terça-feira, 31 de março de 2015

Cahors

Num dia qualquer do mês de abril de 1970 eu viajava de carro entre Paris e Lisboa e decidi pernoitar em Cahors, cansado dos 500 quilômetros na direção.  À noite, vagueei um pouco pela cidade, vi a paisagem noturna do rio Lot em sua contagiosa tranquilidade, sentei ao lado de uma fonte e prometi a mim mesmo algum dia voltar.

Cumpri minha promessa alguns anos depois e desde então, sempre que posso, tenho visitado estas paragens. Cahors é uma cidade muito antiga, na sua vizinhança os gauleses perderam a última batalha para Julio César. Em suas terras surgiu a uva que dá nome ao vinho Malbec, conhecido no passado como um tipo de Bordeaux, depois entrou em decadência e hoje começa a recuperar o prestígio de antigamente.


A cidade é um dos pontos referenciais dos peregrinos que desde a Idade Média percorrem os caminhos para Santiago de Compostela. Talvez por isso exista aqui um certo misticismo plantado pelos viajantes em busca de Deus. Tocado por esta aura, não tive a sorte de descobrir a divindade mas tenho a impressão de que encontrei a luz existente nas sombrias vielas medievais, nas igrejas, nos tortuosos caminhos e nos bares que conduzem à contemplação do tempo e suas velhíssimas lembranças.

sábado, 28 de março de 2015

O Sudoeste

O Sudoeste da França é como se fosse um país de certa diversidade, com várias regiões e sutis diferenças entre elas. Onde me encontro é o que chamam  de Périgord-Quercy. Mistura-se com  o Auvergne e, segundo os franceses, tem a melhor comida do país e é capital do que classificam como França profunda.

Os ingleses dominaram este território várias vezes durante a Guerra dos Cem Anos entre França e Inglaterra e talvez por influência o “rugby” seja o esporte mais popular. O povo é simpático, produz um excelente vinho, vota em maioria no partido socialista e não tem aquela arrogância dos parisienses.


A riqueza da paisagem é ornada por vários rios, lagos, bosques que restaram do grande desmatamento que sofreu ao longo da história e plantações de ameixas, vinhedos, macieiras, milharais, campos de girassóis. Não existem grandes cidades nem a miséria dos povos, por isso os níveis de violência são tão baixos que ainda se pode caminhar pela madrugada sem receios. Mas só quando o frio concede permissão para se andar na rua.

terça-feira, 24 de março de 2015

Gastronomia

A sofisticação e o prestígio da cozinha francesa têm influenciado o modo de comer do mundo. Os chefs são tratados como estrelas e se comportam como astros do mundo dos espetáculos. Dão entrevistas, comandam programas de TV e são assediados pela mídia. Alguns escrevem livros de receitas e de suas memórias pessoais.

A ‘finesse’ da cozinha francesa começou nos tempos de Catarina de Médici, a italiana que foi mulher de um rei da França e mãe de outros três. Ela trouxe de Florença alguns cozinheiros que ensinaram à nobreza o que era comer bem. Os aristocratas franceses, que desprezavam o povo, tiveram então, na forma de comer, mais uma diferença que os fazia verem a si mesmos como seres especiais.


Quando a Revolução cortou a cabeça da nobreza, os chefs de cozinha ficaram sem emprego e sem o prestígio dos clientes aristocráticos. E abriram restaurantes. A burguesia, que substituiu a aristocracia no Poder, pôde comer, assim, da mesma forma e com a mesma arte da nobreza. O povo continuou com o seus pratos rústicos. Esta é a melhor comida da França.

sábado, 21 de março de 2015

Paris

Neste fim do inverno europeu, a primavera se anuncia na cidade de Paris com uma névoa que cobre o rio Sena, envolve os monumentos e aumenta a sensação de frio. Os turistas fotografam a bela cidade envolta nessa atmosfera cinza e poucos se dedicam a imaginar a origem dessa paisagem de sombras sobre o rio e as ruas tão cheias de história.

É uma nuvem de poluição. A sujeira da atmosfera que provoca doenças respiratórias,  penetra olhos e narizes e irrita a garganta dos que vivem ou visitam esta cidade. As autoridades refletem e prometem medidas que vão do controle dos automóveis, incentivos a carros elétricos, andar de bicicleta e tornar gratuito o transporte público.


As grandes cidades estão cada vez mais parecidas. Tornam-se lugares onde viver é perigoso e as ameaças cercam os habitantes. Desde o ar sombrio e sujo e a violência provocada pelas desigualdades sociais ao complicado exercício de se locomover no trânsito congestionado e agressivo. A cidade foi uma solução encontrada para aumentar a produção e o consumo da humanidade, na ilusão de que este seria o destino dos homens. Mas estamos assistindo ao enterro das metrópoles.

quarta-feira, 18 de março de 2015

O velho

Quando o conheci ele já estava bem velho e morava há mais de trinta anos em Paris. Tinha sido um homem poderoso e rico que um dia resolveu mudar de vida, transformou o que tinha em dinheiro e saiu do Brasil. Comprou um apartamento na Ile de Saint Louis, no meio do Rio Sena, e passou a usufruir a cidade.

Tomou a decisão quando tinha pouco mais de cinquenta anos. Calculou o tempo que ainda esperava viver e concluiu: o que tinha lhe assegurava uma vida despreocupada. Nenhuma das decisões humanas, no entanto, está garantida contra as armadilhas do tempo. Quando o encontrei, o dinheiro tinha acabado, estava muito velho e não havia futuro.


Bebemos juntos algumas noites pelos cafés e cervejarias da Ile de Saint Louis. Já não existia o apartamento, ele morava de favor e estava em dívida nos bares da vizinhança. Certa noite o gerente de um deles me perguntou discretamente se aquele velho tinha sido mesmo presidente do Brasil. Percebi que usava essa farsa para ter crédito nos bares da pequena ilha. Confirmei. Assegurei também que ele tinha sido um dos grandes presidentes da História do Brasil.

domingo, 15 de março de 2015

Cidades

A atração das grandes cidades lembra enxames de abelhas amontoadas em torno da diversidade de apelos ao consumo. O homem devora o planeta que habita e o vai tornando inóspito, desconfortável e sombrio. Mesmo em cidades com o carisma de Paris, as multidões confundem e se misturam entre paisagens e monumentos.


O charme de mercadorias expostas de forma a torna-las irresistivelmente atraentes, o desfile de chamados ao lazer e à embriaguez sibarita. Ilusões que definem a divisão entre os que podem possuir objetos de desejo e os que estão fora do circuito da felicidade prometida. O convite permanente a ter o que não é possível vai tornando as cidades cada vez mais violentas. Lugares de conflitos que se acumulam e que o homem parece incapaz de compreender.