quarta-feira, 28 de junho de 2017

Retirantes

                                                                                                                                     Portinari

Deponho aqui com palavras
o pensamento assim cristalizado
entre colunas de ódio, de amor
e sentimentos tortos de abandono.

Sobre ilhas, sobre a multidão
de retirantes que há cem anos
passam em frente a esta casa
e trazem marcas do sertão.

O sertão da Paraíba: fuga
e cansaço entre os arbustos,
areia fina, cactos sangrentos
e sede e fome nauseada.

A cara amarelada dos defuntos,
o deformado corpo das crianças,
o riso desdentado dos doentes,
o opaco olhar de cegos e aleijados.

A vida insistindo longe dos tapetes,
da decorada sala de escritório,
da mesa posta para a ceia
de tâmaras e nozes e maçã assada.

São estes rostos sem boca, olho
e nem toque remoto de esperança
a dizer que as tardes são manhãs
de noites penetradas de agonia.

São ecos impotentes entre o som
das caixas eletrônicas, do ritmo
batido dos surdos, das guitarras
e da voz dos amplificadores.

A encardida, grossa pele
das prostitutas de catorze anos
no trotoir das ruas do Recife,
as suas pernas cobertas de feridas.

Está aqui, no ar das avenidas,
o que restou da dor destas meninas:
o seu sorriso de gengivas podres
pelas calçadas do Capibaribe.


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