, amor, ódio e indiferença ampliando uma experiência trágica.


A diferença entre o herói e o homem comum é que este não transcende a sua vivência pessoal porque não tem a audácia de lançar-se à aventura. O medo do desconhecido, o pavor das sombras, a ameaça do pesadelo e do castigo inibem a coragem humana e conduz a uma existência  medíocre, mil vezes repetida e que se reproduz em sua própria história.

sábado, 26 de julho de 2014

Ariano

O noticiário sobre a morte de Ariano me lembrou nosso encontro, quando o Teatro do Estudante da Paraiba procurava um espetáculo para montar e alguém descobriu um belo texto na pequena biblioteca. Chamava-se “Cantam as Harpas de Sião”, um poema de fôlego, pacifista, de estilo clássico, arrebatador.  O ano, se a memória não me trai mais uma vez, era 1954.

Ninguém conhecia o autor, que se assinava Ariano Suassuna, porem um de nós, mais imaginativo,  informou que se tratava de um dramaturgo do Século XIX, muito pouco conhecido. Todo mundo aceitou essa informação porque nada se sabia dele. A peça foi ensaiada e montada, com direção de Hermano José. No dia da estréia, no belo e pequeno Teatro Santa Rosa, o porteiro foi aos camarins e disse que o autor da peça estava na portaria pedindo para entrar. Tinha vindo de Recife, onde morava.


Deve ter sido um dos primeiros textos de Ariano a ser montado. Depois da estréia fomos, todo o elenco, a equipe e ele,  para o Cassino da Lagoa onde bebemos cerveja até de madrugada. Ele tomou conta da conversa, levantou os espíritos, afastou tristezas de adolescentes, foi sua primeira performance como aula e como espetáculo pessoal. Algumas das histórias que contou, ao contrário de outras que ouvi ou que vivi, nunca me saíram ou sairão da memória.

quarta-feira, 23 de julho de 2014

Na paz

Depois da enorme agitação em que viveu durante os jogos de futebol, invadida por argentinos e outros alienígenas, Copacabana parece ter voltado ao repouso da sua preguiça. Quase na paz, não fossem os pequenos roubos de que vivem as crianças de rua, os preços assustadores e alguns barulhos noturnos que parecem tiros disparados no olho da madrugada.

Tenho estranhado a ausência de Marquinhos, o maluco, que sumiu da rua. Talvez o tenham internado de novo mas em breve ele deve reaparecer de banho tomado e barba feita. A praia continua movimentada sob este frio sol de inverno no qual as meninas estrangeiras até conseguem avermelhar a pele branca.


No princípio da manhã, o homem que espera a filha sair do colégio fazia palavras cruzadas no banco da pracinha, esperando o tempo passar. O garçom do botequim me disse que por ação da ex-mulher ele está legalmente proibido de se aproximar da menina. Costuma de vez em quando esperá-la na saída das aulas, abraçá-la e acompanhá-la até o ponto de ônibus. Depois da partida ele fica de pé no meio-fio enquanto acena um prolongado adeus.

domingo, 20 de julho de 2014

Um bêbado

Ele havia sido um homem poderoso, entrou cedo na política abençoado pelos senhores de engenho de Pernambuco. Gostava da boa vida, era inteligente, sarcástico e divertido. Conheci-o já decadente mas seu talento era superior à confusão intelectual que a bebida costuma cobrar de seus adoradores.

Foi um deputado ativo, reagiu ao golpe militar de 1964 e terminou por ser cassado e perseguido. Quando o conheci era um bêbado lúcido, capaz de nos fazer  pensar sobre quase tudo o que dizia. Fui hóspede em sua casa onde morava só. Acordou-me de manhã dizendo que era preciso fazer café, comprar pão e fritar ovos. Mas o conhaque estava pronto.


Algo o fez desprezar uma vocação talhada para a política, o saber e, principalmente, a literatura. Preferiu ignorar o ponto de fuga que a arte pode proporcionar a quem deseja escapar do beco sem saída que vida representa. Alguns resolvem enfrentar seus trágicos desígnios mas sabem que não serão vitoriosos.

quinta-feira, 17 de julho de 2014

Memória

Mais que sangue, jorram as lembranças

dos olhos feridos a lâmina de faca.

Tudo o que a retina percebeu nas noites

debruçadas sobre anêmonas do mar.



Silente, o gume de afiados ritmos

trespassou limites demarcados

na cadência dos surdos, película

transparente e fina, repetida em eco.



A noite aproximava a espera de outro dia,

outras brisas salpicando o embarcadouro inútil,

solitário em abandono, imóvel, transfigurado

na visão das marés imundas da vazante.



O lodo e o horror do mar nos perseguindo.

Secreções de peixes, barcos, afogados.

O clarear da aurora misturando a noite

a um dia qualquer de estações tão frias.


domingo, 13 de julho de 2014

Reencontro

A última vez em que o vi ele estava sóbrio e dava para perceber que fazia esforço para não beber. Estava morando sozinho num apartamento pequeno mas tinha esperança de que a mulher o aceitasse de volta “por causa das crianças”, me disse. Pensei para mim mesmo que as crianças já não eram hoje mais crianças. Almoçamos num botequim da Rua da Bahia e não conversamos muito mais sobre nós mesmos.

Fomos contemporâneos na universidade e depois colegas de trabalho numa agência de publicidade. Sua visão do mundo bem-humorada o fazia encontrar sempre algo divertido para dizer sobre as situações que enfrentava. Mas daquela vez me deixou a impressão de que as coisas não iam bem na sua vida. Não nos víamos há algum tempo, reparei nos seus dentes estragados, nos seus silêncios.


Falou algo sobre os anos que passavam rápido, nas dificuldades de sobrevivência, na falta de dinheiro que costuma acompanhar o final da vida das pessoas. Depois eu viajei de volta e não tive mais notícias dele, até que me disseram que seu corpo fora encontrado no pequeno apartamento em que morava sozinho. Precisaram arrombar a porta, estava morto há alguns dias.