quarta-feira, 23 de maio de 2018

Desvãos



O sono demora e há sombras na parede do quarto. O olhar tomba na meia-escuridão e o pensamento explora regiões assombradas, ventos estivais, fantasmas adormecidos. Há também sons imaginários, paisagens desenhadas de angústia e um interminável cansaço que aos poucos distende o corpo e provoca o mergulho da noite.

Sonhos que se misturam ao que parece realidade mas que são apenas pequenos delírios, quedas no abismo, respirações suspensas, sustos. Convites à vigília que angustia crianças despertas em lágrimas. Elas investigam a perda da própria infância, imaginam o que resta de desilusões.

E há também o som confuso das águas, torrentes de espuma a inundar sombras e o que restou do fogo dos incêndios. Algo que nunca termina, tem o brilho de dores insondáveis, da eterna música que acompanha a vida, a morte e o gozo das coisas para sempre findas aos olhos do menino.

quarta-feira, 9 de maio de 2018

O velho e o tempo



Tempo frio e a chuva fina cobrem de cinzento as ruas da cidade. O velho se desloca pelas calçadas estreitas na direção do bar. As árvores verdejantes lembram que a primavera está presente em todas as plantas, em todos os jardins, na juventude em que a natureza, uma vez mais, desperta para outro ciclo do tempo. As meninas do colégio passam pela praça larga na direção de algum lugar onde a alegria continuará a transbordar dos sorrisos.

A memória persegue o velho que tenta olhar para o futuro. Existem amarras onde a vida se ancora e há sempre algum esforço para desatá-las e continuar a navegação. Pois o passado dificulta o renascer da vida. No entanto há brisa após a chuva, o vento desamarra a lembrança e existem as paisagens, a surpreendente descoberta dos segredos.

Uma passagem pelo serpentear do rio, como se fosse o espelho das curvas da existência, no acaso em que habitam todos os seres vivos, a beleza das coisas, a inútil compreensão do mundo e todos os calafrios. Por fim o bar quase vazio, a paz da meditação serenando os espíritos inquietos que nunca deixaram de acompanhar o velho desde sua mais antiga infância.